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II. LETRA E FEMINIZAÇÃO: SEMBLANTES QUE ROMPEM, SEMBLANTES QUE

II.4. b O dandismo e “A Carta Roubada”

As conexões entre o dandismo e a literatura remetem-nos novamente a “A Carta Roubada”. Como vimos, Lacan (1985, 1998) , ainda na década de 1950, já havia indicado naquele conto traços dândis.

Dentre os apontamentos do psicanalista, dois deles estão ligados à cena em que Dupin visita o Ministro D., quando este ainda encontra-se sob os efeitos de feminização. Nesse contexto, Lacan (1956/1998) atribui ao Ministro “a impassibilidade do dândi” (p. 44).

81 No original : « C’est cette résistance héroïque du dandy à prose du monde moderne, à son désenchantement, qui a fait célébrer le dandy dans la première moitié du XIX siècle comme ume forme de sagessse moderne » (Miller, 1995, p. 187).

Característica que nos remete imediatamente a uma das regras destacadas por Baudelaire82 (2009) na doutrina do dandismo: unilateralizar o efeito de surpresa. Segundo essa máxima, o dândi pretende sempre impressionar sua audiência, mas, de seu lado, deve manter-se inabalável.

É ainda no escopo deste episódio que se passa no gabinete do Ministro D. que Lacan (1955/1985) faz uma outra alusão ao dandismo: ele compara o impassível personagem de Poe aos personagens românticos de Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal83. Tal como os personagens desse escritor, diante de Dupin, o Ministro D. cuida de sua aparência: exibe-se lânguido, entediado. Vale recuperar as palavras de Lacan (1955/1985):

O ministro dá mostras de uma bela indolência... a audácia terrível do personagem romântico, capaz de tudo, para o qual o termo sangue-frio, veja isso em Stendhal, parece ter sido inventado. Ei-lo deitado, entediado, que sonha – Nada é suficiente, numa época decadente, para ocupar os pensamentos de um grande espírito. O que fazer quando tudo vai por água a baixo (p. 254).

Além de um comentário sobre a aparência do Ministro D., reconhecemos naquele trecho um dos ideais do dandismo, que fica ainda mais claro quando o lemos juntamente a Baudelaire. Com este autor, depreendemos que o “grande espírito”, na citação acima, seria um herói dândi84. Contudo, tais excêntricas figuras teriam seus dias contados, pois o discurso democrático, que tudo iguala, jogaria “por água abaixo” toda a distinção e singularidade características de um dândi. Nas palavras do escritor:

o dandismo é o último rasgo de heroísmo nas decadências... Mas, desgraçadamente, a maré montante da democracia – que invade tudo e tudo nivela – afunda diariamente esses últimos representantes do orgulho humano (BAUDELAIRE, 2009, p. 17).

Vemos, portanto, que, quando Lacan comenta a impassibilidade do Ministro D. e cita o escritor Stendhal, ele reconhece no conto de Poe características clássicas do dandismo e de sua literatura do século XIX.

Contudo, é em um terceiro trecho que, a nosso ver, Lacan (1955/1985) explicita que leu no conto de Poe algo que remete ao gozo específico do dândi, o que nos permite mais uma vertente de leitura de “A Carta Roubada”. Novamente, trata-se de uma observação sobre o

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Lembremos que Charles Baudelaire foi um grande admirador de Edgar Allan Poe, a quem rendeu os maiores elogios em “O homem e a obra”. Baudelaire inicia este texto avaliando a aparência daquele autor, e depois, de sua obra. Reconhece e enaltece em ambos a mesma característica: uma excentricidade, que dá o tom de uma combinação de bom gosto entre a estranheza e a simplicidade. Assim, Poe destaca-se por saber operar com as exceções: “Nenhum homem jamais contou com maior magia as exceções da vida humana e da natureza” (Baudelaire, 2001, p. 50 – grifo do autor). Isso, para Baudelaire, se dá porque o autor de “A Carta Roubada”, “analisa o que há de mais fugidio, sopesa o imponderável” (Baudelaire, 2001, p. 50).

83 Lembremos que, como comentamos, este escritor tinha fortes ligações com a causa dândi. 84

Trata-se da mesma ideia de heroísmo que atribuímos a Alexandre Kojève. Portanto, podemos dizer que Baudelaire antecipa o filósofo em sua tese.

feminizado Ministro D., quando este detém a carta/letra, de modo que Lacan (1985) comenta as semelhanças entre ele e François-René Chateaubriand. Avaliemos esse trecho:

… [o Ministro D.] não deixa de nos fazer pensar no Sr. Chateaubriand... Pois se lermos o verdadeiro sentido de suas Memórias85, será que ele não se declara ligado à monarquia por fé jurada só para poder dizer que são uns sacanas?... Há uma maneira de defender os princípios, como se vê ao se ler Chateaubriand, que é a melhor maneira de aniquilá-los (LACAN, 1955/1985, p. 252).

Aqui, reconhecemos na forma com que Chateaubriand aniquila os princípios da monarquia uma operação similar à de Brummell com os semblantes: cuida destes com tantas minúcias que acaba por demonstrar seus limites. Da mesma forma, a relação de Chateaubriand e do Ministro D. com a realeza lembra-nos a impertinência com que Brummell afronta a aristocracia, embora mantenha-se ligado a esta. Ainda vale ressaltarmos que essa posição de D. diante da Rainha, e mesmo do Rei, não é um pormenor deste conto, mas acompanha toda sua trama. Para comprová-lo, basta lembrarmos que a história de “A Carta Roubada” inicia quando o Ministro desafia a augusta dama, ao subtrair sua missiva.

Para além de toda doutrina e atributos do dandismo, o Ministro D. parece indicar o que constitui a marca da experiência do dândi quando ele demonstra a dimensão de semblante da lei do Rei. Podemos pensar que a lei, assim como o semblante fálico, colocar-se-ia como uma lei inquestionável, divina, que subjugaria todos. Ao furtar a carta/letra, D. coloca aquela em questão, pois não só desafia a Rainha, mas é infiel ao Rei, já que não tem a menor intenção de informar-lhe da traição de sua companheira. Porém, para que seu projeto se cumpra, três pontos nos chamam a atenção. O primeiro se refere ao fato de que, embora a subversão de D. questione os semblantes monárquicos, suas intenções só funcionam no próprio campo desses princípios, em que a suposta deslealdade de uma Rainha é um crime. Isso nos leva à segunda observação: com suas ameaças, D. não rompe com a monarquia, mas acirra os laços entre eles (por exemplo, a Rainha fica sob sua influência, ou seja, permanece ligada a ele). Desta forma, mesmo que o impertinente político faça tremer os semblantes e princípios universais da monarquia em seu próprio favor, ele só pode fazê-lo levando os mesmos em consideração, por exemplo: um Rei não pode ser traído!

Por fim, o terceiro ponto. Ao deter a carta/letra e não dizer nada sobre ela, o Ministro ocupa a mesma posição ocupada antes pela Rainha. Quando esta recebe uma carta/letra supostamente de um amante ou de conspiração contra o Rei, ela é a primeira a colocar-se à parte dos princípios que sustentam uma monarquia e mesmo o matrimônio. Desta forma, a

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Lacan se refere ao livro Ouvres complète de Chateaubriand: Mémoire D’outre tombe, Libraires- Éditeures, Paris, 1904.

Rainha demonstra que não está totalmente submetida a tais princípios, embora devesse, pois tratam-se das leis do Rei, que, teoricamente, valem para todos. Por outro lado, ela não está totalmente desconectada dessa lei, tanto que, quando o monarca entra em cena, ela se controla, não age e cala-se, tentando, assim, esconder a carta/letra. Reação que é repetida pelo Ministro e entendida por Lacan (1998) como uma feminização induzida pela detenção da carta/letra. É quando sofre tal efeito que podemos reconhecer no Ministro os traços do dandismo.

Assim, após comparar Brummell, Chateaubriand e o Ministro D., reconhecemos nestes a marca de um gozo dândi. Ou seja, nos três exemplos, a partir de uma operação com os próprios semblantes, os princípios são enfraquecidos e os semblantes estremecidos. Vimos ainda que, por indicar os limites dos semblantes, tal gozo apresenta uma dificuldade para ser apreendido, representado por palavras ou imagens. Por outro lado, a dimensão litorânea da letra permite acolher e transmitir o dandismo. Desta forma, podemos concordar com Laurent (2010) quando ele afirma que a escrita de Poe em “A Carta Roubada” nomeia um gozo dândi. Ainda é interessante ressaltar que os comentários de Lacan (1995/1998) sobre o dandismo aparecem a propósito da feminização do Ministro D.. Assim, ao pesquisar tal hipótese de Laurent (2010), confirma-se a ideia, sustentada no início deste capítulo, de que, quando a carta/letra é tomada como um escrito, a feminização indica as relações entre gozo e letra. Ou, como situou Laurent (2010), aqueles efeitos de feminização passam a denotar um lugar de reserva, de “furo no sentido, e, ao mesmo tempo, lugar desse gozo” (Laurent, 2010, p. 70).