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A Reprodução interpretativa e os processos de socialização das crianças

No documento Open A infância resiste à préescola? (páginas 72-77)

CAPÍTULO II – OS ESTUDOS SOBRE A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA

2.2 A Reprodução interpretativa e os processos de socialização das crianças

Assumindo a concepção de que os sujeitos humanos são competentes e ativos socialmente, o sociólogo americano William Corsaro, baseando-se no Construcionismo Simbólico31 e no Construtivismo de Piaget,32 construiu o conceito de reprodução interpretativa “[...] O termo interpretativo abrange os aspectos inovadores e criativos da

participação infantil na sociedade. O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudanças culturais [...]” (CORSARO, 2011, p. 31-32).

O conceito de reprodução interpretativa do sociólogo Corsaro (2011, p. 32) se aproxima da abordagem construtivista ao ratificar o pressuposto de que o desenvolvimento da criança ocorre mediante a ação dela sobre o meio físico e social por intermédio da cultura de

31 Constitui a primeira das correntes interpretativas pós-weberianas. Tendo a sua gênese em Georges Herbert

Mead e na escola de Chicago, no inicio do século, o seu escopo pode resumir-se em quatro ideias primordiais: 1ª – a sociedade é uma produção colectiva, que resulta da ação interactiva de seres humanos reflexivos; 2ª a actividade humana tem como fonte as relações intersubjetivas que se desenrolam ao longo do tempo; 3ª, há uma relação dialética entre reflexão e acção, a qual é sustentada numa concepção ontológica dos seres humanos como seres reflexivos, criativos e activos; 4ª, a atividade interativa é mediada por símbolos, os quais tanto representam quanto constroem os laços intersubjetivos (SARMENTO, 2000, p. 68).

32 Classicamente o construtivismo reporta à obra de Jean Piaget, no contexto teórico dos processos cognitivos. O

grande psicólogo suíço sistematizou o enfoque, compartilhado pela maioria dos construtivistas, que consiste na hipótese mestra de que não existem estruturas cognitivas inatas, sendo estas construídas pelo sujeito, no decorrer de suas ações no meio físico e social.

pares, “conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares.”

Reprodução interpretativa pressupõe uma ação por parte da criança inserida em um contexto cultural. As culturas da infância são produtos de uma reinterpretação da criança em sua interação com o meio sociocultural. Ela não absorve a cultura tal como ela se apresenta, mas por meio de um processo de reinterpretação, a altera deixando sua marca, elaborando as culturas da infância.

Partindo de uma forte crítica às teorias sociológicas tradicionais, que consideram o desenvolvimento social como uma adaptação/integração do indivíduo à sociedade, o sociólogo afirma que a socialização constitui-se em um processo de reinvenção e de reprodução, elaboradas no coletivo ou entre pares. A teoria em pauta é uma espécie de volta ao ator/sujeito a partir de uma leitura bastante contemporânea da clássica antinomia indivíduo/sociedade, sobre a qual diversas teorias têm sido elaboradas e reelaboradas, buscando compreender como as sociedades se estruturam e qual o papel dos agentes humanos na construção de tais estruturas que, por sua vez, refletem na construção dos próprios sujeitos. Para Corsaro (2011), o termo socialização remonta a uma visão de mundo individualista e linear, como se os sujeitos fossem meros receptáculos a serem preenchidos com os conhecimentos e habilidades necessários para que a criança torne-se um membro competente da sociedade, em resumo, a criança é preparada para o futuro. Ademais, o termo é bem propício às perspectivas deterministas que pressupõem a dualidade sujeito/objeto.

As perspectivas deterministas, conforme anunciamos anteriormente, se diferenciam apenas no tocante à visão de sociedade. O modelo funcionalista concebe a sociedade como boa, redentora, sem conflito, portanto, é papel da educação na sociedade adequar/integrar/adaptar o indivíduo que, no caso específico da criança, é incompleto/inadequado à sociedade.

As abordagens reprodutivistas têm uma visão menos ingênua de sociedade, concebendo-a como conflituosa/desigual. As teorias que se enquadram nesta perspectiva teórica tiveram o mérito de denunciar/desmascarar a sociedade e o papel da escola como mantenedora do status quo, no entanto, permaneceu a visão de sujeito passivo no processo. Os sujeitos sociais são vistos como incompetentes, portanto, incapazes de minimizar a situação de opressão e desigualdade social. Sendo assim, a socialização das crianças, praticamente não tem sentido, isto porque a instituição educacional reproduz o sistema, subestimando a ação dos sujeitos.

Corsaro (2011), tendo por base a concepção construtivista que defende a construção do conhecimento pelo sujeito em sua interação com o objeto (meio físico e social) como

também, assumindo o ponto de vista sociológico de que estrutura e ação se autodeterminam, elaborou o conceito de reprodução interpretativa defendendo a competência criadora e criativa das crianças em grupo, com seus pares.

Na perspectiva de Corsaro (2011, p. 31), as crianças constroem o mundo em que vivem, pois “criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas de pares” ao se apropriarem de forma criativa das informações oriundas dos adultos com a finalidade de responderem às suas preocupações exclusivas. O autor explicita as bases estruturais de seu conceito: a linguagem, as rotinas culturais e a produção cultural das crianças com seus pares.

A linguagem, como um sistema simbólico, estrutura e codifica o local, o social e o cultural, além de ser um dispositivo social de longa duração para criar e estabelecer realidades. As rotinas culturais, por sua dimensão estruturante/estabilizante, asseguram a participação das crianças num determinado grupo social, fortalecem as rotinas e possibilitam, segundo o autor, a produção e a reprodução de uma multiplicidade de conhecimentos socioculturais. É importante esclarecer que todo este movimento de produção/reprodução dos conhecimentos socioculturais está ancorado na interação dos sujeitos com os adultos e seus pares, mediados pela linguagem. A propósito, destacamos o seu distanciamento de Piaget no tocante à perspectiva de mediação simbólico-linguística.

Conforme Corsaro (2011, p. 36),

A reprodução interpretativa encara a integração das crianças em suas culturas como reprodutiva, em vez de linear. De acordo com essa visão reprodutiva, as crianças não se limitam a imitar ou internalizar o mundo em torno delas. Elas se esforçam para interpretar ou dar sentido a sua cultura e a participarem dela. Na tentativa de atribuir sentido ao mundo adulto, as crianças passam a produzir coletivamente seus próprios mundos e culturas de pares.

Refutando a visão linear de desenvolvimento, Corsaro (2011) acena para um modelo de reprodução interpretativa em teia, uma vez que inclui a reprodução e a produção interpretativa da cultura em diversos contextos sociais, a exemplo da família, matriz cultural das crianças, inserindo-as em outros espaços culturais, como creche/escola, igreja, mídias, dentre outros contextos.

A teia, como um modelo teórico complexo, indica, por sua vez, que a criança participa e integra, de forma simultânea, duas culturas: a dos adultos e as próprias de seu grupo geracional infância, categoria estrutural que tem seu lugar na sociedade. No entanto, as culturas constituem-se de quatro gerações distintas: a cultura de pares infantil, que ele designa como pré-escola, a pré-adolescente, a adolescente e a cultura adulta.

Certamente, a criança recebe estímulos e interage com estes grupos geracionais, sendo a reprodução interpretativa uma tentativa de produzir, coletivamente e de forma inovadora,

um conhecimento ou modus operandi próprio, tendo por base um quadro de conhecimentos culturais e institucionais com os quais as crianças interagem. Neste sentido, as culturas infantis constituem-se de um recurso coletivo, produtivo e inovador, utilizado pelas crianças para viverem de forma ativa no mundo e que varia, segundo a quantidade de campos institucionais frequentados pela criança e pelas próprias características individuais dos pares, das qualidades dos encontros e dos espaços, dentre outras variáveis (CORSARO, 2011, p. 39). A infância sempre ficou a margem das ciências sociais, como a Antropologia e a Sociologia, isto porque, a visão predominante, no próprio meio científico, era a de realizar estudos individuais sobre a criança, a fim de tratá-la, normalizá-la, torná-la um ser integrado à sociedade. Esta visão dominante de olhar a infância como um grupo de indivíduos a- históricos, homúnculos, indivíduos passíveis da ação socializadora institucionalizada, foi predominante neste campo da ciência até a primeira metade do século XX.

A cultura33 é um objeto de estudo específico da antropologia, ciência social que busca estudar os fenômenos sociais em seu contexto social e cultural, tendo em vista compreender os fenômenos por si mesmos. Este campo científico tem dado uma grande contribuição, no tocante à categoria socialinfância, procurando compreender suas culturas e pontos de vista, deixando para trás as imagens negativas construídas ao longo do tempo, razão pela qual esta geração não foi considerada como objeto legítimo de estudo no campo das ciências sociais.

Os estudos antropológicos sobre as crianças tiveram início entre os anos 20 e 30, com Margareth Mead34. A escola de pensamento da qual fez parte tinha uma concepção de cultura como aquilo que é adquirido e transmitido, além de focar suas pesquisas no papel das culturas na formação da personalidade dos indivíduos. Outra corrente, a estrutural funcionalista, fundada por Radcliffe-Brown, nega o subjetivismo da corrente anterior, já que percebia a sociedade como um sistema de papéis e relações sociais. O foco de seus estudos era a socialização. A criança, nestas duas escolas de pensamento, não é vista como sujeito interativo que reproduz e produz cultura, mas como indivíduo passivo, produzido pela cultura, esta entendida como valores, crenças, costumes, portanto, em ambas as teorias, a criança necessita ser educada, socializada, sofrendo uma ação da estrutura, do social, sendo seu papel o de mero receptor.

A partir dos anos de 1960, emergem estudos com novas perspectivas em relação ao conceito de cultura: [...] “a cultura não está nos objetos nem nas frases, mas na simbologia e

33 Entendida como um sistema simbólico que dá sentido às experiências das pessoas. 34

Margareth Mead fez parte de um grupo de antropólogos norte-americanos, da Escola de Cultura e Personalidade fundada por Franz Boas. Em 1928 publicou Comingof age in Samoa, que virou um Best Seller, no qual ela publicou o resultado de suas pesquisas realizadas com adolescentes em Samoa.

nas relações sociais que lhes conformam e lhe dão sentido [...] (COHN, 2005, p. 20). A cultura, por ser específica da espécie humana, é dinâmica, está sempre se transformando. A criança nasce em um meio social, isto significa que ela nasce em um sistema simbólico ou em um contexto cultural estruturado, o que possibilita a construção e o reconhecimento de significados.

Os estudos sociológicos, sobretudo os da escola estrutural-funcionalista, fomentaram, historicamente, a dicotomia estrutura/ agência, a exemplo de Durkheim, o qual não deixou dúvidas no que diz respeito ao peso da estrutura sobre os indivíduos, fortalecendo a função socializadora da escola. O pressuposto fundamental desta visão de escola é de que os agentes são passivos, portanto, são determinados pelas instâncias socializadoras. Nesta perspectiva, a estrutura está acima dos agentes humanos.

Mollo-Bouvier (2005, p. 392) destaca uma nova perspectiva sobre a socialização destes sujeitos:

[...] Não se deve mais tomá-la em seu sentido clássico, na esteira de Durkheim (1922): Processo de assimilação dos indivíduos aos grupos sociais, mas numa perspectiva interacionista que salienta a dinâmica das interações na aquisição de know-hows e insiste no vínculo entre conhecimento de si e conhecimento do outro, conhecimento, construção de si e construção do outro. Essa construção nos leva muito longe do uso banalizado da palavra socialização [...]

A perspectiva de socialização Durkheimiana, presente ainda hoje na maioria dos espaços coletivos de educação infantil e escolar, defende que a criança deve incorporar as normas e conhecimentos culturalmente produzidos, de forma passiva, garantindo, por sua vez, a ordem social (SAMORI; CORREIA, 2012, p. 13). Mas, a própria psicologia de vertente construtivista e sócio histórica, desde a primeira metade do século XX, elabora teorias de desenvolvimento humano, cuja perspectiva sobre a criança é outra. Tais teorias ressaltam a ação/atividade dos sujeitos. A SI da infância incorpora tais perspectivas e ressalta a ação (agency) destes sujeitos na sociedade e, sobretudo nos espaços coletivos de educação infantil.

O conceito de socialização, nesta perspectiva, é re-tratado, ou seja, socializar não implica, somente, impor normas sobre a criança, de forma unilateral, mas supõe uma interação/ação ativa por parte da criança/ator social que vai reinterpretar estas normas e informações, negociá-las e, até mesmo, modificá-las, produzindo outras normas e/ informações/conhecimentos, ou seja, produzindo novas respostas, portanto, criando culturas infantis. Este ponto de vista supõe ouvir/ver as crianças, considerá-las como capazes de construir conhecimentos/culturas.

Marchi (2007, p. 65) resume os seguintes pontos como agenda atual dos sociólogos da infância:

A infância é uma construção social (não é um elemento natural nem universal enquanto dissociado da imaturidade biológica); a infância é uma variável não dissociável de outras variáveis como classe, gênero ou etnia (a análise comparativa e transcultural revela grande variedade de infâncias); as crianças são atores sociais e assim devem ser compreendidas (são seres ativos diante de seu próprio mundo e face à sociedade e não sujeitos passivos das estruturas e processos sociais); as culturas e relações sociais das crianças devem ser estudadas em si (autonomamente face às perspectivas e preocupações dos adultos); a infância é um fenômeno no qual

se evidencia a “dupla hermenêutica” das ciências sociais (erigir um novo paradigma

para seu estudo sociológico implica envolver-se no processo de

‘desconstrução/reconstrução’ da infância na sociedade); os métodos etnográficos são

particularmente úteis para o estudo da infância. A infância é uma forma tanto cultural quanto estrutural de grande número de sociedades.

Implícita a esta nova agenda sobre a infância, está a concepção de criança como ator social. Em diálogo com a psicologia interacionista, que ressalta a atividade das crianças e, também, com a psicologia sócio histórica, que compreende a realidade como simbólica e o homem como ser interativo, a antropologia e a sociologia da infância compreendem a criança como ator social, portanto, alguém capaz de elaborar ações frente às estruturas sociais, a partir de sua interação com os adultos e outras crianças, sendo, portanto, participante ativo na consolidação dos papéis que assume na estrutura social.

No documento Open A infância resiste à préescola? (páginas 72-77)