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2 O CONTROLE JUDICIAL DAS OMISSÕES ADMINISTRATIVAS E

2.3 A reserva do possível

Como sustentado por Stephen Holmes e Cass Sunstein100, todos os direitos demandam custos para ser assegurados e efetivados; independentemente de serem welfare rights ou property rights, ambos acarretam custos ao erário101.

Ingo Sarlet102 enfatiza que a fruição dos clássicos direitos de liberdade depende em grande medida de uma postura ativa dos poderes públicos, não se restringindo os direitos a prestações apenas aos direitos sociais, concluindo que os direitos a prestações são o gênero, enquanto os direitos sociais constituem a espécie.

Assim, os direitos fundamentais de liberdade e os direitos fundamentais sociais não ostentam posições antagônicas; ao contrário, se complementam, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, o Estado deverá dispensar obrigações de garantia e respeito, e, ao mesmo tempo, obrigações de promoção dos direitos humanos fundamentais.

Este, na verdade, é o problema dos direitos fundamentais: concretizar adequadas condições de vida para as pessoas dentro de um quadro social e jurídico que nem tenda para a jusfundamentalização da vida social, nem deixe carente de força normativa os preceitos constitucionais, já que tais direitos dão origem a uma série de posições jurídicas diversas,

100

HOLMES, Stephen e SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton & & Company, 1999, pp. 131-132.

101

No mesmo sentido, Vicente Barreto recorda que não podemos nos esquecer do alto custo do aparelho estatal administrativo-judicial necessário para garantir os direitos civis e políticos. BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A eficácia dos direitos fundamentais. 4ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 121.

102

SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na ordem constitucional brasileira. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 25, n. 55, p. 29-74, 2002.

outorgando ao seu titular pretensões de defesa, proteção e promoção perante o Estado e os particulares, bem como os destinatários direitos das normas jusfundamentais103.

Logo, tanto os direitos fundamentais positivos quanto os negativos pressupõem por parte do Estado toda uma estrutura de prestações prévias, sendo seu exercício e fruição diretamente subordinados a estas condições materiais de existência104.

O direito fundamental à saúde demanda recursos financeiros para a sua execução. Infelizmente tais recursos são limitados, ao passo que as necessidades relativas a este direito não; exatamente por isso tais recursos exigem previsão em lei orçamentária, no sentido de melhor garantir uma distribuição mais equânime para a satisfação de todas as necessidades públicas.

Assim, a reserva do possível constitui uma garantia importante, atuando no sentido de impedir o reconhecimento de direitos fundamentais definitivos105, não podendo os tribunais impor suas próprias soluções sem levar em conta os custos orçamentários106.

A efetivação dos direitos, portanto, é dependente do contexto que os engloba, quer porque as circunstâncias fáticas que orientam sua interpretação e aplicação se alteram com os avanços e os recuos do conhecimento, que por estarem enraizados num dos terrenos mais movediços da política, vale dizer, o processo orçamentário anual, cuja decisão se dá por meio de compromissos ad hoc107.

Como lembra Jorge Reis Novais108, a reserva do possível também atua como um agente catalisador dos direitos fundamentais, porém, quando impõe ao Estado o dever de realização de um determinado direito fundamental, leva em consideração os recursos disponíveis para tal fim, promovendo, na medida do possível, a efetivação das prestações

103

FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: Parâmetros para sua Eficácia e Efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 42.

104

A escassez dos recursos financeiros é a prova mais inequívoca de que todos os direitos fundamentais possuem uma dimensão econômica comum, atrelada aos custos exigidos para que sejam concretizados.

105

Diante da escassez de recursos financeiros não há que se falar em direitos absolutos, mas em direitos possíveis.

106

Holmes e Sunstein anotam que Nothing that costs Money can be an absolute. […] Rights are relative, not absolute claims. HOLMES, Stephen e SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton & & Company, 1999. pp. 97-98.

107

FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: Parâmetros para sua Eficácia e Efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 135.

108

NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 64.

materiais imprescindíveis a tais direitos com o fito de preservar os níveis de realização já atingidos109.

Logo, a reserva do possível se apresenta como um limite imanente no sentido de fazer respeitar as decisões tomadas pelo Legislativo em matéria orçamentária, ao ponderar a solução para o dilema otimização progressiva dos direitos humanos fundamentais versus escassez dos recursos disponíveis, resguardando, assim, tanto o princípio democrático da separação dos poderes quanto a insindicabilidade judicial das opções legislativas110.

Não obstante o princípio da competência orçamentária, como os demais princípios, não é absoluto111, sendo, pois, suscetível de restrição em face dos direitos fundamentais sociais, conforme o caso concreto.

Muito embora se cogite a possibilidade da justicialização dos direitos fundamentais sociais em face dos ditames constitucionais, não se pode olvidar que o administrador público detém certo espaço discricionário de atuação na efetividadedas políticas públicas referentes à saúde.

A questão se torna ainda mais complexa porque não existe apenas um único meio eficaz de prestação de atividades materiais relacionadas ao exercício do direito fundamental à saúde, mas toda uma gama de meios possíveis de estabelecimento de tal política pública, uns mais eficazes e de custo menor que outros.

Isso conduz, necessariamente, a uma mitigação dos valores/interesses envolvidos através da proporcionalidade, adequação e necessidade, os quais, conforme as peculiaridades do caso concreto,podem sacramentar a existência de apenas um meio adequado e necessário, portanto exigível112.

É bem provável que neste mister nos deparemos com meios igualmente eficazes que atinjam os princípios colidentes em semelhante medida, havendo, pois, de se optar pelo meio mais efetivo e menos custoso, não obstante, havendo mais de um meio adequado e

109

Em relação ao direito à saúde o Estado tem o dever constante de avançar, tanto quanto possível, à plena realização do direito em foco.

110

Andrade observa que não cabe ao Judiciário intervir em esfera reservada ao legislador ordinário, o qual exerce sua delegação constitucional, sob pena de se levar a um Estado Judicial. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p.67.

111

Neste sentido, ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2001, p. 495.

112

Não se perca de vista que a viabilização do direito fundamental à saúde não é o único dever do Estado para com o administrado. Exatamente por isso deve a Administração Pública maximizar a utilização de todo e qualquer recurso público no sentido de realizar a maior quantidade de serviços públicos possíveis com os recursos disponíveis.

necessário, e, ainda, com a mesma intensidade de assistência, cabe ao administrador público ou ao legislador a escolha. Entretanto, ainda assim, o ato administrativo poderia ser submetido ao controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado113.

Portanto, em tais hipóteses deve-se sempre proceder a uma mitigação de critérios que em apontem quais situações o direito fundamental à saúde apresenta um peso maior que os demais direitos/interesses colidentes.

Neste sentido, Gustavo Amaral114 constata sempre existir uma necessidade de motivação de controle dos critérios de escolha do ato administrativo, tratar-se-ia de uma prestação de contas à sociedade, de por que o interesse público determinou que fosse atendida primeiro uma determinada situação e não a outra, bem como a justiça do caso concreto deve ser sempre aquela que possa ser assegurada a todos que estão ou possam vir a estar em situação similar, sob pena de quebrar-se a isonomia.

Na seara de alocações de recursos públicos para a efetivação do direito à saúde, o papel principal deve ser representado pelo Executivo e pelo Legislativo, porém sempre em atendimento ao estabelecido pelo interesse público.

Não obstante, cabe ao Judiciário a análise das razões motivadoras das escolhas feitas, em face da pluralidade das opções existentes, analisando se o ato praticado foi aquele que, mediante especificidades de cada caso, melhor atenderia ao interesse público, garantindo assim uma melhor compatibilização entre recursos financeiros disponíveis e efetivação do direito à saúde, tanto na esfera individual quanto na coletiva, bem como uma realização mais adequada do direito à saúde.

Exatamente por isso o supracitado autor arremata que quanto maior o grau de essencialidade de uma prestação, mais excepcional deverá ser a razão para ela não ser atendida, vale dizer, o grau de essencialidade está ligado ao mínimo existencial e à dignidade da pessoa humana115.

Logo, quando da apreciação da exigibilidade de determinada prestação material, não apenas no que tange ao direito à saúde, mas em relação a qualquer outro direito

113

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 129.

114

AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 37

115

AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, P. 37.

fundamental, é essencial levar em consideração a escassez de recursos para o custeio das prestações demandadas, as quais exigem do julgador, no momento de decidir acerca da prestação posta em julgamento, o respeito aos princípios da isonomia e da eficiência, já que além de a saúde não constituir a única necessidade pública exigente da alocação de recursos públicos por parte do Estado, o demandante certamente não será o único indivíduo a necessitar de tal tratamento116.

Paulo Cogo Leivas117 salienta que recursos escassos exigem a observância de um tratamento igualitário118, do contrário, direitos fundamentais sociais de outras pessoas poderiam ser violados. Por isto, nestes casos, recomenda a utilização de ações judiciais coletivas, em especial a ação civil pública, para que seja garantida a universalidade da decisão, bem como para que se evite a priorização dos demandantes judiciais individuais.