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A CIÊNCIA POSSUI UM SUJEITO ?

No documento A psicanálise e o discurso da ciência (páginas 126-131)

4.2 O SUJEITO DA PSICANÁLISE E O SUJEITO DA CIÊNCIA

4.2.1 A CIÊNCIA POSSUI UM SUJEITO ?

Antes de prosseguirmos nesse ponto, há que se tratar a questão de saber se a ciência, de fato, possui um sujeito. Evidentemente, só assim ele poderá ser “forcluído”. Essa questão não é ingênua se considerarmos que um dos principais epistemólogos da ciência, Karl Popper, dedicou seus trabalhos – em especial o livro Conhecimento Objetivo – para libertar a ciência de qualquer consideração de caráter subjetivista. Para Popper, ao contrário, a ciência não possui “sujeito cognoscente”, o que lhe garantiria, então, ser totalmente objetiva.

Ora, Lacan não era alheio à dificuldade de sustentar sua afirmação de que o sujeito da psicanálise183 era o mesmo sujeito da ciência: “dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência talvez passe por um paradoxo.”184

183 O moi, em Lacan, apresenta características imaginárias; enquanto o sujeito (ou “je”) remete para a dimensão do simbólico, no sentido em que não há sujeito, em Lacan, senão como efeito da intervenção do significante no real. 184 LACAN, 1998b, p. 873.

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Claro, é possível confirmar essa aproximação ao relembrarmos que o movimento do ensino lacaniano estabeleceu-se no sentido de afastar o sujeito da psicanálise do sujeito do conhecimento, tal qual teorizado e desenvolvido pelo campo da filosofia. O sujeito da psicanálise não se estrutura como garantia de construção de um saber, até porque ele é “evanescente”. “Não se trata, por isso, de que a psicanálise, ao promover o sujeito, esteja do lado do conhecimento, enquanto a ciência habitaria, por assim dizer, do outro lado do muro. [...] Ou seja, é do lado da ciência, e não do lado do conhecimento, que o sujeito da psicanálise deve ser situado.”185

O paradoxo torna-se mais agudo quando lemos em outro texto de Lacan, Radiofonia, que “o resultado é que a ciência é uma ideologia da supressão do sujeito, o que o fidalgo da Universidade ascendente sabe muito bem. E eu o sei tanto quanto ele.”186

Em sua tese de doutorado, Duarte Pereirinha busca responder a esse paradoxo com um retorno a Freud e às suas histéricas.187 Além de terem sido as histéricas as responsáveis pelo início da psicanálise, a histeria, como nosografia psicanalítica, sempre mereceu atenção especial da psicanálise e mesmo de Lacan, que a elevou à categoria de discurso. Não obstante, em nossa contemporaneidade, as histéricas escolheram o caminho de não mais se pronunciarem. O que gera a questão de saber o que veio a substituir o sintoma histérico em nossos tempos: “a que tipo de deslocamentos estes sintomas terão sido sujeitos. Que novas formas de queixa, reivindicação, aversão ou protesto cumprirão, tanto em termos individuais como colectivos, a velha função da histeria?”188

Ora, a histeria sempre foi muito mais do que uma mera nosografia. Ela representava, segundo Duarte Pereirinha, a “paixão do sujeito”. Movimentos “científicos” como os implicados na elaboração dos manuais psiquiátricos, dessa forma, representariam a expectativa

185 PEREIRINHA, op. cit., p. 58. 186 LACAN, 2003a, p. 436.

187PEREIRINHA, op. cit. Ver, principalmente, o capítulo segundo, intitulado “Paradoxos „cartesianos‟ de Lacan”, p. 57-67.

de construção de uma clínica sem sujeito, “automatizável e objetivável”. Nesse sentido, o projeto de compreensão exclusiva do mundo a partir dos parâmetros científicos não pode representar outra coisa senão uma “ideologia da supressão do sujeito”.

Esse argumento, contudo, serve para reforçar a hipótese de que o sujeito da psicanálise não pode ser o mesmo sujeito da ciência, pois a psicanálise é um saber e uma clínica que defende a irredutibilidade da singularidade subjetiva.

Para Duarte Pereirinha, o paradoxo resolve-se quando consideramos que ambos os sujeitos – da ciência e da psicanálise – são tributários do sujeito cartesiano. “Descartes é, assim, o nome em falta, e o cogito, o elo que permite atar, num mesmo nó, psicanálise e ciência.”189 A

seguinte frase de Lacan confirma a tese de que o sujeito da psicanálise e o sujeito da ciência são um só e provêm do cogito cartesiano:

Mas foi possível notar que tomei como fio condutor, no ano passado, um certo momento do sujeito que considero ser um correlato essencial da ciência: um momento historicamente definido, sobre o qual talvez tenhamos de saber se ele é rigorosamente passível de repetição na experiência: o que foi inaugurado por Descartes e que é chamado cogito.190

Mas essa aproximação com o sujeito cartesiano, contudo, não se faz, em Lacan, sem críticas. Afinal, Lacan também afirmou que a psicanálise é uma espécie de antifilosofia, o que tornaria enigmático, novamente, essa aproximação com o cogito cartesiano. Não obstante, o que interessa a Lacan, no cogito cartesiano; o que dele Lacan retira não é o enunciado nele manifestado, e sim a sua enunciação. Enunciar o cogito é fruto de um processo que não pode se repetir a todo instante. Daí Lacan não priorizar a construção de saber que Descartes nele depositou e sim a enunciação de uma verdade que só pode ser evanescente. Pois, de fato, esse sujeito da redução cartesiana, que desconsidera a tradição dos saberes até então instituídos e desconsidera os saberes construídos a partir das sensações, é um sujeito, em seu limite, vazio. A

189 PEREIRINHA, op. cit., p. 62. 190 LACAN, 1998b, p. 870.

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ênfase de Lacan, então, é um sujeito barrado de todo o saber e de todo ser. É essa a verdade que pesa sobre o sujeito da ciência e é, então, por isso, que o sujeito da psicanálise só pode ser o sujeito excluído da ciência, ou o sujeito foracluído pela ciência, conforme frase já estabelecida.

Essa foraclusão do sujeito explica-se pelo fato de que a ciência é fruto de um processo histórico, no caso a modernidade, e que ele terminou por ser esquecido ao longo do estabelecimento dos procedimentos práticos ou empíricos que passaram a caracterizar a ciência moderna enquanto tal. A ciência “não tem memória”, diz Lacan em A ciência e a verdade. E é dessa verdade que ela nada quer saber. E a psicanálise e o sujeito que a funda são “um correlato antinômico” da ciência, pois eles reabrem a sutura que ela se esforça, em vão, em construir em torno de seu sujeito.

Esse processo poderia desenrolar-se sem qualquer problema se não fosse o fato, constatado pela clínica psicanalítica, de que “o que foi recalcado retorna na forma de sintoma”. A foraclusão do sujeito pela ciência, dessa forma, não é algo sem consequências, mas, ao contrário, é um processo que só pode ser sintoma.

O sintoma ao qual nos referimos é um sintoma que atinge o sujeito, mas que, igualmente, manifesta-se em descompassos de ordem social.

Na própria ciência, aliás, há momentos de ruptura, como bem apontou o filósofo da ciência Thomas Kuhn. A “quebra de paradigmas”191 é fruto de anomalias internas ao próprio

processo de desenvolvimento das teorias e práticas científicas. Esses momentos caracterizam-se pelo confronto de novos “fatos” com a “objetividade” então propugnada, isto é, com o surgimento de novos “fatos” que não podem ser assimilados pelo paradigma científico então em vigor. Isso obriga a reformulação das teorias, que acabam por estabelecer, então, um novo

191O termo „paradigma‟ é definido por Kuhn como “estreitamente relacionado à „ciência normal‟”. Trata-se de realizações da ciência que partilham duas características: a) serem elas “sem precedentes”, o que ocasionou a atração de um “grupo duradouro de partidários, afastando-os de outras formas de atividade científica dissimilares”; b) “simultaneamente, suas realizações eram suficientemente abertas para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência”. (KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz V. Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1990. p. 30).

paradigma. Ora, é exatamente nesses momentos de ruptura de paradigmas – que caracteriza, em outras palavras, um impossível de se formalizar, o que reforça a tese lacaniana de que o impossível é o real – que o sujeito da ciência volta a se manifestar, na forma, de crise; para voltar a ser esquecido logo após a solução das divergências, tal qual estabelecida pelos cientistas. Isso, no entanto, torna manifesto que a “objetividade científica” só pode ser compreendida, só pode se remeter a um determinado paradigma e não à “natureza”, ela própria. Ou, se preferirmos, isso demonstra que a “natureza” é um dado de cultura, pois a leitura de seu livro – o livro da natureza – depende, fundamentalmente, dessa criação da inteligência humana, que é a ciência com seus paradigmas.

Thomas Kuhn nos fornece uma série de exemplos a respeito dos impasses que cercam a produção da ciência. Um deles refere-se ao estatuto natural da luz que foi construído num processo de saltos, de paradigma para paradigma. A primeira obra “paradigmática” desse assunto foi o livro Óptica de Isaac Newton, que ensinava que a luz era composta de corpúsculos de matéria. No século XIX, Young e Fresnel propugnaram a natureza ondulatória da luz. “Finalmente”, Planck e Einstein propuseram, a partir das teorias anteriores, que a luz é composta de fótons, isto é, de “entidades quântico-mecânicas que exibem algumas características de ondas e outras de partículas.”192 Mais importante, no entanto, é a constatação

de Kuhn de que a ideia de paradigmas da ciência aplica-se, fundamentalmente, à ciência moderna: “[...] este não é o padrão usual do período anterior aos trabalhos de Newton”193, diz

ele em referência aos diversos modelos interpretativos da natureza da luz. Para Kuhn, a ciência antiga não estabelecia paradigmas porque o “consenso” não era buscado: várias teorias conviviam simultaneamente, ainda que com pressupostos divergentes entre si. Não podemos deixar de apontar que as ideias de Kuhn convergem, em grande medida, com a posição de Koyré e de Lacan, de que a ciência moderna, de fato, é inédita.

192 KUHN, op. cit., p. 31-32. 193 Ibid., p. 31-32.

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Independentemente disso, Duarte Pereirinha nos recorda que o próprio Lacan apontou, em sua obra, outra série de episódios que marcaram esse “impossível” que invade a ciência estabelecida, de tempos em tempos. Por exemplo, a teoria dos conjuntos e as contribuições de Cantor ou a ruptura provocada na matemática pelos famosos teoremas da incompletude de Gödel.194

O que Lacan tentou demonstrar com isso é que o real é um impossível de se formalizar apesar das tentativas exaustivas da ciência. Isso provoca, então, “um certo drama subjectivo” a ponto de Duarte Pereirinha afirmar que “a histeria é o sujeito da ciência enquanto sintoma.”195

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