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A SÚMULA VINCULANTE COMO ESPÉCIE DE NORMA , PROCEDIMENTO

5 SÚMULA VINCULANTE COMO ESPÉCIE DE NORMA

5.1 A SÚMULA VINCULANTE COMO ESPÉCIE DE NORMA , PROCEDIMENTO

No que diz respeito ao aspecto sintático, a súmula vinculante é norma que introduz enunciado prescritivo no sistema jurídico, possuindo caráter geral e concreto. Dentro dessa norma é possível localizar tanto a norma primária dispositiva quanto a norma primária sancionatória e a norma secundária, conceitos já esmiuçados neste trabalho.

São hipótese e consequente da norma primária dispositiva, ligados pelo modal “obrigatório”: dada a edição pelo Supremo Tribunal Federal de enunciado prescritivo relacionado à matéria constitucional e justificado por reiteradas decisões desta Corte, então deve ser a aplicação do entendimento esposado neste enunciado prescritivo nas decisões a serem proferidas “pelo Poder Judiciário e a administração pública direta e indireta, nas esferas estadual e municipal”130.

Por sua vez, na norma primária sancionatória, estão presentes a hipótese e consequente seguintes, interligados pelo dever-ser intraproposicional também no modal obrigatório131: dada a existência de

enunciado prescritivo vinculante editado pelo Supremo Tribunal Federal, a persistência no seu descumprimento pelo “Poder Judiciário e a administração pública direta e indireta, nas esferas estadual e municipal”, deve ser a aplicação de sanção cível, administrativa e penal.

Destaque-se que as sanções acima previstas somente serão aplicadas após o julgamento da reclamação, sua intimação e a

130 Texto do artigo 103-A da Constituição Federal.

131 De fato, a norma é clara ao afirmar que a autoridade prolatora da decisão e o órgão competente para o julgamento do recurso deverão adequar as futuras decisões, sob pena de responsabilização. Aqui nos parece que, uma vez que a autoridade prolatora ou o órgão competente não adeque sua decisão nos casos futuros, ‘será’ responsabilizada e não somente ‘poderá sê-lo’. Sendo assim, entendemos ser o modal ‘Obrigatório’ e não somente o ‘Permitido’.

persistência do julgador em não observar o teor da súmula vinculante nas decisões futuras, tudo nos termos da nova redação do artigo 64-B da Lei 9.784/1999, acrescentado pela lei 11.417/2006132.

Outro ponto merecedor de atenção é que a previsão legal diz respeito somente às decisões administrativas, ou seja, não se aplicaria às decisões no âmbito do Judiciário. A princípio, parece-nos que as citadas sanções não foram previstas justamente porque ao jurisdicionado restam os recursos judiciais legalmente previstos para o caso de descumprimento por parte do prolator da decisão, como é o caso da própria reclamação133.

Trataremos do aspecto relativo às sanções no item 10.2 deste trabalho.

Quanto à estrutura da norma secundária, teremos como antecedente e consequente, ligados por um dever-ser intraproposional modalizado como permitido134: dada a não aplicação, a aplicação indevida ou

a contrariedade do disposto da norma constante da súmula vinculante, então pode ser o ajuizamento de reclamação constitucional perante o Supremo Tribunal Federal.

Concluindo: a norma jurídica posta pelo enunciado prescritivo da súmula vinculante se apresenta como uma norma jurídica completa, redigida em linguagem formal e própria ao campo do dever-ser. É completa porque, tendo como sujeitos da relação jurídica na norma primária os órgãos do Poder Judiciário e a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, traz na norma jurídica secundária

132 Nos termos do artigo 64-B da Lei 9.784/1999, acrescentado pela lei 11.417/2006: “Acolhida pelo Supremo Tribunal Federal a reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante, dar-se-á ciência à autoridade prolatora e ao órgão competente para o julgamento do recurso, que deverão adequar as futuras decisões administrativas em casos semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e penal.” (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal e altera a Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, e dá outras providências. Brasília: DOU, 20 dez. 2006).

133 Vide item 10.1 deste trabalho, no qual tratamos, entre outros, da natureza jurídica da reclamação – recurso ou ação autônoma.

134 Uma vez que ocorra o descumprimento de súmula vinculante, o jurisdicionado pode, mas não é obrigado, a ingressar com ação reclamatória perante o Supremo Tribunal Federal.

sanções, caso esses sujeitos não observem o teor das súmulas vinculantes, conforme trataremos em capítulo específico.

Diante ainda da possibilidade de classificar as normas em normas de conduta ou comportamento e normas de estrutura, tendemos a afirmar que a norma posta pela súmula vinculante seria uma norma de comportamento, vez que introduz enunciados prescritivos reguladores de condutas.

À guisa se esclarecimento: em análise apertada, toda norma jurídica seria uma norma de conduta, vez que sempre busca regular comportamentos. No entanto, há normas, as de comportamento, stricto sensu, nas quais a conduta humana é atingida imediatamente, vez que determinado comportamento interpessoal é modalizado deonticamente.

Por outro lado, nas normas de estrutura, a conduta humana é atingida indiretamente, vez que elas se prestam a regular a criação de outras normas. Norberto Bobbio135 distingue bem os dois tipos de norma:

Em todo o ordenamento, ao lado das normas de conduta, existe um outro tipo de normas que costumamos chamar de normas de estrutura ou de competência. São aquelas normas que não prescrevem a conduta que se deve ter ou não ter, mas as condições e os procedimentos através dos quais emanam normas de condutas válidas. Uma norma que prescreve caminhar pela direita é uma norma de conduta; uma norma que prescreve que duas pessoas estão autorizadas a regular seus interesses em certo âmbito mediante normas vinculantes e coativas é uma norma de estrutura, na medida em que não determina uma conduta, mas fixa as condições e os procedimentos para produzir normas válidas de conduta.

Assim, justificamos nosso entendimento segundo o qual as normas que conferem competência ao Supremo Tribunal Federal para a edição, revisão e cancelamento das súmulas vinculantes são normas de estrutura.

Interessante analisarmos que, ao editar uma súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal realiza um processo de indução: parte

135 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 33-34.

da norma individual e concreta para criar uma norma geral e abstrata, eliminando os elementos concretos que faziam parte das reiteradas decisões que lhe serviam de embasamento.

Além da questão do afastamento dos elementos específicos, em um verdadeiro processo de concretização, cumpre analisarmos a tendência do Supremo Tribunal Federal, ao editar uma súmula vinculante, de criar hipóteses que sirvam para disciplinar casos concretos muito mais amplos que aqueles existentes nos casos que serviram de base para sua criação.

Tal providência fará com que mais casos possam ser julgados à luz de uma determinada súmula vinculante, mas devendo sempre ser observado um limite, conforme trataremos mais à frente.

O Ministro Marco Aurélio enfrentou essa questão na votação do Projeto de súmula vinculante nº 35, dirigindo-se ao Presidente da Mesa, Ministro Gilmar Mendes136:

Presidente, com isso ficamos fiéis ao que assentado pela Corte, já que, quando da formação do leading case, não houve o exame da matéria quanto à conjugação “locação de bem móvel e serviço”.

Deve-se esperar, portanto, reiterados posicionamentos do Tribunal sobre possível controvérsia, envolvida a junção, para posteriormente editar-se um verbete.

Dessa ponderação, nasceu o verbete da Súmula: “inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.”

No caso em apreço, ao editar a súmula vinculante, a Corte deveria se ater ao mérito que já havia sido objeto de reiteradas decisões. Uma vez que a não incidência do ISS sobre a locação de bens móveis, individualmente, havia sido analisada, a Súmula vinculante deveria se limitar a

136 Extraído do voto do Ministro Marco Aurélio na votação sobre a Proposta de Súmula vinculante 35 Distrito Federal (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Proposta de Súmula Vinculante 35/DF. Julgamento: 04 fev. 2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJE, 19 fev. 2010).

este ponto, não podendo pretender abarcar o mérito da incidência do ISS sobre serviço prestado de forma conjugada à locação de bem móvel.

Ao alargar o mérito da Súmula vinculante para incluir tema não previamente analisado e repisado, a Corte Suprema estaria incorrendo em inconstitucionalidade, vez que ignoraria parte do requisito para a edição da súmula vinculante, qual seja, a existência de reiteradas decisões sobre a matéria.

O artigo 103-A da Constituição Federal, transcrito quase que em sua totalidade na Lei 11.417, de 2006137, apresenta os requisitos para

a criação da Súmula vinculante, a saber: (i) decisão de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal; (ii) existência de “reiteradas decisões sobre matéria constitucional”; (iii) “controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.”

O que se nota, entretanto, é que nem todos esses requisitos foram observados na edição de algumas súmulas vinculantes ora vigentes. De fato, os debates de aprovação das súmulas vinculantes, em sua maioria, não fazem qualquer menção aos requisitos em questão, ou seja, não apontam a controvérsia existente entre órgãos do judiciário ou entre estes e a administração pública e nem tampouco tratam da questão da insegurança jurídica ou da multiplicação de processo.

Quanto às reiteradas decisões sobre a matéria, algumas súmulas vinculantes citam como precedentes três ou quatro processos138,

enquanto a Súmula vinculante nº 28 cita um único precedente.

Neste ponto, devemos comentar a existência de uma Proposta de Emenda Constitucional (nº 33/2011), através da qual seria:

137 BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal e altera a Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, e dá outras providências. Brasília: DOU, 20 dez. 2006.

(i) alterado o quórum para edição da Súmula vinculante, que passaria a ser de quatro quintos dos membros do Supremo Tribunal Federal; (ii) criada a obrigatoriedade da prévia aprovação da Súmula vinculante pelo Congresso Nacional, no prazo de noventa dias após o recebimento do processo, sob pena de aprovação tácita; e, finalmente (iii) criada a obrigatoriedade de “estrita identidade com as decisões precedentes, não podendo exceder às situações que deram ensejo à criação da Súmula vinculante”.

Sob nosso ponto de vista: o quórum vigente já é suficiente, garantindo a maioria, a prévia aprovação por parte do Congresso Nacional ofenderia o princípio da separação dos poderes, uma vez que cabe tão somente ao Judiciário decidir sobre a edição, revisão ou cancelamento das súmulas vinculantes, e, por fim, a obrigação da estrita identidade entre os precedentes e o caso a ser sumulado já existem na previsão constitucional vigente, conforme disporemos em capítulo próprio.

Finalmente, ao tratarmos do processo de edição de uma súmula vinculante, não poderíamos nos furtar de transcrever trecho do voto do Ministro Eros Grau, ao votar com relação à Proposta de Súmula vinculante 39, que culminou na edição da Súmula vinculante número 29139:

Eu tenho, Senhor Presidente, me contido um pouco com relação, talvez, ao número largo que nós temos produzido de súmulas vinculantes, mas eu não tratarei disso nem agora, nem no futuro, em lugar nenhum. Eu acho que nós deveríamos, às vezes, pensar mais em determinados casos, em determinados processos.

Em resumo, o processo de edição de uma Súmula vinculante, até mesmo pelas sérias consequências de sua introdução no sistema jurídico, deveria ser cercado de cuidados e profundas discussões, o que parece não estar ocorrendo no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

139 Extraído do voto do Ministro Carlos Ayres Britto na votação sobre a Proposta de Súmula vinculante 39 Distrito Federal (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Proposta de Súmula Vinculante 39/DF. Julgamento: 03 fev. 2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJE, 19 fev. 2010).

5.2 A súmula vinculante como fonte de direito

Antes de adentrar no assunto referente às fontes do direito, não podemos deixar de definir, ainda que em linhas gerais, os seguintes institutos da Semiótica: ato de enunciação, enunciado, enunciação- enunciada e enunciado-enunciado, que são por diversas vezes utilizados neste trabalho.

O ato de enunciação é o de produzir enunciados ou conjunto de enunciados. Por sua vez, enunciação-enunciada são as marcas da enunciação que, eventualmente, ficam no próprio enunciado, uma vez que a enunciação é um evento que se esvai, após ocorrido em determinado tempo e espaço. Exemplos de enunciação-enunciada são indicação do órgão (Congresso Nacional), data e local em que determinado ato de enunciação ocorreu.

Se, por um lado, o enunciado, produto do ato de enunciação, é composto pela enunciação-enunciada, também o é pelo enunciado-enunciado, que, em uma visão apertada, é o suporte físico140 das

próprias regras introduzidas.

Retomando o assunto relativo às fontes do direito, preciosa a lição de Charles William McNaughton141:

Quando a doutrina convencional enuncia que as fontes do direito são as leis, os costumes, as sentenças, os princípios, própria doutrina etc. está se referindo ao conjunto de enunciados aptos a motivar uma determinada aplicação do direito […]. Problema diferente é o de se conceber as fontes do direito enunciado e, daí, só há sentido em se indicar aos órgãos em atividade de enunciação, como o faz PAULO DE BARROS CARVALHO, ou à própria enunciação, como ensina TÁREK MOYSES MOUSSALÉM.

140 Dizemos que os enunciados são o suporte físico porque, segundo a Filosofia da Linguagem, mais especificamente do giro-linguístico, adotados neste trabalho, a norma em si será produzida na mente do intérprete.

141 MCNAUGHTON, Charles William. Hierarquia e Sistema Tributário. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2011, p. 61.

Diante do exposto, podemos apreender que as fontes do direito, na verdade, não estariam representadas pelas normas jurídicas em si, veículos introdutores de outras normas, mas pelo ato de enunciação, conduta humana que, em conformidade com determinadas regras existentes no ordenamento jurídico, visam produzir enunciados prescritivos. As lições de Robson Maia Lins são esclarecedoras142:

Com essa performance, direito positivo e fontes do direito estão em mundos diferentes, aquele no campo de dever-ser e este do ser. Para finalizar esta abordagem, devemos acrescentar que, para essa atividade de enunciação produzir enunciados, é necessário que sua versão em linguagem se encaixe em hipóteses normativas, sendo, pois, fontes do direito. Noutras palavras, fontes seriam atividades do mundo real que, vertidas em linguagem, produzem enunciado-enunciado (norma introduzida) e enunciação-enunciada (norma introdutora). Produzem, portanto, normas jurídicas.

Estamos a tratar das fontes formais, vez que, a princípio, são os fatos do mundo social que, após juridicizados de acordo com as regras vigentes no sistema, constituem as fontes materiais do direito.

Por sua vez, podemos entender os veículos introdutores como sendo as normas jurídicas (que, portanto, deverão conter as normas primária e secundária), de cunho geral e concreto, que acabam por introduzir outras normas no direito positivo.

Dentro dessa acepção, claro está que as súmulas vinculantes, enunciado-enunciados, não são fontes formais do direito positivo. É fonte formal o ato de enunciação levado a feito pelo Supremo Tribunal Federal que, ao reunir dois terços de seus membros, observando as demais regras atinentes ao procedimento, edita a Súmula Vinculante.

142 LINS, Robson Maia. Controle de Constitucionalidade da Norma Tributária. Decadência e prescrição. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 130.

6 COMPARAÇÃO ENTRE A NORMA POSTA PELA SÚMULA

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