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II. O I TINERARIUM E GERIAE

II.2. O GÉNERO LITERÁRIO

II.2.2. C ARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS

Apesar de haver uma tal multiforme variedade de tipos de literatura de viagem, como vimos, há algumas características que se apresentam comuns a todo o género. A questão do autor é o que nos surge primeiramente. Geralmente são clérigos ou homens de grande inclinação devota. No nosso caso, Egéria enquadra-se muito bem nesse padrão. São motivos religiosos profundos que a impelem à caminhada, e a sua principal intenção é a de transmitir às suas irmãs a experiência peregrinante aos lugares santos. Sobretudo a partir do século XIII, quando a peregrinação passa a ser um exercício de penitência, aparecem inúmeros leigos, mas continuam os clérigos a ser a grande massa de autores, até porque a sua condição assim o proporcionava. O autor do relato interpunha-se, por vezes, entre o viajante e o texto que nos é transmitido. Também aparece, não raras vezes, o autor a tentar encontrar resposta a questões que até aí não tinham sido satisfatórias, sobretudo para responder às inquietações do destinatário directo do relato.

Exceptuando as de cariz penitencial, uma peregrinação pressupunha grande disponibilidade financeira e uma boa relação com as grandes famílias do império; não obstante, na grande maioria o autor aparece anónimo. Ele quer sentir-se um autêntico peregrino e só conseguimos desvendá-lo pelos textos paralelos.

Entrando um pouco mais no texto, vemos que há fontes subjacentes à obra. Se era fácil adquirir um guia de viagem, também se tornava mais fácil fazer uma nova redacção, corrigindo e aumentado aqui e ali a informação. Como o Itinerarium Egeriae é um dos

primeiros relatos de viagem130, o mais provável é ser, também, fonte e exemplo para os relatos posteriores. Mas diz-nos Jean Richard que «os relatos de viagem são necessariamente mais independentes uns dos outros»131. O estudo sinóptico dos relatos de viagem é ainda muito escasso, apesar de haver uma grande investigação filológica. É um texto redigido em latim, sem erudição elevada. Aliás, vários estudos132 classificam o seu latim de vulgar e, por isso, pensa-se ser intenção do seu autor distanciar-se do clássico. Mas não se pense pejorativamente que o autor era iletrado ou pouco culto. Ao contrário, pegando no nosso texto de Egéria, verificamos que há uma facilidade e conhecimento das línguas grega e siríaca, dessa região. Assim, tanto encontramos expressões próprias da Hispânia, que vêm reforçar a ideia de que a autora era dessa origem, como aparecem helenismos (termos gregos simplesmente transliterados para o latim) e, também, o processo etimológico dos nomes hebraicos. Os estudos indicam que Egéria utiliza uma língua falada, com reflexos de cultura clássica. A preocupação ia mais para a transmissão do conhecimento e da fé do que para o aspecto formal e redaccional do texto.

A apresentação do relato é outra característica deste género e difere consoante o tipo de relato. E há dois aspectos que podemos encontrar: a maneira de descrever os locais (do ponto de vista geográfico e político na sua relação com o mundo) e o itinerário seguido. Ou seja, a visita à Terra Santa podia ser feita segundo a via dolorosa. Egéria, na primeira parte da sua peregrinação passa nos grandes locais mosaicos. Trata-se de um

130 O apêndice em GRABOÏS, Aryeh, Le pèlerin occidental en Terre sainte au Moyen Âge, De Boeck

Université, Paris 1998, p. 211-214, apresenta 135 relatos de viagem à Terra Santa e a escrito de Egéria aparece na segunda posição. Notamos que a grande maioria pertence ao período entre os séculos XI e XV.

131 RICHARD, Jean, Les récits de voyages et de pélerinages, Brepols, Turnhout 1981, p. 41.

132 Investigações académicas como VALLE, Rosalvo do, Considerações sobre a Peregrinatio Aetheriae,

Botelho Editora, Rio de Janeiro 2008; VERMEER, G. F. M., Observations sur le vocabulaire du pélérinage chez Égérie et chez Antonin de Plaisance, Deckker & Van de Vegt, Nijmegen-Utrecht 1965; AUERBACH, E., Literary Lenguage and its Public in Late Latin Antiquity and in the Midle Age, New York 1965; DURÃO, Paulo, Algumas observações sobre a linguagem da Peregrinação de Etéria. Separata da Revista Bracara Ausgusta, v. XXI, fasc. 47-8, 59-62. Braga, 1968; FREIRE, J. Geraldes. A.A.R. Bastiaense, observations sur le vocabulaire liturgique dans l’Itinéraire d’Égérie (recensão). Nijmegen- Utrecht, Dekker & van de vegt, 1962, in Revista Portuguesa de Filologia, t. I-II, v. XIII. Coimbra, 1964- 65.

itinerário mais geográfico do que cronológico da história do povo de Deus; sendo possível haver algumas sequências, não aparecem como imposição. Aliás, há que distinguir literatura de viagem daquilo que é puramente geográfico. As questões técnicas da topografia escapam ao escritor itinerante e não se lhe pode exigir tamanha habilidade. A juntar-se a isto está o facto de muitas das informações recolhidas serem fornecidas pelos guias e pelos habitantes da região.

Faz parte desta literatura a apresentação sistemática do percurso que se pretende executar e só depois a narração passo a passo. Por inexistência das primeiras páginas do manuscrito de Egéria, não sabemos se ela apresentou o seu plano de viagem, mas podemos aceitar que o tenha feito. Assim que inicia um novo itinerário e imediatamente antes de narrar o arranque da viagem, Egéria planifica e apresenta a motivação da viagem. No final lança o desejo de ainda fazer outros percursos, que não sabemos se foram feitos ou não.

Como última característica, deste nosso método de análise do género, temos as ilustrações feitas nas páginas manuscritas, como forma plástica do que estão a apresentar. Novamente temos de chamar a atenção para o facto de essas iluminuras não serem verdadeiro atlas; mas, de certo modo, foram um grande auxílio na sua construção. Na actualidade, os achados com este tipo de caracterização têm um valor cultural e económico superior. Na nossa obra não aparece, uma vez que não se trata do original mas de uma cópia, e no processo da reprodução podem surgir alterações (aumentos, reduções ou simplesmente modificações no sentido de corrigir um erro encontrado). O que temos em termos gráficos foi desenvolvido pelos editores.

A execução gráfica nos relatos de viagem não é frequente, também porque exigia grande habilidade. Mas, como dissemos, esses elementos foram de uma grande riqueza para a cartografia ocidental da Idade Média.