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A SAÚDE COMO PRINCÍPIO OU COMO POLÍTICA O CONTEÚDO E O

Parece ser conveniente, após a delimitação de argumentos de princípio e de política, enfocarmos mais detidamente a respeito do direito à saúde, o que nos permitirá fazer uma abordagem sobre seu conteúdo e alcance.

De fato, novamente em repetição, o Poder Judiciário sempre deve se manifestar em suas deliberações por meio de argumentos de princípio e isso deve ocorrer ainda que as leis tragam razões de política (policy), mesmo porque os princípios estão sempre presentes entre ou sob as estratégias norteadas por objetivos gerais. Nesse sentido, seria razoável vislumbrar que uma lei que permitisse acesso a medicamentos destinados ao tratamento de pessoas que apresentam delimitados agravos à saúde pudesse levar à discussão sobre a adequação dessa política, levando a comunidade a emitir juízos de censura ou de reverência. O mesmo não se pode dizer, entretanto, se o acesso a medicamentos estivesse condicionado a pessoas de olhos azuis ou verdes, e nada mais. Realmente, na primeira suposição é intuitivamente plausível a apresentação de posições controversas sobre a adequação da política desenhada, ao passo que na segunda algum juízo em defesa da política seria instintivamente inacreditável. Usando a metáfora espacial formulada por Dworkin (2014, p. 222), percebemos que “a integridade é nosso Netuno”41, porquanto, mesmo sem muita reflexão, sabemos que na primeira situação hipotética há princípios subjacentes à política a serem descobertos, o que não ocorre na segunda.

Diante dessa necessária relação entre políticas e princípios, percebe-se que “o interesse da integridade pelos direitos e princípios às vezes desqualifica um certo tipo específico de incoerência” (DWORKIN, 2014, p. 268), como, por exemplo, na descrição da segunda hipótese acima. Essa qualificação – que pode provocar, por óbvio, uma desqualificação – se deve porque, ordinariamente42, os programas legislativos exigem as duas espécies de argumento em conjunto, de sorte que uma estratégia que propague uma questão política em particular não prescindirá de argumentos de princípio para justificar seus

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Conforme Dworkin (2014, p. 222) mesmo argumenta, “os astrônomos postularam a existência de Netuno antes mesmo de descobri-lo. Sabiam que só um outro planeta, cuja órbita se encontrasse além daquelas já conhecidas, poderia explicar o comportamento dos planetas mais próximos”.

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O autor não é alheio ao fato de que, em certas questões, “distinções arbitrárias” podem ser aceitas, como por exemplo a proibição de estacionar em um dos lados da rua em dias alternados, porque, nesse caso, claramente não estão em jogo questões de princípio (DWORKIN, 2014, p. 217).

desígnios43, assim como será verdadeiro o reverso da medalha. Sustenta-se, desse modo, que direitos atribuídos por políticas podem ser qualificados por princípios, da mesma maneira que direitos originados de princípios podem ser qualificados por políticas44 (DWORKIN, 1999, p. 148-149).

Em consequência, a integridade no direito será consagrada, na apreciação da lei, caso os juízes fundamentem suas deliberações em razões de princípio, mas levando necessariamente a sério tanto os argumentos de princípio quanto as justificativas políticas (DWORKIN, 2014, p. 405).

Seguindo essa sofisticada representação, a nosso juízo, no contexto da ordem jurídico-constitucional brasileira, parece evidente que Constituição sublimou a saúde como um direito cuja origem reside em razões de princípio, porém deve ser qualificada por políticas. À obviedade, os juízes devem tomar essas políticas em consideração para, escrutinando os princípios subjacentes, desvelar adequadamente os direitos. Nesse contexto, o artigo 196 da Constituição Federal é expresso ao mencionar que a saúde é um direito que deve ser garantido por políticas:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (grifo nosso).

Percebe-se, desse modo, que, assim como o adjetivo qualifica o substantivo, as políticas qualificam o direito à saúde, acrescentando características ou limitando sua extensão. O direito à saúde será mal compreendido se as políticas forem escarnecidas, motivo pelo qual podemos afirmar que as políticas compõem o próprio conteúdo do direito.

De fato, como sustentam Carvalho Netto e Scotti (2012, p. 129), “independente de menção expressa na Constituição, todo direito deve cumprir uma função social, e isso integra internamente seu próprio sentido para que possa ser plausível”45. Quer isso dizer que as restrições são imanentes aos direitos individuais, na medida em que requerem um

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Aprofundar o estudo de políticas qualificadas por princípios ultrapassa os propósitos do presente trabalho, porém parece oportuno polir o argumento por meio de exemplo cogitado por Dworkin (1999, p. 148): imaginou o autor uma política que concede subsídios para fabricantes de aviões sob o pretexto de proteger a defesa nacional. Mesmo nesse caso, a política necessitará ser qualificada por princípios, de forma que tais subsídios devem contemplar fabricantes com capacidades diferentes a fim de que, inclusive os menos poderosos, não vejam suas atividades excluídas da intervenção governamental, ainda que se saiba que sem eles a indústria aeronáutica seria mais eficiente.

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Como declara Dworkin (1999, p. 149), podemos dizer que tanto “los derechos conferidos se generan en virtud de la directriz y son restringidos por el principio”, como “los derechos son generados por el principio y están sujetos a la restricción de la directriz”.

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compromisso de respeito e consideração aos direitos morais das outras pessoas. Em consequência, tais restrições estariam edificadas não externamente ao direito, mas internamente, constituindo seu próprio conteúdo e, portanto, inerentes ao seu conceito (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2012, p. 121).

Ainda nesse aspecto, Dworkin argumenta que princípios não se colidem, mas apresentam uma relação de complementaridade recíproca. Se a liberdade total do lobo é a morte para o cordeiro, então, questiona o autor, haverá “algum motivo para nos desculparmos junto ao lobo ao qual se negou seu pernil de cordeiro?” (DWORKIN, 2016, p. 164). A defesa trazida por Dworkin pode ser expressada nos seguintes termos:

Liberdade não é a liberdade de fazer aquilo que se quer; é liberdade de fazer o que se quer na medida em que se respeitem os direitos morais, devidamente compreendidos, das outras pessoas. É a liberdade de usar seus recursos legítimos ou negociar sua propriedade legítima da maneira que lhe aprouver. Assim entendida, porém, sua liberdade não inclui a liberdade de se apropriar dos recursos alheios nem prejudicar alguém com métodos que você não tem o direito de usar (DWORKIN, 2016, p. 159-160).

Assim, na medida em que os valores políticos são interdependentes em uma relação de complementaridade recíproca, a liberdade do lobo, no caso, não está colidindo com o direito do cordeiro; a liberdade do lobo não está sendo violada, porquanto, nestes termos, ela simplesmente não existe. Por conseguinte, não deve haver qualquer expressão de arrependimento diante da negativa do pernil ao lobo, inexistindo motivos para o pedido de desculpas.

Levando a sério a afirmação de que elementos restringentes de direito derivados de sua função social integram internamente o conceito do mesmo direito, podemos reforçar a ideia de que, pelo fato de os direitos originados de princípios poderem ser qualificados por políticas (policies), a política deve ser considerada ingrediente do próprio conceito de direito. Nesse sentido, as políticas devem ser entendidas e levadas a sério se quisermos entender e levar a sério os direitos, especialmente porque “o direito, entendido em sua integridade, não pode se voltar contra o próprio direito” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2012, p. 132). A política, portanto, é ingrediente, ainda que restringente, dos direitos.

Em face desse ponto de vista, mais uma vez interessa abordar os elementos conceituais das políticas públicas envolvidos por Bucci, especialmente para que possa conduzir o Poder Judiciário (e a comunidade como um todo) a um controle adequado. A autora propõe como um dos elementos, ademais da necessidade da adoção de estratégias que visam a objetivos socialmente relevantes de maneira bastante próxima ao que delineia Dworkin, a indeclinável reserva de meios necessários à consecução desses mesmos objetivos

gerais46 (BUCCI, 2006, p. 38-39). Dessa decomposição conceitual, portanto, verifica-se que a reserva dos meios necessários é elemento das políticas e, consequentemente, integra internamente o próprio conceito do direito. Essa noção será melhor elaborada nos próximos itens.

3.5 AINDA SOBRE O CONTEÚDO E O ALCANCE DO DIREITO À SAÚDE. AS