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A busca do eu no outro em Barreira

No documento As ficções do desassossego: um diálogo (páginas 119-123)

CAPÍTULO 5 Amilcar Bettega Barbosa, uma leitura

5.1 A busca do eu no outro em Barreira

Barreira pode ser considerado um romance peculiar, já que foi escrito por

encomenda, para o ambicioso projeto Amores Expressos16, em que cada um dos 17

escritores selecionados deveria passar um mês em um país, fazer um blog ao longo desse período e na volta escrever um romance que seria publicado pela Companhia das Letras (uma série de contratempos que não cabem nesse trabalho fizeram com que obras atrasassem, como o texto que ora analisamos, e dois livros fossem recusados pela organização do projeto e com isso acabassem publicados por outra editora).

O romance de Amilcar Bettega se passa na Turquia e é centrado na filha de um imigrante turco, Ibrahim, radicado no Brasil; a jovem Fátima vai a Istambul para conhecer a cidade onde seu pai passou a infância e, por lá, além de não encontrar vestígios da metrópole que pensava conhecer pelas memórias paternas, ela desaparece sem deixar vestígios e sem um motivo aparente. Diante desse fato o romance nos surpreende e se torna uma obra de busca, de procura mas sem aquele caráter investigativo dos textos policiais. A busca, aqui, é mais um tipo de metáfora para a procura de Ibrahim por ele mesmo em seu passado e em suas origens.

Ibrahim dedica-se, então, a procurar não apenas a filha sumida, porém também a cidade que pensava ter mantido em suas lembranças. No cruzamento dessas duas buscas, temos ainda o encontro de Fátima com a curiosa produção artística de Ahmet, um artista turco recluso, e o encontro de ambos, Fátima e Ibrahim, com Robert Bernard, que por sua vez trava uma busca pelas lembranças do filho, um jovem artista que cometeu suicídio.

Percebe-se pelo breve resumo que o romance de Bettega possui uma história até certo ponto simples (uma pai à procura de sua filha e de suas raízes) mas quando olhamos a estrutura narrativa da obra: dividida em três partes (Baryer, (Entre) e Barrière), com sua multiplicidade de vozes narrativas, o livro se apresenta como um grande caleidoscópio narrativo, múltiplo e fragmentado, intenso e repetitivo ao mesmo tempo.

O que nos leva ao conceito de ficções do desassossego que perpassa este trabalho: tanto forma quanto conteúdo do texto de Amilcar Bettega refletem e expõem com bastante intensidade as marcas que ora identificamos com o desassossego trabalhado por

1616 Ambicioso projeto que envolveu diversos autores,

desde jovens em início de carreira à época, como André de Leones e Cecilia Gianetti até nomes já consagrados pela crítica, como Sérgio Sant’Anna, Bernardo Carvalho e Luiz Ruffato.

Lucia Helena. Há um certo vazio existencial a envolver as personagens. Buscam algo que talvez não esteja claro para eles mesmos. Sentem-se culpados em diversos momentos, entretanto esse sentimento de culpa não os impede de seguir agindo “dentro” desse vazio. É como se fosse difícil para eles escapar dessa sensação de desconforto em que se encontram.

O desassossego enquanto sentimento está constantemente presente nas ações que praticam. Eles vagam sem muita esperança não apenas pela noite, por bares, por locais vazios e degradados como o velho galpão utilizado por Ahmet mas também e curiosamente transitam sem muita dificuldade pelos lugares: saem do Brasil e vão para a Turquia e isso não aparenta ser algo incômodo ou complicado, é como se estivessem ainda num lugar conhecido, íntimo e que lhes oferece a possibilidade de viver (por mais que lhes perpassem um sentimento de estranhamento, de sentirem-se estrangeiros). Como se o desassossego de viver num intenso e permanente vazio já fosse de algum modo assimilado por eles.

Podemos pensar no caso de Ibrahim: ele veio para o Brasil e aqui construiu sua vida sem muita dificuldade de ser alguém de fora, porém quando retorna à Turquia após 50 anos ele encontra algumas dificuldades em se localizar e até mesmo em se comunicar. Por lá ele irá vagar por bares, se envolverá em confusões e fará sem sucesso a peregrinação atrás de Fátima e de si mesmo, em busca de suas raízes.

Desassossegado, Ibrahim é um personagem que podemos classificar como típico das ficções do desassossego, tendo em vista que se caracteriza como um ser até certo ponto vazio mas contundente em questões filosóficas e existenciais, ele busca ao longo de sua jornada encontrar a si mesmo e essa busca o leva a afundar-se ainda mais dentro de seu estado desassossegado. De acordo com algumas ideias expostas por Antonio Candido em A personagem do romance (2014) - com base em definições de E. M. Foster - é possível dizer que em Barreira nós temos personagens esféricas, isto é:

(...) suas características se reduzem essencialmente ao fato de terem três e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender (...) (Candido, 2014, p. 63)

Dessa forma o romance nos apresenta personagens de intensa carga dramática, que, ao serem complexas, tornam as situações as quais vivenciam também complexas. O que contribui para enriquecer ainda mais as narrativas que analisamos, tendo em vista o

potencial reflexivo que eles nos permitem desenvolver. São personagens que carregam em seu cerne fortes dilemas, sejam psicológicos, sejam éticos ou até mesmo morais. Reforçam essa complexidade que os envolve a maneira como são apresentados ao longo do romance. Nós os vemos por partes, devido ao caráter fragmentado da narrativa, o que confirma tanto uma maneira de entendermos o sujeito contemporâneo, com sua identidade fluída, dispersa, formada por retalhos, em constante processo de transformação. A literatura nos mostra um pouco dessa dispersão aos nos apresentar esses personagens envoltos por seus medos, seus anseios, suas necessidades, desejos. Essas dimensões múltiplas contribuem para torná-los ainda mais densos e com isso representam no palco da ficção o mal-estar, o desassossego subjetivo presente nas sociedades líquidas.

Ao longo de todo o livro a busca é um ponto de grande relevância, pois é o que faz com que os mundos de alguns personagens ganhem vida, se desenvolva. Ibrahim busca Fátima e é a partir desse ato que ele inicia um percurso de volta ao seu passado e origens que vinha sendo, de algum modo adiado, há muitos anos. Robert busca por explicações sobre o suicídio do filho e nessa procura é que ele poderá entender melhor seu próprio papel como pai. Os dois, Ibrahim e Robert, cada um a sua maneira, buscam algo que os possibilitem criar alguma imagem de quem é Ahmet, esse ser fluído que chega até eles por meios dos resquícios de Fátima e de Lucas.

Eles são as típicas personagens de diversas esferas citadas por Candido. Os vemos em partes, nunca por inteiro. Estão em constante processo de desenvolvimento e transformação. Essa relação entre a busca e a própria construção de suas identidades ao longo do romance é uma chave de leitura que nos permite encontrar pontos que ligam Barreira a Diário, pois no livro de Coetzee há também um ideal de busca por parte das personagens: já idoso, o Senhor C busca um fim de vida tranquilo e é arrebatado por Anya. Ela, ainda jovem, busca encontrar um lugar no mundo, com sua identidade multifacetada e globalizada. Ainda há Murau, que em Extinção busca o seu próprio fim e o de todos ao seu redor, incluindo família e cidade, por quem tanto desprezo ele sente.

Seres desassossegados, todos esses personagens nos mostram um pouco das crises e ruínas citadas por Lucia Helena em seu livro. Crises e ruínas que os envolvem e constroem suas vidas e seus mundos. São livros que nos permitem, dessa forma, entender melhor a sociedade contemporânea a partir desses universos ficcionais ricos e multifacetados.

No documento As ficções do desassossego: um diálogo (páginas 119-123)