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II. O I TINERARIUM E GERIAE

II.2. O GÉNERO LITERÁRIO

II.2.4. A S FONTES

Assim como é desejo da autora deste itinerário comunicar a viva voz ou, senão, por escrito, do mesmo modo, também, temos a presença de fontes orais e escritas. Não restam dúvidas de que ao engendrar esta peregrinação aos lugares santos (que não era a primeira, nem seria, por seu desejo, a última) houve uma grande preparação física/logística, mas, sobretudo, teológica/espiritual.

Sem desvalorizar a formação intelectual da época e da própria autora do nosso documento, é-nos dado saber que algumas informações lhe chegaram pelo relato dos

145 MARIANO, Alexandra – NASCIMENTO, Aires, Egéria. Viagem do ocidente à Terra Santa, no séc. IV

irmãos (2,7), ou por outra aprendizagem oral que lhe foi passada. Ela mesma, ao longo do texto, refere a sua grande curiosidade e, concomitantemente, a intenção de ser eco da sua experiência, senão oral, pelo menos por escrito146. Aliás, é de tal modo assim que, por diversas vezes, e de forma quase abusiva, vemos a mesma informação decalcada em discurso indirecto nas palavras da narradora e, de seguida, em discurso directo. Além de dignos acompanhantes, os guias, os monges, os presbíteros e o próprio bispo foram essas pessoas-fonte.

Das fontes escritas, aquela que sobressai mais é a Sagrada Escritura. O próprio sintagma iuxta Scripturas [sanctas] (1,1), por exemplo, que se repete por várias vezes ao longo do documento, não deixa grande margem para dúvidas da presença da palavra de Deus e sua inspiração ao longo do caminho. De forma directa e indirecta, contam-se mais de cem referências bíblicas, na esmagadora maioria do Antigo Testamento147. Quando a peregrina nos diz: «legeretur lectio ipsa de codice» (10,7), não se sabe, claro, se é a mesma versão da Bíblia usada pelo bispo de Jerusalém durante a liturgia de terça-feira santa (cf. 33,2). Mas, uma vez que a peregrina «se movia de bíblia na mão»148, seria, efectivamente, possuidora ou da Vetus Latina149, ou da versão grega dos Setenta150, ou, com bastante improbabilidade, da Vulgata de S. Jerónimo151. Mas o facto de ter sido acompanhada por gente culta, não precisar de tradutores e dominar a língua grega leva-nos a pensar que recorresse mais a versão grega. O à-vontade no manuseamento deste «livro de bolso» e o

146 O remate da carta é bom exemplo disso: «Si autem et post hoc in corpo fuero, si qua preterea loca

cognoscere potuero, aut ipsa presens, si Deus fuerit prestare dignatus, uestrae affectioni referam aut certe, si aliud animo sederit, scriptis nuntiabo» (23,10)

147 TAFI, Angelo, «Egeria e la Bibblia», in ACIPE, p. 167.

148 FABBRINI, Fabrizio, «La Cornice torica della ‘ eregrinatio Egeriae’», in ACI E, p. 5 .

149 A expressão: Memoriae concupiscentiae (1,1), referência do Livro do Números (11,34), que aparece logo

no início do manuscrito é uma demonstração da utilização consciente ou inconsciente do estilo desta versão da Bíblia.

150 Só o conhecimento da edição bíblica dos LXX é que se percebe que o Libro Regnorum (4,3) é uma

transliteração de bíblia basilei,wn; e, a referência ao Liber Iesu Nave, liga-se ao Livro de Josué. Aqui se demonstra, também, que a par da Vetus Latina também havia esta edição grega.

151 Esta versão da bíblia de S. Jerónimo, em Latim, como se sabe, só em 400 estava terminada, e por isso é

bom domínio dos acontecimentos histórico-salvíficos favorecem a utilização de forma directa e indirecta da Sagrada Escritura.

Aparecem, por diversas vezes, referências a outros livros que, tal como a bíblia, são lidos in loco. É o caso dos Actos de santa Tecla (23,5); e, quando, junto à igreja, se diz que se lia alguns textos de São Tomé, é possível que houvesse alguma bibliografia apócrifa, como aconteceu com S. Tecla. Mas para a sua vida espiritual cai, sem sombra de dúvidas, sobre a Scriptura a maior das predilecções152.

A precisão das referências geográfico-históricas que vêm no documento vai para além das possibilidades daquilo que a Sagrada Escritura poderia fornecer. Daí que, como suspeitamos, houve acesso não só aos guias de viagem153, que abundavam, mas também ao Onomasticon de Eusébio154, o famoso inventário dos lugares santos, e possivelmente a mapas e atlas da época.

Elaborada entre 312 e 324, a Historia Ecclesiastica de Eusébio complementa a parte da correspondência entre Jesus e o Rei Abgar155 de que se fala no Itinerarium Egeriae (19,18-19). O bispo lê a cópia das cartas e imediatamente Egéria se apercebe de que na sua pátria ela era mais curta. Ou ela teria uma boa memória que não era afectada pelos três anos que a separavam da sua pátria ou poderia ter havido um refrescamento do conteúdo da carta, usando esta obra.

Ainda há outra obra de Eusébio que pode ser considerada fonte: a Vita Constantini. Egéria estuda cuidadosamente alguns edifícios constantinianos (Anastasis, Martyrium, ante e post Crucem), a nova Jerusalém156, de modo que, ao ler-se o manuscrito,

152 Cf. ZIEGLER, J., «Die Peregrinatio Aetheriae und die heilige Schrift», in Biblica 12 (1931) 163-164. 153 A rede viária romana estava de tal modo estruturada que desenvolveu guia de viagem especializados. Cf.

MARAVAL, Pierre, Égérie Journal de Voyage (Itinéraire), Sources Chrétiennes 296, Les Éditions du Cerf, Paris 1982, p. 171.

154 Ainda que lhe sejam apontadas imprecisões, ZIEGLER, J., «Die Peregrinatio Aetheriae und das

Onomastikon des Eusebius», in Biblica 12 (1931) 70-84, é um artigo da especialidade.

155 EUSÉBIO DE CESAREIA, Historia ecclesiastica, I 13,6-10.

156 Cf. NATALUCCI, Nicoletta, Egeria - Pellegrinaggio in Terra Santa Itinerarium Egeriae, Nardini

ela aparece muito familiarizada com todos estas obras, permitindo uma fluida descrição da liturgia que, sem atropelos de cariz arquitectónico, nos apresenta a esplêndida decoração desses sagrados edifícios (cf. 25,8-9).

No campo da suposição, alguns autores157 ponderam o acesso à obra Vita Antonii de Santo Atanásio, de modo a justificar tão vasto domínio do monaquismo.

Por tudo isto, não é de admirar que a narradora, com alguma precipitação, refira que tinha de memória que estava escrito (15,1), e depois o confirme. Trata-se de artifício literário que, sem dúvida, provoca no destinatário uma leitura dinâmica e até empolgante deste itinerário geográfico e espiritual.