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A Revista Caros Amigos e o Resgate da Imprensa Alternativa Brasileira

A criação da revista Veja, em 1968, expõe o surgimento de uma imprensa ainda mais hegemônica do que a existente até então com os Diários Associados, de Chateaubriand. Essa nova configuração da mídia brasileira, crescendo muitas vezes com apoio do regime militar (1964-1984), vai continuar fortalecida após a redemocratização: uma imprensa que,

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nas mãos de uma minoria, está a serviço de grupos de mídia, anunciantes e do jogo político, inclusive, governamental.

O período que compreende o crescimento de Veja e, também, a alteração nos seus propósitos ideológicos, de contrária à favorável ao governo, também foi um período efervescente da chamada imprensa alternativa. Surgida no bojo de jornalistas e intelectuais que queriam fazer valer a liberdade de expressão e criar um espaço de crítica ao modelo ditatorial, entre 1964 e 1980, de acordo com Kucinski (1991), surgiram cerca de 150 jornais que se contrapunham à imprensa hegemônica. Essas publicações

tinham como traço comum a oposição intransigente ao regime militar. Ficaram conhecidos como imprensa alternativa ou imprensa nanica. A palavra nanica, inspirada no formato tabloide adotado pela maioria dos jornais alternativos, foi disseminada principalmente por publicitários, num curto período de tempo em que eles se deixaram cativar por esses jornais. Enfatizava uma pequenez atribuída pelo sistema a partir de uma escala de valores e não dos valores intrínsecos à imprensa alternativa. Ainda sugeria imaturidade e promessas de tratamento paternal. Já o radical de alternativa contém quatro dos significados essenciais dessa imprensa: o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos 60 e 70, de protagonizar as transformações sociais que pregavam. (KUCINSKI, 1991, p. XIII)

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) situa esse tipo de publicação como aquela que pretende ser independente dos grupos de poder e que mantém um discurso de oposição à mídia majoritária:

Durante o regime militar, existiam dezenas de jornais alternativos. Hoje, em plena democracia, a ditadura de mercado engoliu as publicações, enquanto as grandes redes de TV e os jornais ligados a poderosos grupos de mídia receberam empréstimos superfacilitados do BNDES. Quando era Ministro das Comunicações, o [Luís] Gushiken foi muito claro com os representantes dos veículos Brasil de Fato, Caros Amigos,

Correio da Cidadania e Reportagem, que foram pedir anúncios do

Governo Federal em 2002: “Se quiserem publicidade, devem apoiar o Governo!”. (LOLLO, apud MARQUES, 2005, p. 1)

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Caros Amigos chegou às bancas em abril de 1997, sob a direção do jornalista Sérgio de

Souza – que se manteve no cargo até 2008, quando morreu aos 74 anos. A publicação, nos últimos cinco anos, de acordo com a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner), circula com 40 mil exemplares mensais.

Bicudo (2004) explica que a revista surgiu de uma conversa entre Sérgio de Souza e José Carlos Marão, que trabalharam juntos na fundação e na primeira fase da revista

Realidade. Aos dois, se juntaram nomes de reconhecimento no jornalismo brasileiro,

como Alberto Dines, Mathew Shirts e Roberto Freire. Estava fundada, numa casa amarela (o que daria nome à editora responsável pela publicação), aquela que, na visão de Bicudo (2004), veio resgatar a proposta de uma imprensa alternativa no Brasil. Para ele, a revista é uma

recriação criativa, inovadora e recontextualizada das experiências e propostas consagradas na década de 70 [...]. É atualmente a grande representante dessa vertente, na medida em que recupera a função social de criação de um espaço público reflexo, contra-hegemônico (PEREIRA FILHO, 2004, p. 29).

Caros Amigos e as publicações especiais são os únicos produtos da editora Casa

Amarela. Entre os produtos não periódicos e que serviram como encartes da Caros

Amigos, embora possam ser adquiridos de uma só vez, ao final da publicação das séries,

estão duas coleções de biografias, todas no mesmo padrão gráfico-editorial: “Grandes Cientistas Brasileiros” (2009/2010) e “Rebeldes Brasileiros” (2010), além da coletâneas de ensaios “Os Negros” (2008), definida por seus editores como “um paradidático em fascículos”, escrito pelo historiador e jornalista Joel Rufino dos Santos. Há ainda “Ditadura Militar” (2011), que a editora Casa Amarela nomeia como “livro-documento em fascículos”. Com suas publicações, a revista Caros Amigos ganhou três prêmios Vladimir Herzog, o mais importante do País na premiação de reportagens sobre Direitos Humanos,

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além de conquistar outras três menções honrosas no mesmo concurso. Também já venceu o Prêmio Anamatra de Direitos Humanos e o Prêmio de Divulgação Científica da Fapitec-Sergipe.

No material de divulgação, a revista se intitula como produtora de jornalismo “independente, crítico e opinativo”. Uma grande diferença em relação a outros veículos está no reconhecimento desse caráter opinativo. A maioria das publicações jornalísticas seria capaz de, em nome do marketing, dizerem-se independentes e críticas, mas não opinativas. O reconhecimento dessa característica já demarca, em Caros Amigos, uma posição contrária à grande imprensa. Em seu site, a revista se define da seguinte forma:

A revista Caros Amigos, dirigida pelo jornalista Sérgio de Souza, é a resposta editorial aos anseios e necessidades de informação de um público leitor permanentemente preocupado com os rumos de nossa sociedade, da nossa cultura e disposto a influir de alguma forma nesses rumos. Desde seu lançamento [...], a Caros Amigos traz as diferentes opiniões e ideias de importantes personagens da vida brasileira, além de reportagens, compondo um amplo quadro dos planos político, social, econômico, cultural, das artes, das ciências e da ética [...]. A linha editorial da Caros Amigos sempre trata, em suas matérias e colunas, sobre os mais variados temas, abordados com total liberdade pelos articulistas, além de longas e esclarecedoras entrevistas [...]. A revista conta com profundas reportagens, ensaios sobre questões brasileiras e internacionais, uma página central com instigantes ensaios fotográficos e seções críticas sobre artes, política, comportamento e humor11.

Sérgio de Souza, ao definir a revista como “alternativa”, com a memória do jornalismo do período ditatorial, usava o termo com reservas, conforme entrevista concedida a Bicudo (2004, p. 27-28):

Alternativa, hoje, é toda a imprensa que não pertença aos todo- poderosos de sempre: Globo, Abril, O Estado, Folha. Daí minha reserva em aceitar o termo para Caros Amigos, porque a origem dos alternativos da época da ditadura militar era a resistência à censura da informação. Hoje, teoricamente ao menos, estamos dentro e não sob as instituições. Influências de Bondinho e Realidade, objetivamente, Caros Amigos não

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carrega. É outro tipo de publicação, de estrutura editorial. Talvez subjetivamente sim, quando procura despertar a discussão abordando a realidade com olhar principalmente crítico, quando elege temas de interesse das maiorias, quando trata de ouvir pessoas que contribuam para o crescimento do leitor, quando expõe a violação dos direitos humanos, quando se espanta com uma política de privilégios e com um grau de injustiça social aberrante.

As posições de Sérgio de Souza, Achilles Lollo (jornalista italiano que atuou em periódicos contra-hegemônicos em seu país, onde se filiava à extrema esquerda, radicado no Brasil desde o início dos anos 80, quando atuou na fundação do Partido dos Trabalhadores – PT) e Francisco José Bicudo Pereira Filho (autor de uma dissertação de mestrado sobre a

Caros Amigos) sobre o sentido de ser “alternativo” faz pensar a noção de equívoco da

língua, conforme Pêcheux ([1983] 2012), o que permite uma análise do deslocamento de sentidos produzidos por essa palavra no decorrer da história recente do Brasil. Para Pêcheux ([1983] 2012), as palavras não têm sentido preso à sua literalidade. O sentido é sempre dado nas relações, na tomada de uma palavra por outra, na transferência (metáfora). Em consequência disso, o sentido está sujeito ao equívoco, ou seja, “todo enunciado é intrinsecamente susceptível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, deslocar-se discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, [1983] 2012, p. 53).

De posse dessa informação sobre a opacidade e o equívoco característico da linguagem, analisemos os trechos anteriores, em que a palavra “alternativa” aparece. Se, num dado momento, durante a Ditadura Militar, o sentido da palavra “alternativo” remetia à resistência à censura da informação, hoje, noutro momento histórico, o “alternativo” está dentro da própria instituição governamental, por meio dos contratos publicitários. Assim, a característica de “alternativa” coloca-se no processo histórico no qual a palavra é produzida, afinal, como mostrou Achilles Lollo, se as publicações “quiserem publicidade, devem apoiar o Governo!”.

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Publicar material com chancela do governo, como foi o caso da coletânea “Grandes Cientistas Brasileiros”, como exposto no item a seguir, ao mesmo tempo em que confere credibilidade ao material, já que aparece como legitimado pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia, faz com que a revista produza outro sentido para o “alternativo”. O alternativo, na verdade, agora, faz-se pela possibilidade de elaborar biografias (gênero não preso à noção de factualidade, fundamento do Jornalismo), da escolha dos personagens e por se vincular a um governo (Luís Inácio Lula da Silva, do PT) que chegou ao poder como “nova opção”, depois de uma política neoliberal de décadas.

O Ministério da Ciência e Tecnologia, nesse caso, serve como uma chancela de que as biografias que ali estão reunidas têm utilidade pública. Não é possível desconsiderar ainda que esse tipo de parceria, em razão do caráter exemplar que as biografias assumem e o didatismo presente na proposta da coleção, acabam indicando modelos de cidadãos e de cientistas a serem seguidos pelos brasileiros, principalmente, por aqueles que podem entrar em contato com esse material de forma didática, nas escolas.