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A repetição narrativa como construção ficcional

No documento As ficções do desassossego: um diálogo (páginas 111-117)

CAPÍTULO 4 Thomas Bernhard e a negação

4.2 A repetição narrativa como construção ficcional

Marca importante da prosa bernhardiana, a repetição é não só um elemento característico de seus textos mas também um item importante no modo de narrar e, ainda, naquilo que é narrado. Mais que um simples procedimento narrativo o movimento circular e repetitivo que perpassa o discurso de seus narradores está diretamente ligado ao modo como esses mesmos narradores são concebidos. Seu fluxo verbal permanente é um traço que define as personalidades desassossegadas desses seres. Franz-Joseph Murau se repete porque precisa se ouvir, se repete porque tem necessidade de absolutizar suas verdades, repete-se exageradamente com o fim único de fazer do seu discurso não apenas a sua verdade, porém a verdade de tudo e de todos ao seu redor.

Como muito bem aponta Rüdiger Görner ao tratar de Bernhard como um suposto “destruidor de histórias”:

O ponto é que Bernhard pode até ter destruído histórias, seja em sentido pós- moderno ou não, mas não destruiu a narrativa como tal. Pelo contrário, sua sintaxe construída tão habilmente e as várias formas de repetição sugerem uma

confiança inquebrantável nos efeitos da narrativa. A sua arte de narrar foi a conexão de Bernhard com o mundo, num sentido estritamente existencial. (Görner, 2014, p. 151 – Grifo meu)

Percebe-se na análise de Görner a importância do efeito da repetição no fluxo narrativo de Thomas Bernhard. Se identificamos em Extinção marcas que nos possibilitem entender e ler o romance como uma ficção do desassossego exemplar é porque este apresenta nos dois planos nos quais nos detemos as marcas do desassossego. Tanto no plano narrativo quanto no do conteúdo nós encontramos elementos que o associam à referida ficção. E o mais instigante na construção narrativa de Bernhard é que os dois universos se complementam de maneira bastante consistente. Isto é, temos a estrutura do romance marcada pelo discurso de Murau, porém esse quase-monólogo do narrador abre espaço para outras vozes (sob seu controle e perspectiva, é verdade), no entanto há claramente a presença do heterodiscurso. Podemos perceber como a parodia do discurso do outro aludida por Bakhtin quando apresenta os traços constitutivos do romance aparecem nas conversas rememoradas por Murau. Para cada interlocutor o narrador apresenta (parodicamente) um traço discursivo, uma característica de fala que tem como objetivo desmerecer aquele que fala:

“(...) o que ele terá a dizer quando começar o espetáculo, pensei, que tipo de fala elas lhe puseram na boca, pois, que ele tivesse uma fala própria, disso eu duvidava depois de meu único encontro com ele no dia do casamento, alguns dias antes. (Bernhard, 2009, p. 237)

A citação nos mostra esse desmerecimento. Para Murau seu cunhado sequer possui capacidade de se expressar por si mesmo, dependendo do que sua esposa e cunhada (as irmãs de Murau), irão pôr em sua boca, como se fosse ele (o fabricante de rolhas para garrafas de vinho) alguém sem uma fala própria, sem um discurso autônomo.

Na questão do conteúdo, a forte presença do elemento financeiro nos remete ao capitalismo e sua forte cobrança por acúmulo excessivo. Por mais que Franz- Joseph critique seus familiares por agirem de maneira supérflua, numa clara crítica a certos costumes burgueses, ele também se aproveita da riqueza de seus pais e fará uso dela ao longo de sua vida, sem abdicar dos bens materiais que o dinheiro lhe permite usufruir. Há, em toda essa relação dos personagens com o dinheiro, uma

possibilidade de leitura crítica, em que podemos identificar elementos da sociedade contemporânea que mostram sujeitos frágeis, impotentes frente ao sistema capitalista.

Acreditamos que o fluxo verborrágico repetitivo e destruidor de Murau reflete tanto na forma quanto no conteúdo um traço de mal-estar constante. Ele fala para se livrar de seus problemas e dilemas, para tentar encontrar um tipo de alívio para sua constante sensação de desconforto com o mundo a sua volta. Murau não é feliz, no entanto não pode ser tido como alguém triste. Dessa forma ele pode ser visto como um típico personagem que representa o desassossego: pois à medida em que foge da dicotomia alegria x tristeza ele se enquadra num outro estágio, em que suas sensações são mais profundas, mais complexas, e por ser esse tipo de personagem esférica é que ele ganha mais corpo e melhor define esse homem conflituoso da virada do século XX para o XXI.

O crítico Rüdiger Görner identifica nessas repetições que perpassam as falas de Murau um traço de desconstrução. Segundo ele: “Repetindo um argumento diversas vezes Bernhard esvazia o cerne daquilo que é repetido, ou o expõe ao ridículo.” (Görner, 2014, p. 158). Teríamos com isso, nessa inter-relação conteúdo e forma, o dito e o modo de dizer, um elemento que nos permite exemplificar aquilo que dissemos acima sobre temas e estrutura nas ficções do desassossego. Pois à medida em que ocorre o encontro entre esses dois níveis é que a narrativa mais se enriquece e nos permite associá-la ao que temos entendido como a metáfora-conceito do desassossego.

Para Dogmar Lorenz o suicídio de Murau seria uma tentativa de escapar de sua condição interna (Lorenz, 2014, p. 92). A autora, ao situar o escritor como alguém que vivenciou o pós-guerra, entende que:

A raiva e a dor que foram expressas em seus escritos posteriores são dirigidos ao trauma coletivo das gerações pós-guerras (...). Como se compelidos a reviver a angústia incontrolável, os textos de Bernhard articulam repetidamente a incapacidade individual de confrontar o passado e fazer os ajustes necessários para o futuro. (Lorenz, Ibid, Ibidem)

Angústia e incapacidade de lidar com certas questões são elementos que marcam profundamente as personagens que vivem e vivenciam o desassossego. E para expurgar essas sensações desalentadoras é que o narrador de Extinção busca a

tudo e a todos destruir através de seu discurso. Como ele mesmo diz a Gambetti, o seu relato antiautobiográfico é a forma que ele encontrou para destruir Wolfsegg (Bernhard, 2009, p. 147).

De acordo com Lucia Helena é como se:

(...) na linguagem da ficção do desassossego, encontrássemos um substituto para a ação e, nessa situação, os atos de contemplar, observar e pensar na trama das palavras, no dialogismo provocado por textos argutos, fizessem as vezes do movimento, tornando possível andar, ou mesmo viajar, sem sair do lugar. (Helena, 2010, p. 14/15)

Muito bem se associam as palavras da autora à postura discursiva de Murau, já que o personagem passa toda a primeira parte do romance a pensar, lembrar, refletir, contestar, negar, criticar e destruir por meio do seu discurso, dentro de seu aparamento, num constante, intenso e repetitivo discurso demolidor. A ação de Franz-Josep Murau é mais verbal, é por meio da sua fala que ele age, que ele pratica a sua destruição. Seu mal-estar está no seu dizer e por meio deste é que ele toma partido, faz acontecer a destruição de Wolfsegg. É através da sua expressão verbal que Murau verdadeiramente atinge seu objetivo de destruir Wolfsegg.

Quando finalmente retorna para o funeral dos pais e irmão na segunda parte do livro Murau novamente age como um negador. Se na primeira parte da narrativa a personagem fica em seu apartamento fazendo diversas elucubrações e rememorando acontecimentos que, para ele, foram de certa forma marcantes, sejam agradáveis ou não. Nesse segundo movimento da narrativa nós o vemos finalmente de volta a Wolfsegg para o enterro. Sua postura se mantém idêntica: pensa, reflete, contesta, critica, desvaloriza sua família, sua casa, sua cidade, seu país.

Seu posicionamento amargo frente ao mundo o faz ver o funeral como um espetáculo e ele parece querer agora assumir um lugar de destaque, pois em mais de um momento ele se põe a divagar sobre o que fará com a fortuna que herdou; de que modo tratará as irmãs e o cunhado; que destino dará à propriedade. Esses são pensamentos que o assolam nos preparativos do funeral: “Num instante eles me transferiram tudo(...)” (Bernhard, 2009, p. 288). Ele pensa nesses assuntos e com isso se coloca numa posição de superior em relação às irmãs, pois vê a si como o principal heredeiro. Se mesmo antes do acidente ele via suas irmãs como seres menores, não apenas frágeis fisicamente mas também pessoas fracas de caráter,

dependentes da mãe. Agora ele as coloca como submissas a ele em todos os sentidos e pensa em como fará uso dessa sua superioridade familiar que passará a exercer.

Murau é mesquinho, hipócrita e mentiroso e tem plena consciência disso. Quando está em Wolfseg para o enterro e reencontra as irmãs e o cunhado sua ideia é rebaixá-los, é tratá-los de modo rude e cruel. Procura controlá- los e para tanto faz uso da posição que agora ocupa, de líder da família. Novamente encontramos a ideia de encenação por parte de Murau, vendo a si e aos outros como personagens de um espetáculo feito por ele:

Como é que uma pessoa como essa, vou dizer, se atreve a mergulhar em minha presença na imundície dos jornais, justo nessa hora tão triste para nós, não vou dizer trágica, vou dizer triste, pois tão trágica soa teatral, enquanto tão triste soa mais humano. O assombro de minha irmã com meu cunhado são favas contadas. (Bernhard, 2009, p. 349 – Grifos do autor)

Percebe-se como ele imagina sua mentira, seja no modo de contá- la, seja no resultado que espera obter com ele. Faz isso conscientemente, buscando mesmo magoar, criar uma situação de desconforto entre a irmã e o esposo, de modo que este desconforto entre o casal seja de alguma maneira útil aos seus propósitos: ser o controlador da situação e das pessoas a sua volta. Não por acaso o romance se fecha com uma mentira, podemos classificar de A grande mentira, já que Murau mente às irmãs ao dizer que não sabe ainda o que fará com Wolfsegg, chega a afirmar que:

(...) não tinha a menor ideia a respeito, enquanto na verdade estava firmemente decidido a marcar um encontro com Eisenberg em Viena, no qual pretendia oferecer toda Wolfsegg, tal como ela se encontra, e tudo o que a ela pertence, como uma doação totalmente incondicional, à Comunidade Israelita de Viena. (Bernhard, 2009, p.476)

Age Murau com total consciência, o que serve para ratificar sua postura de controlador, hipócrita e vingativo. A grande mentira que fecha o livro reflete bem o caráter de Murau, exemplifica seu lado mais sujo, pois ele tem sim em mente o que vai fazer, porém omite deliberadamente isso das irmãs. Vingativo, ele doa não por ter “um bom coração” ou ideias humanitárias. Pelo contrário, é seu último ato no palco da vida, palco no qual ele se coloca como ator principal, autor e diretor. Murau busca absolutizar tudo em seu discurso e, também, em suas ações.

Após a doação vem o suicídio, seu último movimento como ator de si mesmo, sua última representação, é quando sai de cena que ele se afirma, pois não apenas doa toda a Wolfsegg e deixa as irmãs desamparadas, como também finaliza sua antiautobiografia demolidora, sua extinção é a extinção de tudo e todos.

Pouco antes desse final marcante (seja pela mentira, seja pelo suicídio), Murau divaga, como fizera ao longo de toda a narrativa, ao pé da cova aberta, e destila, pela última vez, todo seu ódio à família, à cidade de Wolfsegg e ao seu país. Essa postura fecha o ciclo de negação de Murau. É ao pé da cova aberta que ela faz seu último monólogo, é ali, à beira dos corpos dos pais e irmão que ele tem seu último momento antes da extinção final. De alguma forma, a cova aberta seria para Fraz-Joseph a imagem do fim, pois assim como esta será fechada e manterá distante os cadáveres, Murau parece fechar sua própria cova com o ponto final da sua antiautobiografia e com a doação de Wolfsegg.

No documento As ficções do desassossego: um diálogo (páginas 111-117)