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CAPÍTULO II – A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

4. A responsabilidade do Estado: condutas comissivas e omissivas

A Teoria do Risco Administrativo, consagrada pelos o art. 37, §6º da CRFB/88 e art. 43, CC/02, prescinde da existência de culpa, sendo necessários o dano, o nexo de causalidade e o ato antijurídico, o qual afirma-se como o ilícito ou o lícito, desde que cause danos anormal e específico no atendimento ao interesse público.

Todavia, embora reste consolidada a aplicação desta teoria aos ato positivos da Administração Pública, há verdadeira divergência doutrinária e jurisprudencial quanto a sua pertinência aos atos omissivos do Estado.

O conflito surgiu em razão do verbo “causar” do referido dispositivo, reportando-se, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, exclusivamente, ao comportamento comissivo do Estado, uma vez que somente uma atuação positiva poderia gerar, causar ou produzir efeito.

Em contrapartida, em relação aos atos omissivos da Administração Pública, seria aplicada a Teoria da Culpa Anônima somente nos casos ilícitos, em que houvesse descumprimento de dever jurídico estatal posto, caracterizando sua negligência, imprudência ou imperícia face à norma positivada, conforme dispõe o autor:

Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente), é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E se não foi o autor só cabe responsabilizá- lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo. Deveras, caso o Poder Público não estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razão para impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as consequências da lesão52.

52 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999, p.

61 Como fundamento, Bandeira de Mello afirma que a omissão do Estado somente consiste em condição da ocorrência do dano, mas não causa, como preleciona o dispositivo constitucional, posicionamento este acolhido por parte da doutrina: Oswaldo Aranha Bandeira de Mello53, José Cretella Júnior54, Maria Sylvia Zanella Di Pietro55, Yussef Said Cahali56, Rui Stoco57 e Hely Lopes Meirelles58.

Entretanto, a doutrina recente tem divergido deste entendimento, argumentando Almiro do Couto e Silva:

Não me parece que esse entendimento seja correto. Há inúmeras situações em que o dano provém diretamente de uma omissão do Poder Público e, no entanto, a responsabilidade é objetiva. [...] Creio ser inaceitável adotar um conceito puramente naturalístico de causa, baseado no raciocínio de que a omissão nunca pode ser causa exatamente porque é o ‘não ser’, o nada. Na filosofia e no direito, porém, causa tanto pode ser um comportamento comissivo como omissivo. Basta que se agregue a noção de dever, moral ou jurídico, para que se perceba, com facilidade, como a omissão pode constituir-se em causa de um evento [...]59.

Deste modo, considerando a imperatividade do dever de diligência do Estado Democrático de Direito, surgiu a doutrina da responsabilidade civil objetiva por atos omissivos

53 MELLO, O. A. Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. 1979. Vol II, p. 487.

54 CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. Rio de Janeiro: Forense, 1998, v. 8,

p. 210.

55 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29. Ed. Rev., atual. E ampl. - Rio de Janeiro:

Forense, 2016, p. 801.

56 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 5. Ed. rev., atual. e ampl.São Paulo: RT, 2014,

p. 282-283.

57 STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência / 10. Ed. rev., atual. e

reform. com acréscimo de acórdãos do STF e STJ. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 1341.

58 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 6. Ed. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 767. 59SILVA, Almiro do Couto e. A Responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro.

62 específicos, segundo Sérgio Cavalieri Filho60; Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Neto61; Danielle Annoni62; e Marçal Justen Filho63.

Considerando que o Estado não é um segurador universal, nos casos de omissão específica (ilícito omissivo próprio), equiparados aos atos comissivos, haveria a aplicação da responsabilidade objetiva, em razão de restar configurada uma inércia qualificada, uma vez que tinha o dever legal de agir.

Em síntese, neste caso, referida omissão pressupõe um dever específico do Estado, que o obrigue a agir para impedir o resultado danoso, quando a vítima se encontrava sob sua proteção ou guarda.

Em contrapartida, na omissão genérica (ilícito omissivo impróprio), que faz emergir a responsabilidade subjetiva da Administração, a inércia do Estado não se apresenta como causa direta e imediata da ocorrência do dano, razão pela qual deve o lesado provar que a faute du service (culpa anônima) concorreu para a lesão e que, se o Estado tivesse exercido seu poder de polícia ou fiscalização, o dano poderia ter sido evitado.

Para elucidar a presente diferenciação, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Neto apresentam o exemplo abaixo relacionado:

Alguém bêbado, dirigindo, provoca um acidente que destroça famílias, futuros e planos. O Estado responde pelos danos? Hoje seria remota a chance de sucesso da tese. Pouquíssimos a apoiariam. Se, porém, ao contrário, o motorista bêbado foi parado pouco antes numa blitz, e indevidamente liberado, o nexo causal assume um contorno sólido que autoriza imputar ao Estado a reparação dos danos. Teríamos, neste último caso, uma omissão específica, ao contrário da primeira, claramente genérica64.

60 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.

335.

61 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de direito

civil: responsabilidade civil, v. 3. 2 ed. Rev., ampl. E atual.- São Paulo: Atlas, 2015, p. 613.

62 ANNONI, Danielli. Responsabilidade do Estado pela não duração razoável do processo. 1a ed.,

Curitiba: Juruá, 2009, p. 81.

63 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11. Ed. rev., atual. E ampl. São Paulo: RT,

2015, p. 1403.

64 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de direito

63 Segundo Sérgio Cavalieri Filho65, o corolário dessa doutrina consiste no acórdão do Supremo Tribunal Federal, em que se decidiu que o Município do Rio de Janeiro omitiu-se especificamente no seu dever de garantir a incolumidade física de alunos de sua rede pública de ensino, a partir de quando os mesmos ingressam no recinto escolar, conforme voto do eminente relator, o Ministro Celso de Mello:

As circunstâncias do presente caso – apoiadas em pressupostos fáticos soberanamente reconhecidos pelo Tribunal a quo – evidenciam que o nexo de causalidade material restou plenamente configurado em face do comportamento omissivo em que incidiu o agente do Poder Público (funcionário escolar), que se absteve de adotar as providências reparatórias que a situação estava a exigir. Na realidade consta dos autos que, por incompreensível omissão administrativa, não só deixou de ser solicitado e prestado imediato socorro médico à vítima, mas, também, absteve-se a própria administração escolar de notificar os pais da aluna atingida, com a urgência que o caso requeria. É preciso enfatizar que o Poder Público, ao receber o menor estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno, os quais, muitas vezes, decorrem da inércia, da omissão ou indiferença dos servidores estatais. A obrigação de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontram no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se acharem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno – tal como no caso ocorreu – emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se achava sob guarda, atenção, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares66.

Portanto, em atendimento ao dever de diligência do Estado Democrático de Direito e afastando qualquer resquício da irresponsabilidade estatal, os atos comissivos e omissivos específicos geram a responsabilidade objetiva da Administração Pública, definida nos artigos 37, §6º da CRFB/88 e 43, CC/02. Em relação aos atos omissivos genéricos, prevalece a faute du service, devendo o lesado provar que a omissão concorreu ao efetivo dano.

65 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.

452.

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