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BREVES NOTAS SOBRE A MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS (MBE)

judicial. De acordo com o relator, “esse é mais um dado incontestável” derivado da audiência pública e cujo argumento deve ser estendido indistintamente às situações em que se pleiteia judicialmente uma nova tecnologia, tanto no caso de haver quanto na hipótese de inexistir alternativa terapêutica ofertada pelo sistema público de saúde.

Porém, esses casos – em que se comprova a ineficácia ou a impropriedade da política diante de um determinado organismo de uma específica pessoa; ou em que se constata a inexistência de alternativa terapêutica – devem ser tratados como exceção, sendo injusto pretender que o mesmo tratamento, diante da análise do caso concreto, seja estendido a toda uma coletividade a partir da decisão judicial. Essa ressalva, ademais, foi suscetível de reflexão por parte do relator:

Portanto, independentemente da hipótese levada à consideração do Poder Judiciário, as premissas analisadas deixam clara a necessidade de instrução das demandas de saúde para que não ocorra a produção padronizada de iniciais, contestações e sentenças, peças processuais que, muitas vezes, não contemplam as especificidades do caso concreto examinado, impedindo que o julgador concilie a dimensão subjetiva (individual e coletiva) com a dimensão objetiva do direito à saúde.

Além disso, importante atentar para o fato de que o surgimento de uma nova tecnologia não pode e não deve significar, automática ou celeremente, a sua incorporação ao SUS, e isso também não deve significar qualquer problema para o direito como integridade. Interessa avaliarmos dessa forma porque, caso contrário, o direito estaria necessariamente manietado às evoluções particulares das indústrias, de maneira que a criação do direito estaria praticamente subordinada aos comportamentos das empresas privadas – seja porque inovadores, seja porque apenas como reflexo da estratégia de mercado – e os profissionais de saúde que prescrevessem tais tecnologias seriam, ao fim e ao cabo, os agentes criadores das políticas de assistência e suas prescrições seriam como que as notas de empenho. Sem falar que isso ocasionaria problemas práticos insolúveis, imaginando que, a cada nova tecnologia lançada, novas licitações deveriam ser abertas, o que tornaria os produtos antigos e obsoletos (muitas vezes, paradoxalmente, derivados de inovações recentes), apesar de ainda preencherem as prateleiras do Poder Público.

4.1 BREVES NOTAS SOBRE A MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS (MBE)

Consoante foi sublinhado nos termos do precedente da STA nº 175, o SUS sabidamente filiou-se à corrente da medicina baseada em evidências (MBE), a qual pode ser

definida “como o elo entre a boa pesquisa científica e a prática clínica”, de sorte que “boas pesquisas científicas objetivam reduzir a incerteza na área da saúde para ajudar na tomada de melhores decisões clínicas” (EL DIB, 2007). Essa corrente é muito importante em qualquer decisão clínica e ganha contornos de essencialidade em sistemas de saúde que se pretendem universais. A sua adoção pelo SUS fica clara com a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, alterada pela Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Em seu art. 19-Q, § 2º, que dispõe sobre os critérios para a incorporação de tecnologias no SUS, assenta-se:

§ 2º O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS levará em consideração, necessariamente:

I - as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso;

II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível (grifo nosso)

Além disso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recentemente aprovou a Resolução nº 238, de 6 de setembro de 201687, instando os Tribunais a criarem órgãos de assessoramento técnico a fim de elaborarem “pareceres acerca da medicina baseada em evidências” para auxiliarem os magistrados na tomada de decisões diante das demandas judiciais envolvendo o direito à saúde. Essa recente norma administrativa é uma decorrência da Recomendação nº 31, de 30 de março de 201088, e da Resolução nº 107, de 6 de abril de 201089, ambas do CNJ, aquela recomendando aos tribunais a adoção de medidas para auxiliar os magistrados e demais atores do direito na solução de litígios envolvendo demandas de saúde e esta instituindo o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução de demandas da mesma problemática. Não é demais ressaltar que essas medidas tomadas pelo CNJ são consequências diretas da Audiência Pública nº 4 do STF.

Ainda, o mesmo CNJ promoveu, como ações do Fórum Nacional do Judiciário, duas jornadas nos anos de 2014 e 2015, com ampla e plural participação de magistrados, membros do Ministério Público, gestores e profissionais de saúde, além de interessados em geral, resultando na aprovação de enunciados cujo objetivo é auxiliar na interpretação sobre a saúde como direito acerca dos mais variados assuntos de saúde pública, saúde suplementar e

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Conteúdo disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n238-06-09-2016- presidncia.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2017.

88

Conteúdo disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/recomendao-n31-30-03-2010- presidncia.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2017.

89

Conteúdo disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n107-06-04-2010- presidncia.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2017.

biodireito90. Restritamente ao assunto que estamos tratando – a corrente da medicina baseada em evidências –, são cinco os enunciados aprovados:

16 - Nas demandas que visam acesso a ações e serviços da saúde diferenciada daquelas oferecidas pelo Sistema Único de Saúde, o autor deve apresentar prova da evidência científica, a inexistência, inefetividade ou impropriedade dos procedimentos ou medicamentos constantes dos protocolos clínicos do SUS. 18 - Sempre que possível, as decisões liminares sobre saúde devem ser precedidas de notas de evidência científica emitidas por Núcleos de Apoio Técnico em Saúde - NATS.

29 - Na análise de pedido para concessão de tratamento, medicamento, prótese, órtese e materiais especiais, os juízes deverão considerar se os médicos ou os odontólogos assistentes observaram a eficácia, a efetividade, a segurança e os melhores níveis de evidências científicas existentes. Havendo indício de ilícito civil, criminal ou ético, deverá o juiz oficiar ao Ministério Público e a respectiva entidade de classe do profissional.

50 - Salvo prova da evidência científica e necessidade premente, não devem ser deferidas medidas judiciais de acesso a medicamentos e materiais não registrados pela ANVISA ou para uso off label.

59 - As demandas por procedimentos, medicamentos, próteses, órteses e materiais especiais, fora das listas oficiais, devem estar fundadas na Medicina Baseada em Evidências.

Não obstante a preocupação e a linha adotada pelo SUS, é comum que o Poder Judiciário defira medidas liminares sem maiores preocupações com tais evidência científicas, consoante demonstra estudo de Pepe et al (2010). Em uma amostra de 185 processos em tramitação no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, os autores observaram que em 100% dos casos as liminares foram concedidas, sendo que em nenhum deles houve a determinação de providências relativas ao mérito antes dessa deliberação inicial91. Desses processos, foi possível identificar o medicamento apenas em 98 deles, porém “em 80,6% havia a solicitação de ao menos um medicamento não pertencente aos elencos oficiais”, o que sugere um determinado dissenso com as evidências científicas. Ademais, diante desses dados – alto índice de liminares e o baixo número de exigências complementares antes da análise da liminar, sobretudo tendentes apenas à comprovação da hipossuficiência –, concluem os autores que o principal respaldo documental são os “fornecidos pelo demandante, em geral, os receituários médicos”.

90

Os enunciados estão disponíveis nos seguintes endereços eletrônicos: I Jornada, <http://www.cnj.jus.br/images/ENUNCIADOS_APROVADOS_NA_JORNADA_DE_DIREITO_DA_SAUDE_

%20PLENRIA_15_5_14_r.pdf>; II Jornada,

<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/05/96b5b10aec7e5954fcc1978473e4cd80.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2017.

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Registrou-se que em 9,6% das ações se exigiu providência anterior à concessão de liminar, limitada todavia à regularização de documentos civis (e não médicos) ou, mais frequentemente, a comprovação da hipossuficiência.

Outro estudo com viés semelhante indicou informações aproximadas. Marques e Dallari (2007), em pesquisa em livros de sentença abrangendo 71,4% das Varas da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, com uma amostra de 31 processos, extraíram os argumentos preponderantes nas peças processuais dos juízes, autores e réus. Em 100% das petições iniciais constava o argumento de que o medicamento prescrito pelo médico “representa um avanço científico e é o único capaz de controlar a moléstia que lhe acomete” e mais de 80% das decisões judiciais consideraram que “questões políticas não podem disciplinar ou condicionar o exercício” do direito à saúde, mais especificamente o de acesso a medicamentos. Como resultado, 93,5% das decisões concederam liminar em favor do autor, tendo 90,3% das ações sido julgadas procedentes, com a observação de que não houve nenhuma decisão improcedente no tocante ao exame do mérito.

Ambos os estudos sugerem, portanto, a tendência de conferir importante ou mesmo preponderante valor à opinião dos profissionais prescritores. Entretanto, para a MBE, as opiniões de especialistas apresentam o mais baixo nível de evidência científica na análise da prática clínica. Com efeito, os níveis de evidência científica apresentam uma ordem hierárquica, diante do que os estudos que apresentam níveis mais elevados devem ser dominantes sobre os mais baixos. El Dib (2007) apresenta oito níveis de evidências, a saber:

[...] as revisões sistemáticas com ou sem metanálises (consideradas nível I de evidências), seguidas dos grandes ensaios clínicos, denominados mega trials (com mais de 1.000 pacientes – nível II de evidências), ensaios clínicos com menos de 1.000 pacientes (nível III de evidências), estudos de coorte (não possuem o processo de randomização – nível IV de evidências), estudos caso-controle (nível V de evidências), séries de casos (nível VI de evidências), relatos de caso (nível VII de evidências), opiniões de especialistas, pesquisas com animais e pesquisas in vitro. As três últimas classificações permanecem no mesmo nível de evidência (nível VIII de evidências)92 [...].

Assim, as prescrições dos profissionais que embasam os pedidos judiciais, quando divorciados de outros elementos de convicção fundamentados na medicina baseada em evidências, são tratados como meras opiniões de especialistas, apresentando, por conseguinte, menor grau de evidência científica. Essa constatação demonstra que o simples afastamento das políticas de saúde, quando estas são qualificadas por bases científicas, não representa apenas o desprezo pela política constituída, mas o desprezo pelo conhecimento científico no qual está embasada.

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Cabe repetir a ressalva da autora de que “a hierarquia dos níveis de evidências apresentada acima é válida para estudos sobre tratamento e prevenção. Portanto, se a questão formulada for relacionada a fatores de risco, prevalência de uma doença ou sensibilidade e especificidade de um teste diagnóstico, a ordem dos níveis de evidências apresentados será modificada em virtude da questão clínica” (EL DIB, 2007).