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3. A PRECARIEDADE DO VIVER E DO MORAR

3.7. A rua e a casa: o discurso higienista e o estigma

A formação dos bairros pobres em Parnaíba também se deve às frequentes secas no sul do Piauí e nos Estados vizinhos, como o Ceará, como se observa na pesquisa de Gleison Monteiro para o meado do século XIX:

No Piauí, por ser lugar de passagem, os migrantes atravessaram estes sertões e rumaram para a Bahia, Maranhão, Amazonas, Goiás e outras províncias. Acontece que outros, durante a passagem por estas bandas, ficaram, às vezes, por não terem condições físicas, pelos acometimentos de moléstias ou pelo óbito de alguns parentes. Por essas ocorrências, os caminhantes tiveram que mudar seus trajetos e alguns se fixaram em vilas ou na capital piauiense274.

Nestes periódicos tempos de seca, como já vimos, deu-se a migração forçada de centenas de camponeses e suas famílias para a cidade de Parnaíba, onde poderiam ser recrutados para as obras públicas (um dos modos do socorro oficial), alcançados também por alguma caridade por parte das associações católicas do lugar, e certamente alvo permanente da vigilância policial. Foi o caso de Cazuza Porto e sua família, formada por sobreviventes das secas cearenses que se radicaram em Parnaíba, estabelecendo-se junto a seu pai como sapateiro, enquanto suas irmãs lograram raro enlace com a “pequena e honrada burguesia local”. Observamos ainda que seu ofício era realizado em casa, em alguma região no entorno da cidade, e na narrativa de Humberto de Campos, apesar das dificuldades materiais, o trabalho que realizavam permitia relativa liberdade. De acordo com o autor, o jovem cearense era

273 FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-

1966). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 139.

274 MONTEIRO, Francisco Gleison da Costa.”[...] cumprindo ao homem ser trabalhador, instruido e moralisado”: terra, trabalho e disciplina aos homens livres pobres na Província do Piauí (1850-1888).

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2016, pp. 131-132.

um rapaz branco, mas de família humilde, de origem cearense, exilada para Parnaíba por uma das secas da terra natal. Seu pai, ancião robusto e jovial, era sapateiro. E ele, sapateiro como o pai. As irmãs, senhoras claras e bonitas, haviam casado na pequena e honrada burguesia local, vivendo no conforto e na abastança. O velho, e o filho, não tinham, entretanto, abandonado a profissão modesta a que se haviam consagrado. Batiam na sola do joelho, lado a lado, na oficina doméstica, e recebiam a pobreza com alegria porque lhes vinha, com ela, a certeza da liberdade275.

Em 1901, o jornal Nortista, de Parnaíba, noticia uma missa campal realizada com o esforço diligente de diversas congregações católicas, no intuito de festejarem a

virada do século. Sua realização contou com o empenho do povo parnaibano, “embora

exausto pelos titanicos esforços que ha feito para soccorrer seus infelizes irmãos flagellados pela secca”276. Já no ano de 1919, em outro período de seca, o jornal O

Artista aponta a ação do Centro Espírita Perseverança no Bem no sentido de “minorar os soffrimentos dos pobres retirantes e doentes que habitam sob o abrigo dos cajueiros

no bairro dos campos”, onde “quasi diariamente andam comissões visitando os pobres e

dando-lhe auxilios materiaes”277.

O que se anota aqui, relativo aos registros sobre as formas de socorrer “os

infelizes irmãos” alcançados pela seca e pela fome, é como se opera o paliativo da caridade. Em Frederico de Castro Neves, se pode perceber tais práticas “como elemento organizador da relação com os pobres e legitimador da ordem social que naturalizava a pobreza”, tendo também uma função de dique, ou seja, afastar as possíveis ocorrências de motins ou saques. Para o citado autor, “a caridade privatizava-se cada vez mais, e as iniciativas caridosas estavam nas mãos de cidadãos respeitáveis e suas senhoras, que

assumiam uma função destacada nos momentos de calamidade”278. A caridade também

pode ser percebida como uma ação paternalista das elites para com os pobres, “através da ajuda costumeira, proteção e donativos para as famílias carentes, avivando assim um

275 CAMPOS, 1982, op. cit., pp. 318-319.

276 Homenagem a Jesus Christo Redemptor. Nortista. Parnaíba-PI Ano I, n. 01. 01 de Janeiro de 1901, p.

04.

277 Festas dos Espíritas. O Artista. Parnaíba-PI. Ano I, n. 04. 01 de Janeiro de 1920, p. 03. 278

NEVES, Frederico de Castro. Caridade e controle social na Primeira República (Fortaleza, 1915).

Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro-RJ: Centro de Pesquisa e Documentação de História

vínculo de dependência e submissão das classes subalternas”279, como assinala o estudo de Mafalda de Araújo.

Os que conseguiam precariamente se estabelecer, vencendo parcialmente a fome e as aflições, eram empurrados para áreas afastadas da cidade, onde não perturbassem a “paz” e colaborassem com o “progresso”. Com base nesse argumento, a Comissão de Socorros solicitou a demolição da Cadeia Velha situada na Praça da Matriz, no centro da cidade. Segundo o ofício, reproduzido no Nortista em 1901, a cadeia construída em 1775 e já inutilizada deveria ser demolida, pois naquele tempo só servia ao abrigo das classes perigosas. Ou seja, determinados espaços considerados “inutilizados” eram demolidos com o intuito de evitar a ocupação destes lugares pelos indesejáveis de sempre: aqueles a quem o jargão e o estigma nomeiam como malandros, vagabundos, ociosos, bêbados, prostitutas; as ditas classes perigosas, aquelas a quem

Chalhoub examina como “pessoas que já houvessem passado pela prisão ou as que,

mesmo ainda não tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família por meio da prática de furtos e não do trabalho”, ou “aos indivíduos que já haviam abertamente escolhido uma estratégia de sobrevivência que os colocava a

margem da lei”280. A demolição da Cadeia Velha como providência da Comissão de

Socorros – formada por políticos, clérigos e comerciantes da cidade, isto é, os grandes

homens, como percebido na lista de assinaturas – é também uma forma de, ao menos por alguns dias, ocupar os braços dos “immigrantes cearenses”, contados às centenas e, neste caso, evitar sua aglomeração em certos lugares da cidade. Aqui notamos também a

percepção aparentemente contraditória das elites locais sobre os “flagelados da seca”,

ora vistos como indesejáveis ao projeto de modernidade, ora como força de trabalho “necessária para que a construção de um espaço público aburguesado pudesse

acontecer, a baixo custo de mão de obra”281. O Abaixo Assinado da Comissão de

Socorros a seguir apresentado é documento exemplar quanto as concepções vigentes em relação aos pobres e indigentes:

279 ARAÚJO, 1997, op. cit., p.38. 280

CHALHOUB, 2001, op. cit., p. 76.

281 NEVES, Frederico de Castro. Estranhos na Belle Époque: a multidão como sujeito político. Revista Trajetos. Fortaleza-CE: Universidade Federal do Ceará. Vol. 3, n. 06, 2005, p. 130.

Vimos, os abaixo assignados, da Comissão de Soccorros, impetrar desse illustre conselho a necessaria e devida licença para mandar demolir o edificio sito à praça da Matriz desta cidade, conhecido pelo nome de – CADEIA VELHA –, e que é na referida praça como que um borrão atirado á sua belleza e esthetica, afeiando-a. Esse serviço, com ser de relevante utilidade publica, é de maxima vantagem quanto á hygiene, pois, como sabeis, o edificio de que se trata serve tão somente de coito á vagabundagem e de abrigo a grande numero de indigentes, que lá vivem em uma promiscuidade absoluta e escandalosa, respirando uma atmosphera infecta, viciada e má, moral e materialmente. O prédio em questão, informe e acanhado, construido em fins do seculo XVIII, (em 1775) sem obedecer ás regras de qualquer architectura, ou de cousa alguma que com isso se pareça, para servir de casa de detenção aos condemnados, que lá eram atirados em compartimentos estreitos, escuros, sem ar, sem luz, não como um fim de punição procurando- se rehabilital-os pelo trabalho que dignifica, mas como um meio de eliminal- os pela asphyxia, – o predio em questão, repetimos, é um pardieiro que não tem hoje serventia alguma, a não ser a acima apontada, que o é negativa. Visamos, Srs. Conselheiros, com a demolição que pretendemos realisar, oferecer trabalho a alguns dos centenares de immigrantes cearenses aqui agglomerados, empregando-os nesse serviço; proporcionando-lhes meios de subsistencia durante alguns dias, e vós, auctorisando-a, escrevereis na historia desse Conselho mais uma pagina de Justiça. Nestes termos, Esperam Deferimento. - Parnahyba, 17 de Dezembro de 1900. (Assignado) A Gomes

Veras. – Jonas de Moraes Correia. – Marc Jacob. – Benedicto Rodrigues Madeira Brandão. – Padre Joaquim Antonio de Souza Leal. Despacho: Referido com a lei no. 52 desta data. Paço do Conselho Municipal de Parnahyba, 19 de Dezembro de 1900. (assignado) Jonas Correia, Presidente. – Ramos Filho. – Epaminondas. – Gomes de Almeida. - Pompeu282.

A lei municipal n° 120, inclui como “zona suburbana”, além dos bairros

Tucuns, Coroa e Campos, “parte do bairro Nova Parnahyba”283 sendo este projetado e

executado no ano de 1913 pela municipalidade, caracterizado por “seu clima ameno e

pelas suas ruas e avenidas largas, arborizadas e bem delineadas”284, também fruto das

aspirações das elites locais em modernizar as ruas e avenidas da cidade. Ali “em casas

de taipa cobertas de palha, à luz de lamparinas, viviam estivadores, vigias, cozinheiras,

lavadeiras, engomadeiras, costureiras, quitandeiros e desempregados”. Diante da

especulação em torno do lugar, “aquele bairro foi invadido pela modernização, com

palacetes, bangalôs e residências com amplos terraços e jardins floridos; com rosas coloridas que bailavam perfumando e mesclando o espaço, além de plantas ornamentais, migradas de outras cidades ou regiões”, sendo o resultado dessa ocupação o fato de que

282 Cadeia velha. Nortista. Parnaíba-PI. Ano I, n. 02. 09 de Janeiro de 1901, p. 02. 283

Parnahyba. Lei n. 120 - Publicada em 15 de Março de 1914. Diario do Piauhy. Teresina-PI. Ano IV, n. 129. 09 de Junho de 1914, p. 04.

as famílias pobres “foram empurradas para locais como ‘bebedouro’ e ‘curro’, terrenos periféricos”285.

Observando a situação no pormenor, se pode alargar a percepção sobre as situações de um cotidiano penoso no viver da cidade dos pobres. Em Memórias

Inacabadas, Humberto de Campos retrata com detalhes (e algum preconceito) o domicílio de uma prostituta na cidade de Parnaíba. A habitação se localizava entre dois

estabelecimentos comerciais, e comparada pelo escritor como espécie de “cortiço do

Norte” onde

Entre dois estabelecimentos comerciais, havia um muro, com uma série de portas. Eram quartos isolados, compartimentos de um telheiro baixo, espécie de 'cortiço' do norte, sem qualquer dependência para a higiene do morador. (...) Entrei, detendo-me a um passo da porta, que se fechou detrás de mim. Passos se arrastaram para um pouco mais longe. Um fósforo cintilou. Uma lamparina de querozene, suja, bruxoleou, sôbre um caixote, patenteando-me a pobreza, ou, antes, a miséria circunjacente. O chão, de tijolo, achava-se esburacado, como se por ali passassem carroças, veículos de grande pêso. O teto, baixo, inclinava-se para o interior, ficando quasi à altura da mão. Porta, não havia senão aquela por onde eu entrara. E o quarto era tão estreito, que a rede o atravessava, de uma aparede a outra286.

A habitação descrita por Campos era usada pela moradora tanto para seu descanso quanto para sua ocupação. A ausência de espaços para higiene pessoal transforma o lugar em passagem para os clientes, que iam ou voltavam rapidamente, e para ela, dificuldades consideráveis de moradia. Michelle Perrot sublinha que o indivíduo empenhado em descrever o quarto onde os pobres habitam “é primeiramente surpreendido pela pobreza e a promiscuidade, os cheiros e o entrelaçamento dos corpos”287.

O exame atento dos inspetores de higiene reproduzia o interesse das elites,

no intuito de, como aponta Margareth Rago, “desodorizar o espaço urbano”288. O

periódico Semana noticia em Janeiro de 1911 que na região onde moravam prostitutas

285 NUNES, Maria Cecília S. de A. A influência britânica em Parnaíba-PI. In: ARAÚJO, Maria Mafalda

Baldoíno; EUGÊNIO, João Kennedy (orgs.). Gente que vem de longe: Histórias e Memórias. Teresina: Halley, 2006, p. 349.

286

CAMPOS, 1962, op. cit., pp. 180-181.

287 PERROT, Michelle. História dos quartos. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 198. 288 RAGO, 2014, op. cit., p. 218.

ocorreu uma explosão causada pelo acondicionamento indevido de um barril com álcool. A mulher que alugava o quarto, de nome Bazilia, foi encontrada “com algumas queimaduras no terço inferior do braço direito e na parte superior da caixa toráxica e chumascados os cabelos”. De acordo com a matéria, de tão forte a detonação do material, telhas do teto se romperam:

Na rua do Commercio, em um dos quartos habitados por mulheres de vida airada, se achava provisoriamente guardado um barril que contivera alcool. Aconteceu que, na manhã de 24, achando-se só a serviçal de nome Bazilia, o dito barril incendiou-se, produzindo enorme estampido que alarmou toda a circunvizinhança. Comparecendo no logar do sinistro muita gente, foi encontrada aquella mulher com algumas queimaduras no terço inferior do braço direito e na parte superior da caixa toraxica e chamuscados os cabellos. Sem duvida a inexperiente rapariga aproximou d’aquelle recipiente algum comburente, pois diz ella que achava-se sobre o mesmo uma caixa com palitos de phosphoro, negando, todavia ter usado destes para inflammar o barril humedecido de alcool, o que é inacreditavel. Alem das queimaduras produzidas em Bazilia, a explozão fez arrebentarem-se algumas telhas dos tecto do predio289.

O jornal quer concluir que Bazilia teria causado a explosão, pois esta afirma que apesar de palitos de fósforo estarem sobre o barril de álcool, não sabe como a explosão ocorreu. A moradora do quarto em sua negativa utiliza artifícios que compõe o repertório de “resistências cotidianas”, que de acordo com James Scott, se realizam no

plano “informal, muitas vezes dissimulada, e em grande medida preocupada com

ganhos de facto imediatos”290. Além disso, é preciso refletir sobre a ideia construída pelos subalternos a partir das distinções entre “nós” e “eles”, onde sua ação tem por

objetivo dissuadir os grupos dominantes; “não acreditam que um visitante de outra

classe seja capaz de compreender os problemas intrincados das suas vidas, e fazem

todos os possíveis por os esconder e por evitar o paternalismo”291, como indica Richard

Hoggart.

Espaços para prostitutas pobres também eram comuns em outras cidades. Em São Paulo, algumas mulheres com relativa condição financeira, alugavam quartos

289 Explozão. Semana. Parnaíba-PI. Ano I, n. 34. 29 de Janeiro de 1911, p. 02.

290 SCOTT, James. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência Política. N. 05.

Brasília-DF: Instituto de Ciência Política/ Universidade de Brasília, 2011, p. 224.

291 HOGGART, Richard. As utilizações da cultura 1 - aspectos da vida cultural da classe trabalhadora.

em pensões e hotéis para atender seus clientes, sendo que a grande maioria das prostitutas, dada a difícil situação econômica, “atendiam sua clientela nas suas próprias

moradias ou em cômodos disseminados pelos bairros populares”292.

A situação acompanha a realidade e se torna mais complexa quando a quantidade de moradores em uma habitação é maior. O advogado Lima Rebello, em discurso na Praça da Graça, no centro da cidade de Parnaíba em 1920, refletia sobre a

situação do lar operário, que segundo ele, “não ha um movel. Os apparelhos culinarios

andam pelo chão, ao alcance dos cães e outros animaes domesticos”. Sua preocupação

inicial é com a aparente falta de higiene nesses locais, assim como sobre a pobreza

evidente também na ausência do mínimo mobiliário, onde “o chão nú é o único assento.

A mesa, logar onde segundo as suas crenças, sempre está presente o Sêr Supremo, não

existe”. Assim, de acordo com o autor, o sentido do progresso é vivido inversamente

pelos trabalhadores pobres, pois são desprovidos, inclusive, dos mais simples artefatos

da suposta modernidade. Além disso, “comem animalmente separados, esparsos pelos

quatro cantos da casa, agarrando á mão os alimentos, rasgando carne presa aos dentes

com empuxões selvagens” 293.

Seu discurso higienista e francamente estigmatizador, se utiliza de diversos recursos retóricos para rebaixar a luta dos trabalhadores pobres em busca de sobrevivência, como por exemplo, a antropomorfização do seu cotidiano e de seus hábitos alimentares, tentando imprimir em seus ouvintes uma dicotomia entre o que é

bom (o uso de talheres, o uso da mesa, a aquisição de mobília, etc) e o mau. Esses costumes incivilizados, na lógica da modernidade, se aproximam dos saberes tradicionais indígenas e povos do campo, onde “os comensais se sentam em um círculo ao redor da panela de comida no chão, e cada um se serve com as próprias mãos”, e os “talheres e pratos servem para o preparo da comida, mas não para as refeições”294.

Podemos notar também que a ausência de mobília pode ser uma forma de garantir “uma

mudança sem grandes dificuldades nem despesas”, uma vez que “aos olhos dos

moralistas, a presença de móveis é o sinal infalível de enraizamento”295; No entorno de

292 PINTO, 1994, op. cit., p. 210. 293

REBELLO, 1921, op. cit., p. 49.

294 WEIMER, 2005, op. cit., p. 66. 295 PERROT, 2017, op. cit., p. 116.

Parnaíba, essa ausência de mobília poderia estar ligada as constantes cheias do rio Igaraçu, tornando menos dificultosa a fuga de suas águas.

A Rua e a Casa tornam-se dimensões centrais para o mapeamento das práticas sociais na Parnahyba dos pobres, “podendo servir como instrumento poderoso

de análise do mundo social brasileiro”296, uma vez que no imaginário e nas narrativas da

época, a rua era o lugar da ação, do trabalho, das incertezas e vícios, individuais ou coletivos. O Mercado Público, frequentado cotidianamente pelos pobres, efervescia nas

manhãs de domingo, quando “afluíam para o mercado, não só dos bairros pobres da

cidade como dos povoados vizinhos, trabalhadores do porto, lavradores e vaqueiros,

famosos pela sua valentia, pela sua perícia no manejo do cacete ou da faca”297.

Figura 8: Estado do Piauhy - Mercado publico da cidade da Parnahyba.

Fonte: PIAUÍ. Revista da Semana. Ano VI, n. 292. 17 de Dezembro de 1905, p. 18.

Percebemos pela imagem o contínuo fluxo de pessoas no mercado, cercado por areia solta, e ao centro da fotografia, uma grande árvore que dá sombra para crianças, homens e mulheres se protegerem. É possível que esse local permita o

comércio fora do prédio mercado, uma vez que “os vendeiros abriam suas tendas. As

caboclas se instalavam no meio do largo, espalhando pelo chão os potes de barro, os chapéus de palha, os cofos, as esteiras, as rendas e colheres de pau, (...) que vinham

296

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis - Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 90.

vender às donas-de-casa”298. Assim, a Rua é percebida como espaço da luta constante pela sobrevivência, pelo ganha-pão, de efervescência e de ação.

O ambiente da Casa, por outro lado, é narrada como o lugar de calmaria e alento para as dificuldades sofridas, individual ou coletivamente, acolhendo seus moradores e fugindo das perturbações oriundas do espaço da rua. Lima Rebello afirma

em discurso aos operários que é função da mulher do trabalhador garantir “a honra, o

socego, o carinho e até a manutenção physica do homem”, sendo “mãe, irmã, patrôa,

enfermeira, instructora, educadora”299. O Artista, em 1919, questiona seus leitores sobre

o alcoolismo e apresenta o espaço da casa de forma semelhante: “quantos, deixastes em

casa uma pobre mãe que se definha á falta dos minguados recursos que ides gastar

levianamente na sede insaciavel da embriaguez”300. Em 1922, debatendo sobre a

importância da instrução e da organização para os trabalhadores, declaram: “não deixeis

o vosso lar onde vive o vosso amor, os carinhos da esposa e filhos, por festas e ajuntamentos de vagabundos, que abandonando o trabalho, entram nas orgias, onde

consomem o alcool, o impecilho da humanidade”301. Na construção imaginária desse

ambiente, a mulher ganha local fixo: de “a pura, a casta, a heroica”302. Este papel, naturalizador de sua função maternal, a transforma em uma trabalhadora de tempo integral, operando afazeres domésticos e cuidados com os filhos durante todo o dia.

A realidade, porém, relativiza a construção dicotômica entre a casa e a rua para o trabalhador pobre, pois “ainda que a definição da fronteira da casa com a rua fosse menos rígida à proporção que o grau de riqueza decrescia, mesmo quando quase

invisível não era menos real ou reconhecida”, como em Sandra Graham303. Ao

discutirmos a “casa”, não nos referimos a um espaço subdividido em sala, cozinha,

quarto, quintal, isto é, a casa como “um conjunto de espaços onde uma maior ou menor

intimidade é permitida, possível ou abolida”304, rigidamente organizada e

298 CASTELO BRANCO, 1981, op. cit., p. 21. 299 REBELLO, 1921, op. cit., p. 50.

300 A Embriaguez. O Artista. Parnaíba-PI. Ano I, n. 01. Parnaíba, 15 de Agosto de 1919, p. 02.

301 Dever de Associação e Instrução. O Artista. Parnaíba-PI. Ano III, n. 11. Parnaíba, 1 de Maio de 1922,

p. 03.

302 REBELLO, 1921, op. cit., p. 50. 303

GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-