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I. 3 “A Carta Roubada”, o falo e a mascarada

I.5. a Semblante, gozo e efeito de feminização

Comecemos com os semblantes.

Para Lacan (1971/2009), os semblantes estão na natureza: um arco-íris, um meteoro. Por serem capturados pelo olhar, poderíamos pensar que eles estariam no campo das imagens, do imaginário. Contudo, para Lacan os trovões também entram naquela série. Desta forma, os semblantes não se definiriam apenas pelas imagens, mas “por serem um sinal, mesmo não sabendo sinal de quê” (Lacan, 1971/2009, p. 15). De fato, eles estão no campo do parecer, do sinalizar algo para alguém. Assim, ao qualificá-los como um sinal, convocamos a dimensão do signo. Nesse sentido, tanto a imagem como um significante podem funcionar como semblante, o que coloca os registros do imaginário e do simbólico em certa equivalência.

Essa é uma posição diferente da que acompanhamos em Lacan nos anos 1950. Naquele tempo, em que Lacan formalizava a psicanálise em termos linguísticos, existia uma promoção do simbólico em detrimento do imaginário. Reconhecemos esse movimento inclusive em “O seminário…” (1956). Acompanhamos a importância dessas elaborações lacanianas, mas, também, é possível reconhecer seus limites, por exemplo, ao abordar o gozo.

Nesse sentido, o efeito de feminização produziria um “resto” do que não foi explicado pelo simbólico ou pelo imaginário. Em psicanálise, como o próprio Lacan (1956/1998, p. 14) recomenda, não devemos desprezar os restos. Assim, o efeito de feminização da carta/letra é retomado vinte anos depois, no Seminário 18. Neste, tal efeito ocupa um lugar central:

Fica claro que é unicamente em função dessa circulação da carta que o ministro nos mostra, no correr do deslocamento da referida carta, variações tais como as variações de cor de um peixe a deslizar. Na verdade, sua função essencial, com a qual todo o meu texto joga um pouco abundante demais – porém é impossível insistir nisso em demasia para nos fazer ouvir – articula-se ao fato de que a carta tem um efeito feminizante (LACAN, 1971/2009, p. 96 – grifos nossos).

Assim, se em “O seminário…”, diante da circulação da carta/letra se destacava a determinação do sujeito pelos deslocamentos significantes, na década de 1970 o “essencial”

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Isso seria, segundo Miller (2011a), um importante passo para a equivalência dos três registros simbólico, imaginário e real (p. 12).

daquela circulação é o “efeito feminizante”. É interessante observarmos que, embora esse efeito tenha sido descrito de forma abundante naquele texto, tal como um peixe escorregadio que desliza n’água e sofre lânguidas variações de cor, ele não foi apreendido. Lacan (1971/2009) justifica essa dificuldade: “é impossível insistir nisso [efeito feminizante] em demasia para nos fazer ouvir” (p. 96). Dessa maneira, o efeito feminizante não foi totalmente explicado pela “insistência” da articulação significante. Trata-se de algo que não é totalmente apreendido pelos semblantes, embora tenha sido coordenado por eles. Situar-se-ia, também, como algo “que não fosse” dos semblantes.

A forma hipotética “que não fosse” já anuncia que existe uma dificuldade em articular o que está alhures aos semblantes. Contudo, Lacan, ao valorizar o efeito de feminização, não deixa de colocar essa questão: mas, então, “do que [se] trataria ali onde isso não fosse semblante?” (Lacan, 1971/2009, p. 19).

Para Lacan (1971/2009, p. 19) esse campo foi preparado por Freud em “Para Além do Princípio do Prazer”, a partir da repetição e do gozo. De acordo com Miller (cf. 2011a, p. 11), desde que Lacan redefine o gozo em O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, imaginário e simbólico se confundem. Tomando o gozo como o que ultrapassa o princípio do prazer, podemos situá-lo como o que não é totalmente absorvido pelo imaginário ou pelo simbólico.

Desta forma, embora o gozo não seja o real35, não deixa de indicá-lo, pois demonstra que algo insiste e resta ao que pode ser situado pela linguagem. Assim, uma forma de caracterizarmos o real seria como um “‘resto’ impossível de transmitir” (Roudinesco e Plon, 1998, p. 645). É a partir dessas considerações que podemos entender o que Miller (2011a, p. 12) propôs quando afirmou que, quando Lacan introduz o gozo em O Seminário, livro 7: A

ética da psicanálise, isso teve como efeito que o simbólico e imaginário fossem representados

pela categoria de semblante e se opusessem à categoria do real.

No Seminário 18, uma das formas de pensar o real seria a partir do aforismo lacaniano de que para os humanos: “não existe relação sexual” (Lacan, 1971/2009, p. 60). Isso pode ser explicado pelo fato de que o homem, ao ser afetado pela linguagem, cria um paradoxo: a relação sexual distancia-se do orgânico e passa a não ser mais inscritível na determinação da sexualidade instintiva ou biológica. Nesta, situamos tranquilamente um macho e uma fêmea

35 Vale aqui uma rápida introdução do que seria o real para Lacan, ainda que corramos o risco de fornecer uma definição muito simplificada, dado a complexidade dessa noção. Na concepção de Roudinesco e Plon (1998), o real é um termo introduzido inicialmente por Lacan em 1953 para designar “uma realidade fenomênica que é imanente à representação e impossível de simbolizar” (p. 645). Mais adiante no ensino de Lacan, o real é abordado como uma categoria. Assim, o real, o imaginário e o simbólico ganham o estatuto de registros diferentes, a partir dos quais a subjetividade humana se constitui: “Lacan deu o nome de R.S.I. (Real, Simbólico e Imaginário) ao tríptico em que o real é assimilado a um ‘resto’ impossível de transmitir, e que escapa à matematizacão” (Roudinesco e Plon, 1998, p.645).

pela sua anatomia. Com essa polaridade escrita em nível orgânico, teríamos uma prescrição da sexualidade determinada pelo instinto.

Por outro lado, nos humanos não há como escrever a relação sexual. Como formula Vieira (1998), “a linguagem não dá conta da relação sexual como algo que poria em relação o homem e a mulher, o masculino e o feminino; deste modo a relação sexual não é enunciada na linguagem, ela não é inscritível...” (p. 169). Para Lacan (1971/2009), um exemplo disso seria o que se pode escrever da sexualidade através do “cromossomo e sua combinação XY ou XX ou XX, XY. Isso não tem absolutamente nada a ver com aquilo de que se trata… [n]as relações entre o homem e a mulher” (p. 29).

Vimos que, tanto o exemplo da mascarada como aquele dos personagens feminizados no conto de Poe, testemunham que, embora um ser humano possa nascer com as características anatômicas de um gênero (homem ou mulher), ele pode apresentar-se como masculino ou feminino ou, alternadamente, como ambos. Nessas ocorrências, trata-se de um “parecer”, de algo no campo da aparência.

Ora, se não nos situamos a partir da inscrição biologia como machos ou fêmeas, como explicar que nos apresentemos como homens ou mulheres? Por exemplo, como explicar que um homem viril como o Ministro D. feminize-se ao tentar esconder a carta de Dupin? Que a paciente de Riviere, embora masculina, disfarce-se de mulher sedutora diante dos colegas de trabalho? Então, como entender que “afinal, nós fazemos amor…”? (Lacan, 1971/2009, p. 101).

É exatamente para responder a essas perguntas que a releitura dos efeitos de feminização é importante. Pois, para avançarmos nessa questão, é preciso acrescentar a consideração de algo que é do campo dos semblantes ao que originalmente não pertence a esse campo: o gozo.

Tal como já adiantamos, a novidade para Lacan é que no seminário dos anos 1970 o falo é um semblante, que se presta a coordenar algo do campo do gozo. Assim, o falo permitirá pensar “o gozo sexual como coordenado com um semblante, como solidário a um semblante” (Lacan, 1971/2009, p. 31)

Para isso, se retomarmos a frase lacaniana que orienta nossa leitura do efeito de feminização neste capítulo – “Estou falando sobre o falo e ninguém nunca falou melhor dele” (Lacan, 1991/2009, p. 88 – grifos nossos) –, observamos que no Seminário 18, temos uma interpretação ainda mais radical para essa frase. Talvez, trate-se, aqui, de pensarmos os limites do dizer. Lembremos que uma das principais características dos personagens de Poe é que aquele que detém a carta/letra “cala-se” (Lacan, 1955/1985, p. 252).

Sendo assim, após situarmos as noções de falo, gozo e semblante podemos, enfim, determinar qual seria a novidade proposta por Lacan. Ela articula-se com os “limites do dizer” apresentados pelo efeito de feminização.