• Nenhum resultado encontrado

A situação de campesinato marginal

No documento O SUICÍDIO TICUNA NA REGIÃO (páginas 96-99)

CAPÍTULO II: A VIOLÊNCIA DAS SITUAÇÕES DE CONTATO

2.2. As situações de contato

2.2.4. A situação de campesinato marginal

As mudanças de um padrão de moradia Ticuna, de modo geral realizadas através do processo de deslocamentos na direção das margens do Solimões, passaram por uma nova fase com a queda do preço da borracha no mercado internacional, a partir da primeira década no sec. XX.

Nesse quadro de perdas econômicas da empresa seringalista, onde o patrão não se interessava mais pela manutenção do ritmo anterior de produção da borracha, seringueiros e seringalistas tiveram que se ajustar às novas condições impostas pelo mercado internacional. Ao seringueiro caberia refazer sua estratégia, empregando maior esforço na obtenção de uma produção de subsistência, que ao mesmo tempo tivesse valor de troca junto ao barracão e pudesse manter o seu acesso aos bens da sociedade nacional. O seringalista rebaixou o preço pago pela borracha, não tendo mais condições de manter um volume expressivo de capital empatado nos grandes aviamentos, ou em estoques variados de artigos procurados pelos fregueses.

Oliveira Filho (1988) usa a categoria “desencantamento” para classificar a forma como os Ticuna vivenciaram esse período. Correlaciona um momento em que a empresa seringalista teve que reduzir suas atividades, e com isso retirou dos índios a possibilidade de acesso a bens com os quais já estavam familiarizados e dos quais passaram a depender, com um momento em que um certo afrouxamento das relações propiciou a percepção das consequências da interferência dos brancos em pontos cruciais de sua cultura e organização social, tais como a imposição de relações incestuosas, proibição da festa da puberdade, imposição de chefias espúrias, etc. O “desencantamento” expressa essa dupla insatisfação que poderia ser superada através dos heróis mitológicos. Os “imortais”, fazendo uso das visões de um jovem, voltavam a ensinar o modo tradicional de viver, o caminho da salvação, apontando até mesmo para a destruição do branco, mas abrindo caminhos para o acesso pleno aos bens civilizados.1

Diversas manifestações desse tipo ocorreram até a década de 40, com uma interveniência de maior ou menor brutalidade por parte dos patrões, de acordo com a sua capacidade de atrair a adesão de outros índios, pondo em cheque o esquema de trabalho e de dominação do patrão.

Um elemento novo, o estabelecimento, em 1942, do órgão oficial de proteção ao índio - Serviço de Proteção aos Índios (SPI) - na cidade de Tabatinga, passou a imprimir uma nova dinâmica entre os agentes sociais, em um novo cenário.2 Oliveira aponta o Posto Indígena como ponto de convergência, onde índios “foragidos dos seringais contavam com acolhida e proteção certa” e as histórias das famílias que ali chegavam continham invariavelmente os relatos das tensões e conflitos com os patrões seringalistas (1978:54).

A guarnição do exército, também estabelecida em Tabatinga, além de criar uma rede de serviços e incrementar o crescimento da região, representou um ponto de apoio, uma referência, muitas vezes apenas virtual, para a ação do órgão protecionista.

Os Inspetores do SPI nomeados para atuar nesta área vinham de fora da região e, de acordo com os princípios vinculados ao indigenismo defendido por Rondon, procuravam defender os índios criando um espaço de liberdade em relação à exploração do trabalho e aos maus tratos do patrão seringalista.

Sempre é oportuno lembrar a avaliação crítica de Oliveira (1978:61) em relação a atuação do SPI, que propunha uma atividade protecionista como forma de defender o caminho inevitável das populações indígenas rumo a sua incorporação à nação brasileira, sem nunca formular a possibilidade de existência de nações auto- determinadas em um momento futuro (Ver tb. Erthal, 1992).

Em 1945 o Posto Indígena foi transferido para a boca do Igarapé Umariaçu, e as terras adquiridas pelo SPI se tornaram o primeiro espaço onde os índios puderam se assentar sem estar sob o jugo do patrão. Segundo Oliveira Filho (1977), o inspetor do SPI conhecido como Manuelão, que atuou na área entre 1943 e 1946, divulgou pelas aldeias a criação do Posto, e convidou os Ticuna a se instalarem na

reserva. Com os primeiros índios que se aproximaram, passou a estabelecer uma relação de troca de farinha por mercadorias fornecidas pela 1a. Inspetoria do SPI, estabelecendo o preço para a farinha bem acima daquele pago pelos patrões.

No final ainda de 1945 novas notícias de uma catástrofe iminente, onde as águas subiriam ferventes matando a todos, só se salvando aqueles que estivessem nas terras do “PI Ticuna”, desencadearam um movimento migratório em direção às terras do Posto. Esses índios, junto com os que já tinham anteriormente se agregado ao Posto, foram os primeiros Ticuna assentados em uma terra sem patrão. Esse movimento não aconteceu sem uma reação dos patrões, que procuraram desmoralizar a ação de Manuelão frente às autoridades militares.

De todo modo, Oliveira Filho (1977) destaca a importância política do fato, já que este foi o primeiro movimento messiânico com implicações negativas para os seringalistas, no qual não puderam intervir pela força e que terminou por se constituir em uma experiência de sucesso, com a implantação de um espaço livre do domínio do patrão. Obviamente, a partir de então, a interferência da agência de proteção ocasionou uma série de dificuldades para a realização plena do poder do seringalista sobre a vida e a produção do “freguês índio”.

Todo esse processo resultou na possibilidade de mais uma forma de alteração na distribuição dos Ticuna pela região, fazendo surgirem as bases para a implantação de um "campesinato marginal", que se constituiu daqueles índios que abandonaram os igarapés, fugindo das relações servis e em busca de uma relação comercial mais justa. Esse processo de deslocamento para a beira do Solimões se deu a partir da movimentação de famílias nucleares, distribuídas por localidades ribeirinhas, em alguns lugares em terras de pequenos proprietários, mantendo relações diversas em cada caso, mas com uma situação diferenciada daquela vivenciada no grande seringal (Oliveira Filho, 1977:59).

Oliveira (1996) distingue duas categorias que se referem ao processo de localização dos Ticuna na área. A oposição entre "índios do

rio" X "índio do igarapé" a princípi o indica que os primeiros seriam aqueles libertos das relações de exploração do seringal, que atingia de forma mais brutal aos índios dos igarapés. No entanto, Oliveira Filho (1988) chama a atenção para o fato de que a existência de índios moradores da beira do rio e também sujeitos aos seringais, estaria indicando que uma maior operacionalidade da análise passaria pela distinção entre índios estabelecidos ou não nas terras dos patrões, concretizando formas distintas de expropriação do seu trabalho.

Essas categorias são, por outro lado, atualizadas no discurso Ticuna que ainda distingue os índios "do alto", ou "do centro", como diferentes daqueles que vivem perto dos civilizados. Os primeiros são os que conhecem mais a tradição tribal, as técnicas de enfeitiçamento e cura, os ritos e os mitos, embora sejam também vistos como os mais "atrasados", que não falam o português e não dominam os códigos brancos de comercialização dos produtos (Oliveira Filho, 1977:63).

No documento O SUICÍDIO TICUNA NA REGIÃO (páginas 96-99)