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Uma pesquisadora adulta falando com as crianças

No documento Open A infância resiste à préescola? (páginas 93-97)

CAPÍTULO III: A PESQUISA COM CRIANÇAS: METODOLOGIA,

3.2 Uma pesquisadora adulta falando com as crianças

A nossa observação participativa, ao longo da pesquisa, foi relevante para refletirmos sobre o nosso papel de pesquisadoras adultas de crianças. Fizemos um grande esforço para amenizar as relações de poder e, sobretudo, para que elas percebessem isto, pois nossa presença provocaria interferência no ambiente institucional, isto precisava ficar claro, sobretudo para as crianças.

Um dos aspectos mais delicados na pesquisa de cunho etnográfico é a entrada no campo. Aproximar-se do universo infantil implica em muito cuidado, pois exige um esvaziamento da postura adultocêntrica de forma que não se constitua em uma invasão ao mundo das crianças. Redin (2009, p. 116), refletindo sobre esta questão pontua: “Como desenvolver um olhar pesquisador, fazer parte de um grupo, sem invadir sua cultura, mantendo um distanciamento necessário e, ao mesmo tempo, uma aproximação sensível? [...]” Para compreender as culturas infantis se faz necessário tornar-se, de certa forma, mais um do grupo, alguém que se identifique com as crianças.

[...] a professora pediu queme apresentasse: falei bom dia para eles e meu nome. Anunciei que iria ficar um tempo com eles, para ver como brincavam, como faziam atividades, enfim, estava ali para aprender muitas coisas com eles. Em seguida, perguntei se permitiriam a minha estadia na sala. Disseram que sim. Perguntei o nome de cada um e eles foram dizendo os nomes completos. Agradeci por me deixarem ficar. (Diário de Campo, 13/07/2011 – Turma B).

Tal postura demonstra respeito pelas crianças, além de disposição para ouvi-las. Ademais, facilita a nossa permanência na instituição. Isto porque é preciso que pesquisadores, crianças, familiares e educadores em geral estabeleçam vínculos de amizade e de confiança.

Não foi fácil, mas conseguimos construir vínculos com todos, buscando respeitar a autoridade e a autonomia das professoras frente às crianças, ajudando-as, inclusive, em algumas tarefas. Eles se acostumaram com a nossa presença e não nos viam como estranhos. Se acontecesse de faltarmos ou chegarmos atrasadas, alguma criança comentava. Esta atitude de cuidado e atenção foi muito importante para que nos sentíssemos mais à vontade no ambiente, amenizando, assim, o nosso estranhamento.

[...] As crianças estavam se organizando para tomar café. Dei bom dia, uma criança disse: todo dia tu vem ficar aqui? - você me deixa ficar aqui? Ela - não. Em seguida, disse, deixo, deixo. Apresentei-me para o grupo, disse que iria ficar até o final do ano com eles, para aprender sobre como brincam, o que fazem, conhecer suas experiências na creche. Perguntei se poderia ficar na sala e eles disseram que sim. Expliquei ainda, que um dia eu iria pra o Pré-I, e no outro para o Pré-II. (Diário de Campo, 14/07/2013 - TA).

A relação entre o pesquisador e os participantes da pesquisa é considerada uma das questões fulcrais na etnografia. A entrada no terreno (no campo de pesquisa) é crucial quando se trata de etnografia com crianças. Delgado (2011) recomenda a utilização, em instituições de educação infantil, de um repertório de instrumentos visuais, como: fotografias, filmes, desenhos, os quais ajudam na produção, análise e interpretação dos dados.

Buscando estabelecer um vínculo de amizade e confiança com as crianças e, sobretudo, conhecer suas culturas, foi preciso inverter os papéis de saber e poder. Antecipamos, porém, que muitas vezes fracassamos no tocante a esta empreitada, ou seja, não conseguimos ser adultos atípicos legítimos (CORSARO, 2011). Isto porque, agimos informados por nossas representações e sistemas de valores. Ao longo da modernidade, as relações geracionais entre adultos e crianças foram construídas de forma unilateral, sendo o adulto o dominador na relação, seja na família, na escola e na sociedade em geral. Estruturou- se o lugar da in(fância) na sociedade, construindo-se um discurso de que este grupo geracional é dependente, frágil em suas condutas públicas e, portanto, precisa ser disciplinado e socializado pelos adultos.

A nossa participação na dinâmica da rotina institucional e de sala de aula foi periférica (FERREIRA, 2004). Procurávamos intervir o mínimo possível na interação entre as professoras e as crianças. No momento das atividades dirigidas, quando percebia que a professora precisava de ajuda na mediação com as crianças, me colocava a disposição. Isto porque, era preciso preservar certo distanciamento enquanto pesquisadora, mesmo tendo consciência de que a nossa presença influencia, de alguma forma, a rotina da sala de aula, o comportamento das crianças e dos adultos educadores. E esta intervenção indireta ficou, por várias vezes, evidenciada, quando a professora nos justificava as suas ações/atitudes.

[...] Amanda chegou para mim e disse em tom justificativo: eu tenho que pedir para eles tirarem do quadro, porque quando eles forem para o grupo o choque será muito grande se eles não tiverem preparados. Então, prefiro ir pedindo para eles escreverem. (Diário de Campo, 13/07/2011 – TB).

A professora sentiu a necessidade de nos justificar o porquê de estar cobrando das crianças a cópia do quadro. Há uma preocupação explícita em relação à cobrança externa do sistema, de exigir das crianças um conhecimento relativo ao código escrito, porém, a professora, ao sentir necessidade de nos justificar, talvez não esteja tão certa de que sua prática pedagógica é a mais apropriada. Ela cobra das crianças porque é cobrada externamente e não porque, do ponto de vista da comunidade científica, seja o mais adequado. De certa forma, representamos esta comunidade, afinal, somos pesquisadoras e profissionais da área, ademais, ela sabe que está sendo observada e sua prática está sendo avaliada de alguma forma.

Quando registrávamos algo no diário de campo, as crianças perguntavam o que estávamos fazendo, comentavam sobre a letra, pediam para escrever as letras de seu nome, etc. Ao fotografar, elas ficavam na frente da câmera, fazendo pose para que tirássemos fotos, nos pediam para fotografar os colegas e para filmar e, quase sempre, queriam ver as fotos. Sempre que possível, atendia a seus pedidos, na tentativa de ser aceita por elas e, também, reconhecendo o status de sujeitos competentes para utilizar o equipamento, para registrar algum episódio, etc. Constatamos que o comportamento das crianças mudou em virtude da nossa presença e que as crianças são, sobretudo, curiosas, ávidas por novas experiências, por fazer amizade e dialogar com os adultos que se dispõem.

Gradativamente, as crianças foram se acostumando com a nossa presença e estabelecendo papéis sociais para nós. Quando tinham dificuldade com alguma tarefa, não hesitavam em nos pedir ajuda. Apesar de nos chamar de tia, não éramos vistas como a professora que representa a autoridade, o controle, mas como alguém que pode ajudar.

[...] Amanda escreve o nome da creche na lousa e pede para eles copiarem, vai mediando com cada um para não fazerem as letras grandes, não deixar muito espaço. Senta-se à mesa e faz a mediação individualmente, com cada criança, olha para Carmem, que esta distraída e diz: desse jeito você não vai terminar. Vai para a mesa onde esta Carmem, Clara e Alexandre. Carmem diz: tia me ajude eu não sei fazer, Alexandre olha para mim e diz - ajuda ela, vai mostrando as letras. A dificuldade deles é de copiar da lousa (ainda não percebem bem as letras, a direção da escrita, etc.). Vou ajudar Carmen e fico mostrando letra por letra. Clara termina de fazer a cópia e pergunta o que vai fazer agora - digo para ela contar as frutas e escrever o numeral correspondente. (Diário de Campo, 21/07/2011 – TB).

É necessário se engajar no cotidiano do grupo, agir como amiga, ajudando as crianças, revendo preconceitos e percepções a respeito daquele grupo específico. Para conhecer e compreender as culturas infantis é necessário se tornar parte do grupo e ter a capacidade de ouvir e estar exatamente em locais onde dificilmente os pais ou professores circulam quando

as crianças estão em pares. Inclusive, com o tempo, foram nos aceitando como mais uma do grupo, não como autoridade, mas como alguém que, apesar de ser grande, pode ser amiga.

[...] As crianças estão nas mesas brincando com tampinhas de garrafas pet. Em uma mesa estão Sonia, Susie, Ramires e Sabrina. – Susie eu tô fazendo bonitinho não é? Sabrinafez uma espécie de circulo com as tampinhas e diz que é uma lua. Ela ralha com Sonia porque ela deu uns pratinhos a Susie, explique que queria os pratinhos para fazer outra lua. Sonia olha para mim e me oferece suco (o copo é uma tampinha) – tomo o suco. Sonia - eu tô tomando suco. (Vídeo, 18/11/2011 – 00: 06:26s – TA).

Não observamos em nenhum momento eles convidarem as professoras para fazerem parte de suas brincadeiras. Isto porque, a relação de poder e autoridade é explícita, as professoras são as que ditam as regras, aquelas que disciplinam, que ensinam as coisas, etc., quanto a nós, nos viam mais como alguém que poderia ajudá-los, uma intermediária entre eles e a educadora, uma parceira.

Corsaro (2009), para observar as crianças em pares, ficou próximo ao grupo, quieto e esperou uma reação por parte delas, esperou ser notado. É uma atitude não usual por parte de um adulto típico com relação às crianças. É importante que o pesquisador se desarme, no sentido de sair do lugar daquele que domina porque sabe mais, porque é fisicamente mais forte e se colocar no lugar daquele que vai aprender para apreender as vozes, os gestos, os olhares, as emoções e, sobretudo, apreender os sentidos, os significados dos eventos. Em face do pouco conhecimento que temos das culturas infantis, é necessário não apenas ouvi-las, mas perguntar a elas, prestar-lhes mais atenção e dar espaço para que se expressem.

[...] Roberto e Roger demoram a pintar - Roger não pintou praticamente nenhum brinquedo. Rossana vem até a mesa e reclama com o dois: diz que se não terminarem não irão para a casa quando a mãe de Roger vier pegá-lo e quando o avô de Roberto vier também. Roberto faz uma cara de choro e ela manda desmanchar o bico. Ele desmancha e começa a pintar. Fico próxima a mesa onde eles estão. Eles pintam um pouco, mas daqui a pouco começam a brincar empurrando os lápis de pintar um para o outro. Ficam brincando, riem e esquecem da atividade. Fico preocupada e acabo dizendo – cuida Roberto, faça sua atividade – ele olha para mim surpreso e diz – tá brigando comigo é Leonilda? Naquele momento ele me viu como professora. (Vídeo, 22/11/2011 – TA).

É importante tratarmos as crianças pelo que elas são: sujeitos que reproduzem e produzem cultura, portanto, interferem na sociedade. Evitar as representações negativas sobre a infância e as crianças e tentar compreender seus pontos de vista nos parece ser uma atitude assertiva. O olhar de reprovação, de indiferença, de desdém não ajuda, pelo contrário, nos distancia das crianças.

Porém, reconhecer a importância das relações sociais, do estabelecimento de uma relação de confiança entre pesquisador e crianças não anula as relações assimétricas entre os adultos e estas. O simples fato de reconhecer que elas existem não é suficiente para neutralizá-las, destituindo-se os obstáculos epistemológicos preexistentes. As relações de

poder existem e precisam ser considerados e conhecidos os seus efeitos na constituição da intersubjetividade e a na própria interpretação dos eventos.

As crianças nos perceberam como parceiras. Este status foi bastante positivo para circular livremente entre elas, porque nos contavam experiências, vivências, dentre outros, mas também, houve situações em que ficamos constrangidas, justamente porque optamos em não interferir na dinâmica das turmas. Algumas vezes, as crianças recorriam a nós para convencer os pares a brincar, a emprestar brinquedos, para intervir junto às professoras, sobre alguma norma ou disciplina, etc.; nos sentíamos constrangidas, isto porque, não poderíamos destituir as professoras de seu papel, nem tampouco trair a confiança das crianças. Elas viram em nós, pelo fato de ouvi-las e participar de suas brincadeiras, alguém para compartilhar, para confiar e ser parceira, até mesmo das suas transgressões.

Nós adultos, principalmente, quando professores, tendemos sempre a dirigir, monopolizar todo o processo de aprendizagem das crianças. O pesquisador que tem por objetivo escutar, conhecer e compreender as culturas infantis, sua forma de ser e estar no mundo, precisa se despir de todos os estereótipos e preconceitos em relação à infância e às crianças e convencê-las disto, pois, só desta forma, poderá conquistar sua confiança e amizade. Kohan (2007) nos fala da amizade entre dois pensamentos: adulto e infantil.

A pesquisa etnográfica exige estabelecer uma relação de confiança e respeito entre pesquisadores e participantes. Para entendermos as crianças e como se estrutura a infância, é preciso que haja uma disposição para ouvi-las: conseguimos construir uma relação de confiança justamente porque estávamos, quase sempre, disponíveis a ouvi-las em busca de compreender suas ações e tentando enxergar qual é o lugar delas na instituição e, por sua vez, como constroem cultura naquele contexto.

No documento Open A infância resiste à préescola? (páginas 93-97)