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3. A PRECARIEDADE DO VIVER E DO MORAR

3.6. Nas vilas operárias uma história de conflitos e embates

Em Parnaíba, como em outras cidades, observamos um dos vetores da especulação imobiliária, expresso na promessa de construção de vilas projetadas como moradias destinadas aos pobres. Em 1919, João Bezerra Leite, então Presidente da

Sociedade União Progressista dos Artistas Mechanicos e Liberaes de Parnahyba260,

visitando a residência do Comendador Francisco Gonçalves Cortez, dono da Rosapolis, fábrica de extração de óleos vegetais, relata ter sido informado pelo Comendador, em

meio a uma suposta conversa sobre o tema do “Catholicismo, Socialismo e política

mundial”, que sua fábrica em breve agregaria uma vila operária:

258 CARLOS, 2008, op. cit., p. 84.

259 ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 51.

260 Sociedade de socorros mútuos fundada em Agosto de 1919 na cidade de Parnaíba, congregando

trabalhadores de ofícios vários e profissões liberais, e associando também proprietários de casas comerciais como sócios beneméritos. Possuía jornal próprio, intitulado “O Artista”. Durante suas atividades (até meados da década de 1930), a União Progressista combateu a falta de instrução na cidade fundando escolas noturnas para os trabalhadores e seus filhos. Auxiliava também as festas populares e colaborava para diminuir ou neutralizar os efeitos das contradições sociais.

A grande e importantissima fabrica ‘Rosapolis’ acha-se passando por uma bella transformação architectonica, onde o artista pára e contempla a boa esthetica e requinte de arte. 'Rosapolis' vai ter em breve lapso de tempo vila operaria, onde se abrigarão os alegres e satisfeitos artistas que a movimentam261.

Ainda que o Comendador refira os trabalhadores de sua fábrica como “alegres e satisfeitos” e apresente o projeto de construção da Vila Operária como lugar de abrigo, tentando evidenciar certas dimensões da filantropia empresarial, bem observada nos estudos para o século XIX, é preciso aqui observar o que representam historicamente as vilas operárias em seu propósito de ampliar o controle do sistema de fábrica em direção ao espaço privado da moradia dos trabalhadores. E neste caso, muitos estudos dão a conhecer uma história matizada por conflitos, tensões e quando as expressões da filantropia e do paternalismo por vezes colidem com as apropriações feitas pelos trabalhadores em relação às vilas. O que se quer dizer é que, em muitos casos, as vilas escaparam à função primordial de controle. Para Margareth Rago, as vilas “representam a vontade de impor sutilmente um estilo de vida”, e constituem um

mecanismo das elites no sentido da “fabricação da classe trabalhadora desejada”262, em

sua determinação pelo controle do tempo e da vida dos trabalhadores, dentro e fora da fábrica. Para Auxiliadora de Decca, em certos casos, as casas da vila operária “destinavam-se aos operários especializados, que era necessário reter e controlar junto à

produção”263. A construção dessa vila operária em Parnaíba parece ser uma das

primeiras do Estado, considerando que “só na década de 1930 foram tomadas as

primeiras iniciativas no sentido da construção de Vilas Operárias na cidade de

Teresina”264. Nesta cidade, o plano da Vila Operária surge em 1928 por decreto

municipal, que “previa distribuição de trezentos lotes, com logradouro público, uma

261 Rosapolis. O Artista. Parnaíba-PI. Ano I, n. 03. 05 de Outubro de 1919, p. 03.

262 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. Brasil,

1890-1930. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014, p. 231.

263 DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. Indústria, trabalho e cotidiano: Brasil, 1880 a 1930. 7. ed. São

Paulo: Atual, 1991, p. 51.

264 NASCIMENTO, Francisco de Alcides do. A cidade sob o fogo: modernização e violência policial em

praça de esporte, área para cooperativa, associação operária, capela, escola e outros

estabelecimentos de uso comum”265, sendo ocupada somente no ano de 1935.

Sua localização, afastada do centro de Teresina e em região insalubre, demonstra, para Francisco Alcides Nascimento, o desejo de afastamento dos pobres da área nobre da cidade, o que coaduna com a análise aqui desenvolvida: “o ordenamento da cidade, realizado de forma autoritária, é excludente e está relacionado com o afastamento dos pobres da zona urbana. A área doada para os operários construírem a vila foi planejada distante do núcleo central da cidade, depois da linha férrea”266, ou

como asseveram Maurício Moreira e Solimar Lima: “o motivo para a construção da

Vila estava mais ligado ao afastamento das famílias do centro da cidade, alvo de embelezamento com a abertura de novas ruas, resultando em uma valorização das áreas

que receberam esses melhoramentos”267.

Apesar desse registro, localizamos para o ano de 1911 a existência de uma vila operária em Teresina. Um anúncio no Diario do Piauhy, apontava que o industrial Coronel João Maria Broxado, precisando sair de Teresina, vendeu todas as suas

fábricas, empresas, casas, terrenos, materiais de construção e “uma villa operaria

constante de seis casinhas, com 22 quartos, á rua Desembargador Freitas”268,

possivelmente destinadas aos trabalhadores de sua fábrica de sabão ou da olaria.

Estudos sobre a moradia operária apontam situações similares em diversos tempos e lugares. As casas de vila, alugadas aos trabalhadores pobres, por certo

diminuem seu mísero salário, considerando as situações onde “a fábrica é proprietária

das casas em que moram seus operários”, como é o caso da vila construída pelo Comendador Cortez em Parnaíba, e possivelmente a de propriedade do Coronel João Maria Broxado em Teresina. Para o caso, é exemplar o estudo de José Sérgio Leite Lopes, onde aponta para o fato

265 NASCIMENTO, Ana Maria Bezerra do. Trabalhadores e trabalhadores no fio da história das práticas e projetos educativos no Piauí (1856 - 1937). Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal do Piauí. Teresina, 2008, p. 25.

266 NASCIMENTO, 2002, op. cit., p. 219.

267 SANTOS, José Maurício Moreira dos; LIMA, Solimar Oliveira. Classe trabalhadora e espaço urbano: O

surgimento da Vila Operária em Teresina (PI) (1928-1950). Revista Informe Econômico. Teresina-PI: Curso de Ciências Econômicas/Universidade Federal do Piauí. Ano 16, n 33, 2014, pp. 23-24.

de certas industrias fornecerem casas a seus operários, em contrapartida seja de um aluguel geralmente descontado do salário, seja de obrigações econômicas e não-econômicas geralmente não explicitadas em contrato, mas incorporadas ao comportamento dos operários como parte das regras do jogo, significa uma interferência direta e visível mesmo do ponto de vista do processo de produção capitalista distinto do ponto de vista da reprodução da administração da fábrica sobre o consumo individual dos trabalhadores269.

Por outro lado, o viver em outras regiões da cidade poderia criar condições propícias ao florescimento de um sentimento de união, dos laços de solidariedade de

classe. É o que apontam Victor Leonardi e Francisco Foot Hardman: “em função da

segregação geográfica e sociocultural a que estavam submetidos os trabalhadores, o que tornava a vida nestes bairros muito característica e própria, desenvolviam-se com isso laços intensos de solidariedade de classe”270. Estes laços ou as formas comunitárias

experimentadas na vida camponesa271, são por vezes, buscados em determinadas

situações, como é o caso da vila operária de Teresina em que “a prefeitura elaborou a

planta e os operários iniciaram o trabalho de construção em forma de mutirão”272. Os

mutirões operavam como importante mecanismo de solidariedade entre os trabalhadores, garantindo a construção de sua moradia pelo adjutório dos vizinhos e amigos. Esse processo de autoconstrução atravessa os tempos, sendo observado também nos bairros populares de São Miguel Paulista, em São Paulo; quando em meados do século XX, a cidade recebe um grande fluxo de imigrantes para o trabalho fabril, principalmente vindos do Nordeste. Com grandes dificuldades, parte desses trabalhadores conseguia comprar terrenos, em locais afastados da cidade, com a intenção de erguer suas casas. Ali, o sistema de mutirão era amplamente usado, como visto no estudo de Paulo Fontes:

O ambiente festivo dos mutirões rurais era reproduzido aos domingos na periferia paulista. Os donos da casa encarregavam-se, em geral, do

269 LOPES, José Sérgio Leite. Fábrica e Vila Operária: Considerações sobre uma forma de servidão

burguesa. In: LOPES, José Sérgio Leite (org.). Mudança Social no Nordeste: A reprodução da subordinação (estudos sobre trabalhadores urbanos). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 42.

270 LEONARDI; HARDMAN, 1991, op. cit., p. 150.

271 Sobre a prática tradicional do mutirão e sua forma de ajuda mútua, ver o clássico: CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 4.

ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977; em específico, o capítulo 4 da primeira parte, “As Formas de Solidariedade”.

suprimento de alimentação e bebidas e, muitas vezes, ao mutirão seguia-se uma roda de música e dança. Era um espaço importante de socialização na vida operária e de consolidação das redes sociais no bairro273.