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2 O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NA CORTE IDH: CASO

2.4. A SENTENÇA DA CORTE E A DISCRIMINAÇÃO ESTRUTURAL

A Corte iniciou este ponto recordando que o artigo 1.1 da CADH se refere ao dever do Estado de respeitar e garantir, “sem discriminação”, os direitos contidos na Convenção, enquanto que o artigo 24 protege o direito à “igual proteção da lei”, sendo

este aplicável quando há uma proteção desigual da lei interna ou de sua aplicação (CORTE IDH, 2016, p. 87), in verbis:

Em outras palavras, se um Estado discrimina no que tange ao respeito ou à garantia de um direito convencional, descumpriria a obrigação estabelecida no artigo 1.1 e o direito substantivo em questão. Se, por outro lado, a discriminação se refere a uma proteção desigual da lei interna ou de sua aplicação, o fato deve ser analisado à luz do artigo 24 da Convenção Americana, em relação às categorias protegidas pelo artigo 1.1 da Convenção (CORTE IDH, 2016, p. 87).

Assim, a obrigação de respeitar e garantir os direitos humanos e o princípio de igualdade e não discriminação possui uma sólida relação. O descumprimento da obrigação geral de respeitar e garantir os direitos humanos pelo Estado, por qualquer tratamento discriminatório é capaz de gerar sua responsabilidade internacional. Sendo considerado pela Corte IDH que a “posição econômica” da pessoa configura uma das causas de discriminação proibidas pelo artigo 1.1 da CADH (CORTE IDH, 2016, p. 88).

Ainda para a Corte IDH, o Estado incorre em responsabilidade internacional, tanto quando age criando situações que gerem discriminação, quanto quando se mantém inerte, sem adotar medidas específicas para a situação particular de vitimização na qual se concretiza a vulnerabilidade sobre um grupo de pessoas, num contexto de quadro de discriminação estrutural.

No próprio cenário dos casos de trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil, a vitimização destas pessoas demonstra a vulnerabilidade deste grupo, o que demanda uma ação de proteção especial por parte do Estado, de acordo com as obrigações internacionais assumidas (CORTE IDH, 2016, p. 88-89). Neste sentido, é possível afirmar que “a escravidão contemporânea é expressão de uma situação de grande vulnerabilidade e miséria que ainda afeta importantes contingentes de trabalhadores e trabalhadoras” (OIT BRASIL, 2011, p. 6).

Quando se analisa a escravidão contemporânea no Brasil, especialmente no campo, percebe-se que os trabalhadores aliciados vêm de uma situação de pobreza, não têm qualificação e só contam com sua força de trabalho para sobreviver. Isto, somado a questão de poucas oportunidades de emprego faz com que eles se submetam a condições precárias de trabalho (OIT BRASIL, 2011, p. 14-15).

Amartya Sen (2000, p. 109-110) amplia a interpretação comum do conceito de pobreza, considerando-a como privação de capacidades básicas e não somente baixo

nível de renda. Ademais, é possível afirmar que existe uma íntima ligação entre a renda e o desenvolvimento de capacidades, sendo normalmente proporcionais, mas esta relação depende da comunidade e das famílias a serem analisadas26.

A pobreza, então, pode ser identificada tanto como pobreza de renda quanto como de capacidade, ambas interligadas pelo fato que a renda é um meio para atingir as capacidades. Portanto, a pobreza de capacidades é a pobreza real e para que ela seja enfrentada um dos meios a se combater é a pobreza de renda.

Quando se trata de vítimas submetidas a trabalhos em condições análogas à escravidão fica clara a existência das duas espécies de pobrezas. A pobreza de renda é identificada na medida que os trabalhadores são oriundos das regiões mais pobres do país e trabalham com serviços braçais, auferindo uma baixa renda, por sua vez, a de capacidade na medida que não lhe são oferecidas condições para desenvolvimento individual.

De acordo com pesquisa realizada (OIT Brasil, 2011, p. 57-59), onde se entrevistou 121 trabalhadores, o perfil dos mesmos são: homens, em sua maioria não brancos, sendo que 18,2% (dezoito vírgula dois por cento) se autodenominaram pretos, 62% (sessenta e dois por cento) pardos e 0,8% (zero vírgula oito por cento) indígenas, conforme gráfico abaixo ilustrativo.

Gráfico 2: Perfil racial dos trabalhadores submetidos a trabalhos em condições análogas à escravidão de acordo com pesquisa realizada pela OIT Brasil, publicada em 2011.27

Fonte: Gráfico elaborado pela autora, a partir dos dados coletados na pesquisa.

26 Isto porque a relação entre renda e capacidade individual pode ser afetada pela idade, papéis sexuais e

sociais, localização, condições epidemiológicas e outras variações que fogem do controle do sujeito (SEN, 2000, p. 110).

27 Este gráfico corrobora com a ideia trazida na página 27-28 (vide nota de rodapé 7) de que não houve

efetivamente uma descolonização, mas que atualmente a colonialidade assume novas formas, perpetuando-se neste caso a dominação racial.

62% 18%

1% 19%

Perfil racial dos trabalhadores

Pardos Pretos Indígenas Brancos

Além disso, o banco de dados do MTE indica que a idade média dos trabalhadores escravizados no momento em que são resgatados é de 32,5 (trinta e dois vírgula cinco) anos, sendo 61,8% (sessenta e um vírgula oito por cento) naturais do Nordeste, 20% (vinte por cento) do Norte, 7,8% (sete vírgula oito por cento) do Centro- Oeste, 7% (sete por cento) do Sudeste e 2,9% (dois vírgula nove por cento) do Sul.

Gráfico 3: Perfil dos locais de naturalidade dos trabalhadores submetidos a trabalhos em condições análogas à escravidão de acordo com pesquisa realizada pela OIT Brasil, publicada em 2011.

Fonte: Gráfico elaborado pela autora, a partir dos dados coletados na pesquisa.

Quando se analisou a procedência desses trabalhadores, verificou-se que 42,3% (quarenta e dois vírgula três por cento) são oriundos da Região Nordeste, 12, 3% (doze vírgula três por cento) da Região Centro-Oeste e 39,1% (trinta e nove vírgula um por cento) da Região Norte (OIT BRASIL, 2011, p. 56-70).

Gráfico 4: Perfil dos locais de proveniência dos trabalhadores submetidos a trabalhos em condições análogas à escravidão de acordo com pesquisa realizada pela OIT Brasil, publicada em 2011.

Fonte: Gráfico elaborado pela autora, a partir dos dados coletados na pesquisa.

20%

62% 8%

7% 3%

Naturalidade dos trabalhadores

Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul 39% 42% 13% 6%

Proveniência dos trabalhadores

Norte Nordeste Centro-Oeste Sul e Sudeste

Portanto, os maiores percentuais indicam que estes trabalhadores nasceram ou estavam morando nas regiões mais pobres do país, no momento em que foram aliciados. Neste sentido, a própria Corte IDH no curso da sentença identificou que grande parte das “vítimas de trabalho escravo no Brasil são trabalhadores originários das regiões norte e nordeste, dos estados que se caracterizam por serem os mais pobres, com maiores índices de analfabetismo e de emprego rural” (CORTE IDH, 2016, p. 28). Foi mencionado ainda que os trabalhadores eram originários de lugares pobres e não possuíam educação técnica, pelo o que eram mais facilmente manipulados, nos seguintes termos:

(...) eles se encontravam em uma situação de pobreza; provinham das regiões mais pobres do país, com menor desenvolvimento humano e perspectivas de trabalho e emprego; eram analfabetos, e tinham pouca ou nenhuma escolarização (par. 41 supra). Essas circunstâncias os colocava em uma situação que os tornava mais suscetíveis de serem aliciados mediante falsas promessas e enganos (CORTE IDH, 2016, p. 89).

Muitos deles são analfabetos ou analfabetos funcionais, mesmo que a geração mais nova aparentemente possua nível de escolaridade significativamente superior à geração anterior (OIT BRASIL, 2011, p. 78-79). Contudo, essa situação de desqualificação dos trabalhadores “se apresenta como uma barreira para o desempenho de funções mais qualificadas no campo, como, por exemplo, a operação de máquinas, restringindo significativamente suas oportunidades no mercado de trabalho” (OIT BRASIL, 2011, p. 79).

Também se verificou que dentre os trabalhadores entrevistados, 59,7% (cinquenta e nove vírgula sete por cento) já haviam trabalhado em locais que se utilizavam de guardas armados com comportamentos ameaçadores, violência física, dívidas ilegalmente impostas ou em locais de difícil fuga pelas próprias características geográficas. Percebe-se, contudo, que não foram incluídas, situações de trabalho degradante, o que provavelmente aumentaria substancialmente esse percentual (OIT BRASIL, 2011, p. 84). Diante disso, verifica-se que essa situação provavelmente decorre da falta de empregos e oportunidade para esta parcela da população.

Além disso, os trabalhadores se enxergam com sentimentos de submissão, discriminação e desvalorização social, sendo de 68% a representativa de uma autoimagem negativa. Neste viés, verifica-se que a história que toma corpo nas áreas rurais do Brasil acabou por colocar esses trabalhadores num “lugar de inferioridade e

desqualificação social. A incorporação dessa imagem pelos trabalhadores dificulta a valorização e a percepção de si como sujeitos portadores de direitos” (OIT BRASIL, 2011, p. 95). Isto acaba por acentuar a condição de vulnerabilidade dos mesmos, deixando-os mais propensos na aceitação de precárias condições de trabalho, conforme asseverado pela OIT nos seguintes termos:

Os trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea são movidos pela necessidade premente de para aceitar ofertas de emprego, tendo em vista sua posição desfavorável no mercado de trabalho – baixa qualificação, baixa escolaridade – e a pressão que sofrem face às necessidades da família. A valorização da remuneração, em detrimento de outros aspectos, aumenta a vulnerabilidade desses trabalhadores. Premidos pela necessidade, e diante de um salário aparentemente vantajoso, eles aceitam condições de trabalho extremamente precárias, perigosas, em locais distantes e sem garantias trabalhistas (OIT BRASIL, 2011, p. 102-103).

Apesar da situação econômica de miséria dessa parte da população ser estrutural no Brasil e inegavelmente, um dos principais fatores responsáveis por colocar essas pessoas em condição de vulnerabilidade, ela não é a única.

Dentre os demais fatores para perpetuação dessa prática têm-se: os valores históricos absorvidos pelos atores sociais envolvidos com a escravidão contemporânea, tendo as relações campesinas desde sempre, se pautado na submissão do trabalhador ao seu empregador (OIT BRASIL, 2011, p. 168).

Isto também foi identificado pela Corte IDH no bojo da sentença, ao afirmar que: “apesar da abolição legal, a pobreza e a concentração da propriedade das terras foram causas estruturais que provocaram a continuidade do trabalho escravo no Brasil” (CORTE IDH, 2016, p. 27).

Percebe-se, então, que em decorrência de fatores sociais intimamente atrelados à pobreza como, falta de escolaridade, analfabetismo e baixas perspectivas de trabalho, esses indivíduos se enquadram num alto nível de vulnerabilidade, tornando-os fáceis vítimas nos casos de exploração da sua mão de obra em condições análogas à escravidão.

Neste contexto, percebe-se que na realidade brasileira faltam ações estatais para que se forneça o mínimo de condições necessárias ao desenvolvimento humano. Afinal, “quanto mais inclusivo for o alcance da educação básica e dos serviços de saúde, maior será a probabilidade de que mesmo os potencialmente pobres tenham uma chance maior de superar a penúria” (SEN, 2000, p. 113). Assim, a omissão do Estado brasileiro acaba

por contribuir na posição de vulnerabilidade das vítimas em face da discriminação estrutural em razão da posição econômica.

No caso concreto, então, como o Estado brasileiro se omitiu na proteção das pessoas aliciadas para trabalharem na Fazenda Brasil Verde, a Corte conclui que o Estado não considerou a vulnerabilidade dos trabalhadores resgatados em 2000, diante da discriminação em razão da posição econômica à qual estavam submetidos, o que constitui uma violação ao artigo 6.1 da CADH, em relação ao artigo 1.1, a respeito daqueles trabalhadores (CORTE IDH, 2016, p. 89).