• Nenhum resultado encontrado

3 A CONSTRUÇÃO DA COMUNICAÇÃO SOBRE O NEGRO E A

3.2 A Construção Sistêmica da Escravidão

3.2.1 A “Segunda Escravidão” como Escravidão Sistêmica

A leitura que propomos da escravidão do século XIX parte, inicialmente, da concordância com a tese da “segunda escravidão”. Contudo, usamos essa perspectiva como ponto de partida apenas por entendermos que o sistema escravista alcança, neste período, elementos que corroboram para a identificação de processos de diferenciação funcional nas américas, portanto, no Brasil.

206 Especialmente no caso do algodão, base nascente da indústria têxtil formada pela revolução industrial inglesa, as plantation estadunidenses são reanimadas pela expansão capitalista europeia. Revolução Industrial do século XIX e Segunda escravidão são um só fenômeno, de reforço sistêmico. Ver: OLMSTEAD, Alan; ROHDE, Paul. Biological innovation and productivity growth in the antebellum cotton economy. NBER, Working Paper, [S.l.], n. 14142, p. 22, jun. 2008.

207 A análise mais profunda dessas culturas econômicas, o seu papel para o desenvolvimento da escravidão na América está em: GRAHAM, Richard. Economics or culture? the development of US South and Brazil in the Days of Slavery. In: GISPEN, Kees (Ed.) What made the south different? Jackson: University Press of Mississippi, 1990. p. 109.

O ponto relevante dessa leitura está em observar como as comunicações sobre escravidão vão ganhando autonomia operacional de sentido ao longo do século XIX, isto é, a escravidão vai alcançando contornos econômicos, jurídicos, políticos e até religiosos neste período208. Isso ocorre devido ao fato de a complexidade, que emerge na diferenciação social na América Latina, substituir a sustentação consuetudinária da prática escravista, passando a formar estruturas sistêmicas para a nova dinâmica da escravidão moderna209.

Dentro desse contexto de leitura sistêmica da relação da escravidão com a dinâmica capitalista europeia, um dos pontos que vem sendo mais trabalhado pela história é a posição da Inglaterra (do Império Britânico), que emerge como postulante do fim do tráfico negreiro no século XIX.

Ora, as contradições se apresentam justamente pelo fato de a Inglaterra se consolidar nesse período como centro de um denso processo de industrialização. É justamente esse processo que coloca uma forte demanda por matéria prima oriunda da América Latina e Estados Unidos, produzidas justamente como mão de obra escrava. Contudo, é esse mesmo Império Britânico que comunicará, politicamente, um sentido abolicionista ao longo do século XIX, e atuando, especialmente com sua frota naval militar, no combate ao tráfico negreiro.

208 A posição da segunda escravidão se mostra consistente justamente por ver no século XIX, identificado por muitos como momento de derrocada do sistema escravista, como o período de apogeu da escravidão moderna, o ápice econômico da escravidão. Como afirma Dale Tomich: “Beneath the apparent uniformity of nineteenth-century slave emancipation we find complex and differenciated trajectories and outcomes that are traceable to the position of particular slave systems within the world economy”. TOMICH, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. Boulder: Rowman & Littlefield, 2004. p. 57.

209 Nesse ponto adotamos a crítica feita por Rafael de Bivar Marquese, no que se refere ao desinteresse que certas linhas históricas acabaram tendo para com o papel do capitalismo na configuração do sentido econômico da escravidão. Segundo ele: “Tomado por esse “novo ‘paradigma’, ou linguagem teórica”, como uma categoria abstrata, incapaz de conferir inteligibilidade a processos vividos por sujeitos de carne e osso, o conceito de capitalismo acabou por ser abandonado, nas últimas duas décadas, pelos historiadores que escreveram sobre o passado escravista brasileiro. Temas como os padrões culturais de escravos e afrodescendentes livres, a resistência escrava, o imaginário sobre o negro, o trabalhador nacional e o imigrante, ou, então, as lutas jurídicas e políticas em torno da legitimidade da escravidão passaram a ocupar o primeiro plano da atenção dos especialistas. A despeito dos inegáveis méritos dessa historiografia, cuja contribuição para o melhor entendimento da história da escravidão no Brasil é definitiva, ela conduziu a um descaso como os processos históricos de longa duração e os quadros globais mais amplos nos quais se inscreveu o sistema escravista brasileiro. Adotando uma concepção de história que a encara como um vasto campo de indeterminação resultante de múltiplas agências locais equivalentes, os historiadores que trataram a crise da escravidão brasileira sob o prisma da história social e cultural acabaram por se aproximar, talvez de modo inadvertido, de alguns dos pressupostos teóricos da New Economic History, em especial seu individualismo metodológico”. MARQUESE, Rafael de Bivar. Capitalismo, escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo século XIX. Sæculum–Revista de História, [S.l.], v. 1, p. 292-293, 2013.

Ora, se é inegável que no Império Britânico se organizam comunicações no sistema político que apontam para uma visão liberal antiescravista, no sistema econômico, os produtos da escravidão são imunizados em relação à sua origem, isto é, a presença e manutenção da mão de obra escrava não afetava o reconhecimento econômico desta operação. O que, portanto, constitui-se como um claro exemplo do início do processo de diferenciação funcional, onde o sistema político e o econômico se autonomizam, operando para formação de suas fronteiras noéticas na significação da comunicação da escravidão.

Primeiro, há que se pontuar que, embora a Inglaterra realmente se destaque pela construção de uma comunicação político-jurídica voltada para o fim do tráfico negreiro, ela pratica, ao mesmo tempo, uma ação de forte expansão imperial nas Índias e, também, fomenta a Guerra do Ópio na China.

De fato, a Inglaterra vai proibir o tráfico transatlântico de escravos em 1807, e a escravidão só será abolida em 1838 em todo Império Britânico. Esse evento é resultado de uma forte pressão doméstica abolicionista, mas, antes de tudo, há que se registrar que, especialmente a proibição do tráfico negreiro, ocorre em um período de confronto na Europa, especificamente, em meio as guerras napoleônicas. Parte do sentido político da proibição do tráfico negreiro está, portanto, ligado claramente a uma ação que visava prejudicar a França nesse processo210.

A Inglaterra contava com o domínio marítimo da região e, com a política de proibição do tráfico negreiro, visava tanto responder às pressões internas, como reestruturar uma nova ordem geopolítica na região. Nesse quadro político evolutivo, em 1815 ocorre o congresso de Viena. Nesse momento, a postura inglesa é a de quem claramente usa politicamente a proibição do tráfico negreiro sobre os demais países. São consistentes as narrativas na historiografia desse período, posto que trazem elementos que corroboram para uma interpretação nesse sentido, ou seja, a proibição do tráfico negreiro passa a ser uma linha de reconfiguração geopolítica, posto que a Inglaterra passa a utilizar essa questão como forma de influência política nas relações entre os países211.

210 Para um aprofundamento desse tema, ver: ANSTEY, Roger. A re-interpretation of the abolition of the British slave trade, 1806-1807. The English Historical Review, [S.l.], v. 87, n. 343, p. 304- 332, 1972.

211 Sobre este movimento, bem descreveram Boccia e Malerbi: “Já durante as guerras napoleônicas, a Inglaterra exercia uma relativa fiscalização nos mares, a qual foi intensificada nos anos posteriores; desde 1808, a Grã-Bretanha usa dos direitos de busca próprios de períodos de guerra, para capturar navios negreiros e enviá-los como presas de guerra à Corte do Vice-

Diante disso, o que podemos observar nesse evento, sob uma perspectiva sistêmica, é que o que ocorre é a formação de uma semântica política de combate ao tráfico negreiro pela Inglaterra, mas que não representava automaticamente uma desconformidade com a escravidão. A manutenção do tráfico negreiro para a Inglaterra representava muito mais uma ameaça para sua hegemonia no controle dos mares, tanto política como econômica. Embora se reconheça o surgimento de um campo interno abolicionista, com capacidade de ressonância na programação do sistema político, que chegará à proibição do tráfico negreiro, acima de tudo, sua operação era, contraditoriamente, conviver com a manutenção da escravidão no Império Britânico por décadas. Isso nos leva a concluir que, de fato, tal comunicação supostamente libertária, tem na verdade um sentido político mais voltado ao papel no que a Inglaterra vai se colocar: o de mediação da relação dos novos países.

Pensando aqui no Brasil e em outros países que alcançam a sua independência nesse período, destaca-se que uma nova forma sistêmica de organização política passa a se desenvolver na época: a configuração dos estados nacionais. Nesse sentido, para uma sinalização metodológica, de como tratamos sistemicamente essa categoria, cabe aqui a precisa afirmação de Dario Rodríguez:

El concepto de Estado nacional es ambivalente: la sociedad regional es una nación y debe ser completada con la realidade, por ejemplo, con una lengua común, una religión comum, una moeda única y un sistema legal común, independiente de los usos y costumbres locales. [...] La coincidencia de la retórica nacional con el passo de la diferenciación a la funcional tiene que ver con un conjunto de cambios que experimenta la sociedad europea: la revolución francesa no sólo afecta a Francia; ni la monetarización ni la industrialización son peculiaridades nacionales. Por esta razón es que la Nación se contruye como el despliegue de una paradoja: se concibe de manera particularista hacia afuera y universalista hacia adentro. El concepto de Nación hace que la autodescripcíon de la sociedad obtenga una identidad fácil de representar, lo que permite

Almirantado inglês. Logo, a marinha britânica toma para si o direito de visita, busca e apreensão

de navios negreiros de todas as nações que haviam declarado ilegal o tráfico de negros, mas ainda prosseguiam em tal prática. […] No Congresso de Viena (1815), a Grã-Bretanha volta a insistir na cessação geral do comércio de escravos, tendo seus interesses representados por Lord Castlereagh. O principal encarregado de reorganizar a Europa e manter a paz, fez do tráfico de escravos um dos assuntos mais importantes do Congresso, usando mesmo de ameaças para obter sua completa cessação, ao menos ao norte do Equador. A Rússia, a Áustria e a Prússia cooperaram para a efetivação dessa medida, uma vez que não possuíam interesses coloniais; já a França, a Espanha e Portugal recusaram-se a efetivar a proposta, em vista da necessidade da mão-de-obra negra em seus impérios coloniais”. BOCCIA, Ana Maria Mathias; MALERBI, Eneida Maria. O contrabando de escravos para São Paulo. Revista de História, São Paulo, n. 112, p. 325-326, 1977.

activar recursos de una manera que sería imposible para los sistemas funcionales. De hecho, el concepto de Nación oferece una inclusión que no depende de las conficiones particulares de los sistemas funcionales y que obliga a la política a respetar como iguales a todos los que pertenezcan a la misma Nación.212

O que sistemicamente se observa nesse processo é a paradoxalidade que irá marcar, desde o seu início, a figura do Estado Nacional que se desenvolvia. Da mesma forma que o século XIX indica a potencialização da diferenciação funcional caracterizadora da modernidade, com a autonomia dos sistemas sociais no controle dos seus processos de inclusão, ele também aponta para o desenvolvimento da semântica do Estado nacional. E, como afirma Dario Rodriguez, o Estado nacional começa a se desenvolver, justamente, como ação de pressão sobre os sistemas sociais, ou seja, como estrutura de limitação aos processos de inclusão/exclusão dos sistemas sociais.

Portanto, o que lemos a partir dessa categoria, é que para o Império Britânico a proibição do tráfico negreiro e a posterior abolição da escravidão possuem um sentido político claro, de legitimação da interferência britânica na construção da dinâmica dos Estados nacionais. Esse fato tem um sentido político que convive com facilidade com o sentido econômico da exploração da escravidão dentro da cadeia de produção industrial inglesa, como forma de desenvolvimento do sistema capitalista do século XIX.

Do ponto de vista econômico, o produto da mão de obra escrava opera com naturalidade, encontrando respaldo na revolução industrial inglesa. Dois exemplos dessa dinâmica são a produção de café no Brasil e a produção do açúcar em Cuba. Todos esses bens, produzidos na época com o trabalho escravo e, mesmo que a Inglaterra do século XIX não tenha o hábito de consumir o café, toda a operação comercial desse produto para Europa é viabilizada pela Inglaterra.

Como a Inglaterra demandava na expansão da sua revolução industrial o algodão, produzido especialmente pelos estados sulistas americanos - sendo que este foi a matéria-prima essencial da economia industrial do século XIX - o café também irá entrar na engrenagem dessa dinâmica econômica. O consumo do café, como produto massificado, ocorre pelo seu uso como estimulante para os

212 MANSILLA, Darío Rodríguez. Los límites del Estado en la sociedad mundial: de la política al derecho. In: NEVES, Marcelo (Ed.). Transnacionalidade do direito: novas perspectivas dos conflitos entre ordens jurídicas. São Paulo: QuartierLatin, 2010. p. 27.

trabalhadores urbanos, passando à condição de uma bebida entre refeições. Contudo, era intensa a conexão da economia cafeeira brasileira escravista com o a mercado estadunidense, como comprova tabela abaixo:

Tabela 1 - Destinação das exportações brasileiras de café em 1945

Fonte: Anuário político, 1847, p. 403 apud MARQUESE, Rafael de Bivar 213

O que vemos pela projeção do comércio da época é que praticamente metade do volume das exportações brasileiras de café tinham como destino os Estados Unidos da América. Esse vínculo só foi se potencializando ao longo do século XIX214, chegando, ao final, a valores da ordem de 75% das exportações brasileiras de café destinadas ao mercado Estadunidense.215

Portanto, a comunicação da escravidão começa a ser observada pelos sistemas político e jurídico como como uma prática negativa, especialmente na Europa. Isto é, o sentido político e jurídico da escravidão nessas regiões passam a gravitar sob a designação de ilegítimo e, em alguns casos, torna-se ilícito. Por outro lado, a escravidão se mantém aceita nos processos de operação econômica de áreas até então periféricas.216

213 MARQUESE, Rafael de Bivar. Estados Unidos, segunda escravidão e a economia cafeeira do Império do Brasil. Almanack, [S.l.], v. 1, n. 5, p. 54, 2013.

214 Ver: BERGAD, Laird W. The comparative histories of slavery in Brazil, Cuba, and the United States. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 158-161.

215 Para dados desse processo, ver: SAMPER, Mario; FERNANDO, Radin. Historical statistics of coffee production and trade from 1700 to 1960. In: CLARENCESMITH, William Gervase; TOPIK, Steven (Ed.). The global coffee economy in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 418 e p. 432.

216 Na linha Dale Tomich, a divisão internacional do trabalho se reorganiza para acomodar essa nova dinâmica escravista nas colônias representadas pelo Novo Mundo. Ver: TOMICH, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. Boulder: Rowman & Littlefield, 2004. p. 56-71.

Dessa forma, uma postura histórica que é tradicionalmente observada como contraditória, muito devido a metodologias de interpretação moralistas, presentes dentro de um evolucionismo linear causalista sobre a sociedade, e sobre o seu desenvolvimento histórico, na verdade, pode ser descrita sistemicamente como um típico caso de fechamento operativo dos sistemas sociais. Economia, direito e política começam a formar seus circuitos de autorreferência e heterorreferência, reconstruindo a partir dos seus códigos o sentido da escravidão.

A proibição do tráfico negreiro, bem como a posterior abolição da escravidão, como iremos ver de forma mais detalhada no contexto brasileiro, são eventos comunicativos que são construídos socialmente a partir dos sistemas sociais, a partir do sentido interno desses sistemas, onde a semântica desses eventos é produzida dentro da lógica própria de cada sistema social, pressupondo as estruturas de cada um, dentro dos seus programas e códigos próprios.

Contudo, se na Europa a abolição alcançava suporte estrutural no sistema da política e do direito, a virada dos anos 30 no século XIX representou um momento de reorganização da economia escravocrata, principalmente para Brasil, Estados Unidos e Império Espanhol. Essa reorganização tem como foco a sustentação econômica da escravidão por esses atores políticos, frente ao aumento da pressão internacional pela abolição da escravidão. Essa reorganização é apontada por alguns historiadores como uma espécie de “Internacional escravista”217, tendo em

217 Como bem descrevem Tâmis Parron e Rafael de Bivar: “Longe de ser meramente formal, essa diferença pode ser mais bem compreendida se analisada à luz do sistema interestatal do século XIX: a natureza do discurso escravista do Sul e a projeção dos Estados Unidos no cenário internacional, com sua bem-sucedida política de incorporação de outros territórios no norte da América, cavaram no sistema interestatal um espaço de autonomia relativa vital à sobrevivência da escravidão em países periféricos como o Império Espanhol e o Brasil. E não podia ser de outro modo: quem podia ser levado a sério em Londres, quem dispunha de um Estado militarmente relevante (tendo derrotado a própria Grã-Bretanha duas vezes), quem fornecia o principal insumo da Revolução Industrial não eram os cafeicultores do Vale do Paraíba nem os donos de engenho do Ocidente de Cuba, mas os proprietários brancos, protestantes e membros de uma comunidade cultural inglesa que produziam algodão no sul dos Estados Unidos. Enquanto atores brasileiros e hispano-cubanos responderam a interlocutores imediatos de suas respectivas unidades políticas ou dialogaram com a Grã-Bretanha em canais quase exclusivamente diplomáticos, os atores sulistas procuraram operar também na arena internacional, publicando escritos para serem lidos fora do país na esperança de reverter a gradual construção de um consenso antiescravista no Ocidente. Dito de outra maneira: a atuação ousada dos norte-americanos, ensejada por querelas locais, pela centralidade do algodão na economia-mundo industrial e pela posição internacional de seu Estado, foi um fator de estabilidade para a existência da escravidão em outros espaços, tornando menos necessárias, neles, formulações discursivas e ideológicas tão contundentes, uma vez que inibia, no plano doméstico, articulações emancipacionistas e, no internacional, pressões diplomáticas contra o tráfico ou a escravidão. Esse ponto demonstra, em resumo, a necessidade de abandonarmos as categorias interno/externo na análise dos processos de formação dos Estados nacionais. Todos eles, afinal, se formaram no teatro unificado do moderno sistema

vista a resistência econômica da escravidão que irá se dar na integração entre Estados Unidos, Cuba e Brasil.218

O que podemos observar é que na diferenciação funcional das Américas do Sul e do Norte, esse processo econômico de manutenção da escravidão frente à pressão europeia, em especial da Inglaterra, desenvolve-se simultaneamente com o processo político, que leva nessa época à construção dos Estados nacionais. Em outras palavras, é curioso observar que os processos de independência que se produzem ao final do século XVIII, e que se potencializam no século XIX, constituem-se imediatamente como eventos de reinvenção e sustentação da escravidão negra nas Américas.

Nos Estados Unidos, esse acoplamento entre sistema econômico e político fica evidente, pois basta observarmos que a representação política dominante em Washington era dos senhores de escravos dos Estados do Sul. Estes eram os grandes produtores do algodão vendido para a Inglaterra na época, a partir da mão de obra escrava, e detinham o poder político dos Estados Unidos nesse período.

Logo, a escravidão se mantém mesmo com o desenvolvimento de pressões políticas externas abolicionistas e, para isso, a ação dos Estados Unidos é peça fundamental. O protagonismo estadunidense se mostra inclusive na relação com Cuba que, mesmo ainda sob domínio espanhol, desenhava-se como campo de forte influência econômica estadunidense, posto que era seu maior comprador de açúcar219.

mundo, simultaneamente global e local. PARRON, Tâmis Peixoto; MARQUESE, Rafael de Bivar.

Internacional escravista- a política da segunda escravidão. Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p. 111, Dec. 2011.

218 Dentro de um exame historiográfico dessa relação, com foco especial no Brasil e em Cuba, cabe referir a tese Entre a escrita e a prática: direito e escravidão no Brasil e em Cuba, c.1760-1871, de Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, sob a orientação de Rafael de Bivar Marquese e que bem resume esta dinâmica. Segundo Waldomiro: “A prática da escravidão no Novo Mundo foi fortemente impactada pelas transformações que permearam a consolidação da hegemonia britânica no sistema-mundo moderno no período que se seguiu à Guerra dos Sete Anos (1756- 1763). Com a decorrente reestruturação da divisão internacional do trabalho, foram criadas as