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SUBJETIVO-SENTIDURAL NO ESPAÇO DO EXISTIR COMO-VIDA

2.1. O espaço do existir-como-vida do literário

Segundo Bakhtin (2010b, p. 66), ―o ser estético33 está mais próximo da unidade real do existir-como-vida do que está o mundo teórico [...]. No existir estético pode-se viver‖, mesmo que se viva o outro, viva-se no outro. Há a possibilidade da representação da alteridade em que sujeitos podem (não)ver-se pelas vias dos outros que são construídos nesse existir.

Destarte, o literário é um campo do existir-como-vida porque instaura um espaço que lhe é próprio. Um espaço dinâmico, vivo, opaco, movente, plurivocal, habitado por outricidades, subjetividades, objetos, realidades, com cujos reflexos e refrações sujeitos podem se (des)identificar, (des)construindo-se.

Um espaço construído estético-plurivocalmente por um diálogo de linguagens em relação constitutiva com aspectos culturais e aspectos sócio-históricos e ideológicos da exterioridade. Linguagens em sua infinita dispersão de sentidos e sujeitos. Em sua eterna movência e descontinuidade, em seus constantes deslocamentos, rompendo as fronteiras do seu tempo cronológico, para a construção de uma grande temporalidade, viva, intensa, plena, como já adiantava a epígrafe deste capítulo (BAKHTIN, 1997). Uma temporalidade que se desenrola sobre uma espacialidade que também lhe é própria e singular.

O literário é, então, instaurado tendo por horizonte o vazio ―em torno de si e que autoriza uma coisa de fato estranha e talvez única: que [...] é uma linguagem ao infinito, que permite falar de si mesma ao infinito‖ (FOUCAULT, 2001, p. 225). É um discurso dentre outros, marcado

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por sua especificidade e particularidades no espelhamento e caráter plurivocal e dialógico de seu ser: a linguagem.

Por conseguinte, institui-se no espaço exterior da infinitude, instaurada pela linguagem que, infinitamente multiplicada em seu duplo e em sua reduplicação, encontra-se presente em tantas realidades. Uma linguagem que, falando de si mesma, move-se nas instâncias temporais e espaciais se eternizando. Ou melhor, um diálogo de linguagens que transmuta conteúdos cotidianos à criação de um mundo próprio, instaurando seus próprios referentes e construindo seus próprios valores como aberto à construção de valores outros e intercambiantes, instituindo projeções axiológicas com contornos valorativos de um dado cronotopo.

Porém essa instauração e construção somente se dá quando sujeitos validam, mediante seus atos de leitura, esse espaço. Quando o habitam, estabelecem com ele um contato vivo, (não)veem-se nas suas amplitudes. Isso porque o literário não é somente a imagem da linguagem, mas é a imagem da linguagem do homem. Imagens que provocam efeitos, constroem devires, enfim, que se instauram como discursos.

Portanto, o literário é um lugar, sobretudo, construtor de processos discursivos, que instaura discursos sobre si, sobre o mundo, sobre o homem, como também se sustenta pela atividade desses discursos. Acreditamos que não é apenas pela singularidade de seu ser constituinte, a(s) linguagem(ns), que se deve sopesar o literário, mas, precipuamente, pela atividade que seus discursos instauram, pelo processo dessas linguagens em diálogo estarem sempre a construir efeitos por e para sujeitos.

Se é um espaço do existir-como-vida, que pelas vias plurivocais e dialógicas de linguagens infinitamente abertas e reduplicadas, marcadas pela opacidade e pelo nada/vazio, instauradoras de um espaço próprio e singular, a vivência de seu existir se dá pela atividade que esse espaço, instituído em tal diálogo de linguagens, estabelece na relação com

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sujeitos. Uma atividade que faz o mundo imaginário da literatura construir relações filiatório-identificatórias, instaurando subjetividades e se historicizar ao adquirir sentidos, construir efeitos, promover devires. Enfim, acreditamos que, além do estético-linguístico, deve-se sempre considerar o subjetivo e o histórico; necessário se faz ponderar a discursividade literária, a atividade dos discursos que se desenrolam sobre a base material desse espaço do existir-como-vida. É a partir desse entendimento que os postulados da AD, apresentados no capítulo anterior, possibilita-nos ver o literário na tridimensão do estético, do subjetivo e do sentido.

Do estético, porque remete, conforme aponta Bakhtin (1997, 2006, 2010c), ao acabamento do agir ético do sujeito em seu processo de existência. É, portanto, uma construção que se mostra inteiramente no linguístico, base material de autonomia relativa e natureza semiótica que é formada por uma conjuntura de signos ideológicos e combinações, refletores e refratores de uma arena de lutas e posicionamentos. Uma construção que remonta àquela (re)a-presentação que nos remetemos anteriormente (p. 84 deste trabalho) de um mundo a partir de uma ação exotópica de um sujeito, ação concernente a um lugar de fora, obviamente um fora relativo, uma posição de fronteira, movente e sem pré-determinações, mediante a qual o sujeito vê o mundo real, com certa distância, no fito de transmutá-lo na configuração de sua obra estética, sempre balizada pelo social e pelo histórico.

É o acabamento de um agir, ético e singular do sujeito na existência, construindo objetos estéticos, mundos estéticos por meio do linguístico. Com efeito, é o modo de organizar, relacionar, dispor signos ideológicos da base linguística, construindo o dizer na arte, instaurando reflexões posteriores e exotópicas do ato, no imo de conferir-lhe acabamentos, sempre provisórios, intercadentes, transgredientes, pois

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tais construções estéticas e éticas são sempre um inacabado com acabamentos.

Logo, em nossa concepção, o estético vincula-se de forma insétil ao linguístico, pois se constrói na e pela linguagem, desencadeando, por seus acabamentos e consequentes construções de um mundo estético, um mundo possível, o espaço do existir-como-vida, outros atos, tomadas outras de posição que estabelecem relações de filiação-identificação nesse e com esse espaço, instaurando subjetividades. Subjetividades que também instituem outros acabamentos, que conferem sentidos, e, ao atribuírem sentidos ao outro também atribuem sentidos a si. Sentidos que sempre são históricos, ideológicos, desveladores de posições e embates, de contradições que advêm do constante movimento da arena de lutas, constitutiva das relações homem-mundo, homem-homem, homem-si mesmo.

É justamente essa atividade no crivo do estético-linguístico, do subjetivo e do sentido que nos interessará e sobre a qual propomo-nos debruçar analiticamente a partir de um recorte específico dos vários campos do existir-como-vida, o mundo estético construído pelos acabamentos de LFT; atividade que denominaremos discursividade literária.

2.2. Na tríade do estético-linguístico, do subjetivo e do sentido: a