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A S NEUROCIÊNCIAS

No documento A psicanálise e o discurso da ciência (páginas 57-61)

O interesse pelas neurociências propaga-se de forma rápida no mundo; isso não acontece por acaso, sem dúvida, pois, como já apontamos, nossa sociedade contemporânea erigiu suas fundações nas ideias e critérios de eficácia, em complemento às ideias difundidas pelo discurso científico de que “tudo é possível”. Nesse contexto, dissemina-se com muita velocidade a concepção de que “tudo é natureza”, portanto isso não seria diferente ao tratarmos de nossa mente ou nossos afetos, uma vez que também são coisas da natureza e podem, dessa forma, ser conhecidos a partir dos estudos científicos das chamadas neurociências.

É impressionante, contudo, a capacidade de difusão e popularização alcançada pelas descobertas desse campo de pesquisas, o que é facilmente constatável ao lermos nossas revistas semanais, destinadas ao público “formador de opinião”, ao vermos filmes e novelas, ao lermos reportagens especiais sobre ciência nos principais jornais brasileiros etc., ou seja, são cada vez mais presentes as referências a descrições biológicas de diversos aspectos de nossa existência: nossos humores (bons ou maus), nossas tristezas, nossa maneira de portar socialmente, nossas preferências sexuais e, claro, nossas emoções. Ainda, não há dúvida de que essa ampla divulgação do tema provoca uma construção social específica do senso comum, de que a biologia é a representação natural do que sou ou de que eu sou a minha biologia; em outras palavras, de que a biologia é o meu destino!64

Vale ressaltar, ainda, que, nesse vasto campo da biologia, o cérebro passou a ser um órgão de especial atenção. Assim, quase que podemos encontrar, na mídia em geral, notícias semanais a respeito de descobertas relativas à localização cerebral (ou determinação genética)

64 São exemplos disso as divulgações a respeito de pesquisas que teriam “constatado” diferenças de QI entre brancos e negros, atribuíveis a fatores de ordem biológica diversa entre ambos, ou a formalização científica da hiperatividade. Remetemo-los ao capítulo anterior, em que abordamos ambas as questões.

de determinado aspecto comportamental ou de personalidade, como a área do comportamento antissocial, do amor romântico, do suicídio, do preconceito racial etc.65

Esse fenômeno atingiu uma dimensão tal que alguns autores chegaram a propor a existência de uma nova figura antropológica contemporânea, apelidada de “sujeito cerebral”66,

que corresponde à crença disseminada pelo discurso da ciência de nosso tempo, nas sociedades ocidentais, de que a identidade pessoal, a mente, ou seja, aquilo que nos caracteriza em nossa intimidade e nos individualiza, está no cérebro e com ele se confunde. Com isso, todo um imaginário social atual, construído a partir da imensa divulgação do discurso da ciência, tem convergido para a concepção de que o cérebro é a parte do nosso corpo verdadeiramente responsável por aquilo que costumávamos, antes, atribuir ao indivíduo, à pessoa ou ao sujeito.

Essa tendência é confirmada pelo surgimento, nas últimas décadas, de uma série de subdisciplinas pretensamente oriundas da neurociência, tais como: neuroteologia (que busca compreender como a fé religiosa encontra suporte em certos funcionamentos cerebrais), a neuropsicanálise, a neuroestética (que tenta demonstrar que os valores, os gostos e o conceito de belo encontram respaldo em funções cerebrais específicas) e a neuroeconomia (que busca, no funcionamento dos circuitos cerebrais, informações sobre, por exemplo, o impulso de comprar), cujas metas seriam procurar respostas na materialidade cerebral para aspectos tradicionalmente pensados como mentais, relacionais ou sociais.

No campo da psiquiatria (cada vez mais biológica e menos “clínica”), por exemplo, o emprego de termos fisicalistas na compreensão e no tratamento das patologias mentais tornou- se linguagem comum, a ponto de se tornar hegemônico no chamado campo “psi”. Evidentemente, esse campo apresenta heterogeneidades, entre as quais o discurso psicanalítico

65 Estudo descobre evidência de que hiperatividade é genética (Folha de S. Paulo, 30.9.2010); Amor “desativa”

capacidade de criticar a pessoa amada (Folha de S. Paulo, 24/3/2008); A substância do amor: como funciona a oxitocina, responsável por estabelecer e reforçar os vínculos afetivos entre mãe e filho – e entre amigos, namorados, amantes ... (Revista Veja, Edição 2165, de 19/5/2010). Estas são apenas algumas das manchetes que

pudemos ler, nos últimos dois anos, na mídia impressa destinada ao público “formador de opinião”.

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encontra-se, mas é igualmente evidente o poder de autoridade conferido ao modelo biomédico e às correntes defensoras de uma fisicalização do campo psiquiátrico.67

Nesse campo, assim constituído, o cérebro é a sede da mente e são muitos os fatores que justificam esse percurso, entre os quais a aliança entre os objetivos do sistema capitalista contemporâneo e os da tecnociência é o fundamental; porém, no que diz respeito à tecnociência, o desenvolvimento de tecnologias e técnicas de visualização médica, como a tomografia por emissão de pósitrons (PET Scan) e a ressonância magnética funcional (fMRI), ocupa um lugar especial.

Essas técnicas e equipamentos permitem, num primeiro momento, colher informações acerca da variação do fluxo sanguíneo ou do metabolismo de glicose em diversas partes do organismo in vivo, ao longo de um curto período de tempo, para, então, transformá-las digitalmente em imagens. No caso do cérebro, essa tecnologia pretende estabelecer correlações entre as variações metabólicas detectadas em uma determinada região e os mais diversos estados mentais e comportamentais. Em resumo, essa metodologia causou um impacto considerável, pois serviu, para uma série de pesquisadores, como instrumento de base para a construção de experimentos que permitem “enxergar” os locais do cérebro relacionados a qualquer aspecto da experiência humana.

Da mesma forma, a concepção “localizacionista” obteve grande repercussão no campo da psiquiatria, pois, para os pesquisadores da área, essa metodologia significou a possibilidade de “visualizar” as categorias nosográficas do campo (depressão, esquizofrenia, alcoolismo, transtorno bipolar, autismo, TDAH etc.). Além disso, o uso de terminologias fisicalistas e neuroimagens ocasionou, sem dúvida, um acréscimo considerável nesse movimento de objetificação da existência humana, inclusive perante o público leigo, isto é, os pacientes, para quem essas imagens digitais de cérebros são, frequentemente, apresentadas como ilustrações

67 Ver, a esse respeito, AGUIAR, op. cit., ou, ainda, BEZERRA JR., B. Naturalismo como anti-reducionismo: notas sobre cérebro, mente e subjetividade. Cadernos IPUB, v. VI, n. 18, p. 158-177, 2000.

objetivas, capazes de, por si mesmas, demonstrar automaticamente a insanidade, a incompetência ou a normalidade de indivíduos.

Nessa lógica, seria, então, totalmente possível pensar que essa tecnologia teria a capacidade de, no futuro, deixar transparecer o tipo de pessoa que cada um de nós é, em função do tipo de cérebro que portamos. Nesse sentido, alguns psiquiatras já utilizam uma categorização específica para classificar as pessoas segundo seus cérebros: John Ratey e Catherine Johnson, por exemplo, esclarecem que há pessoas que são do tipo “lobo frontal”, isto é, são “pessoas grudentas, de quem não conseguimos nos livrar ao telefone e que muitas vezes têm problemas envolvendo diferenças no lobo frontal, daí o apelido”.68 Há, ainda, nessa

categorização, as pessoas do tipo “hipofrontal”, ou seja, aquelas portadoras de um cérebro com baixa atividade no lobo pré-frontal, indicando a presença objetiva da esquizofrenia. Em outras palavras, esse procedimento seria uma grande conquista científica, pois permitiria que cada categoria nosográfica, estabelecida por constatações clínicas e consensos congressuais, tornasse-se objetivamente “visualizável”.

Esse processo, hoje disseminado no campo da medicina, acabou por transmitir, tacitamente, uma série de pressupostos acerca da “natureza humana”, como o da identidade mente-cérebro ou o de que a normalidade e a anormalidade mentais possuem fronteiras nitidamente separadas, as quais podem ser demarcadas exclusivamente com o funcionamento do cérebro e reconstruídas em imagens. Em suma, disseminou o pressuposto de que as pessoas diferenciam-se pelas diferenças de qualidade de seus cérebros.

Claro, malgrado o imaginário cultural sustentado por essas tecnologias e todo o esforço despendido nas últimas décadas no sentido de tentar localizar os marcadores biológicos dos transtornos psiquiátricos, não há, até o presente momento, nenhum resultado conclusivo que autorize o diagnóstico por imagem de nosografias, como a esquizofrenia ou a depressão, visto

68 RATEY, J.; JOHNSON, C. Síndromes silenciosas: como reconhecer as disfunções psicológicas ocultas que alteram o curso de nossas vidas. Tradução de Heliete Vaistman. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1997. p. 13.

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que, apesar de todo o alarde midiático, o assunto e os resultados obtidos pela pesquisas neurocientíficas estão longe de serem consensuais entre os próprios cientistas. Nesse contexto, John Horgan, em seu livro A mente desconhecida, e Adriano Aguiar, em seu A psiquiatria no

divã, mostram que “até agora, essas tentativas produziram frustrantes resultados ambíguos”.69

É nesse ponto que a força do discurso da ciência mostra-se mais presente: ainda que estejamos muito longe da construção de mapas precisos para as perturbações mentais, é inquebrantável o poder de convencimento que as neuroimagens (em nome da ciência) comportam na atualidade. Entretanto, não obstante os resultados “discutíveis” desses experimentos, eles não são suficientes para gerar uma inquietação epistemológica a respeito do papel da ciência na busca dos segredos da existência humana.

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