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A situação do campesinato vinculado ao mercado

No documento O SUICÍDIO TICUNA NA REGIÃO (páginas 99-105)

CAPÍTULO II: A VIOLÊNCIA DAS SITUAÇÕES DE CONTATO

2.2. As situações de contato

2.2.5. A situação do campesinato vinculado ao mercado

A partir da década de 60, e especialmente após o estabelecimento do governo militar, de forma cada vez mais intensa, os patrões seringalistas da área do Alto Solimões vão sentir dificuldades na imposição das relações servis aos índios ainda sob os seus serviços, encontrando resistência aos métodos violentos que garantiam o monopólio das transações comerciais com os mesmos.

Mudanças a nível do poder Executivo e do aparelho militar implicaram numa atuação mais independente do Exército em Tabatinga, com a transformação desta área de fronteira em área de segurança nacional, visando especialmente o controle do rio Amazonas, considerado de valor estratégico.

A própria unidade militar viu a sua área de atuação ampliada na medida em que passou a ser dirigida por um coronel, vinculado diretamente ao Conselho de Segurança Nacional e a Presidência da República e, portanto, mais liberto dos padrões de aliança com as

lideranças municipais vigentes anteriormente, atreladas aos seringalistas.

As ocorrências concretas de disputas onde os índios passaram a ser defendidos pelo SPI, apoiado no poder do Exército, e até mesmo as situações de punição da violência do seringalista, incentivaram uma percepção diferenciada por parte do índio de suas possibilidades de utilização desse novo formato das autoridades governamentais, para escapar da vigilância total do patrão e comercializar seus produtos diretamente com os regatões. Esse novo quadro se completa com o fato de que os patrões estariam atravessando sérias dificuldades econômicas, chegando alguns a hipotecar suas terras junto ao Banco da Amazônia. Apesar das dificuldades apontadas, o monopólio do comércio e o tratamento violento dos índios continuaram sendo mantidos, mas as fissuras do sistema permitiram a ocorrência de novas modalidades de relações de trabalho e comercialização dos produtos (Oliveira Filho, 1977).

Um outro fator que interferiu, novamente, de maneira significativa, na forma de distribuição dos Ticuna em seu território, foi o movimento de cunho messiânico em torno do Irmão José, que anunciava a proximidade do fim do mundo e a salvação para aqueles que se reunissem em torno das cruzes que fincava nas localidades da beira do Solimões. O Irmão José era um brasileiro, natural de Minas Gerais, que trajando túnica de frade e com uma bíblia nas mãos entrou no Brasil, em 1971, vindo do Peru, e desceu o rio Solimões criando Irmandades tanto em locais que reunia índios, como nas localidades exclusivamente de brasileiros.

O sucesso entre os Ticuna da palavra do Irmão José foi imediato, com um afluxo intenso de indígenas para a beira do Solimões, aumentando consideravelmente a população de alguns aldeamentos, passando a gerar o que Oliveira Filho (1977) chamou de “processo de urbanização”, que determinou o perfil dos atuais aldeamentos, que chegam a atingir uma população em torno de 3.000 habitantes.

Este sucesso está ligado ao fato de que os movimentos messiânicos não são estranhos à cultura Ticuna. Da mesma forma que na

visão do jovem em 1946 a salvação estaria em terras do Posto Indígena e não nas terras altas onde moram os imortais, o chamado de um não-índio não deve ser visto como decorrência de fatores aculturativos ou da realização de alguma forma de sincretismo religioso. Neste sentido, Oliveira Filho (1994) destaca que o processo de contato dos Ticuna ajuda a fazer a crítica a um tipo de percepção das relações interétnicas com um enquadramento bipolar e evolutivo. Como vimos anteriormente, através das diversas situações históricas, a análise do contato Ticuna com os diversos agentes sociais não se afina com um tipo de visão que priorize a busca de “tipos polarizados de situação de integração” (op.cit.:81).

Ainda neste momento, a presença forte de elementos externos à tradição religiosa Ticuna (a Bíblia, e mesmo o significado diferenciado da busca da “salvação”) não indica a redução da análise a uma comparação entre movimento salvacionista “típico” e “sincrético”, mas sim a possibilidade de perceber a realização da transcrição de elementos pertencentes a uma outra cultura dentro de um “esquema narrativo tradicional” que empresta um sentido específico aos fatos.

Ao contrário do que seria esperado acontecer, com o grande descimento de famílias de áreas ainda isoladas, no sentido de maiores perdas do controle da exclusividade do comércio com esses índios, os patrões se beneficiaram do movimento, usando-o de maneira estratégica para recuperar sua autoridade que vinha se desgastando. A Igreja católica condenou de maneira radical o Movimento da Santa Cruz, encabeçado pelo Irmão José, pretendendo mobilizar as autoridades militares para impedir sua entrada no Brasil. Os patrões, pelo contrário, permitiram a construção de templos em suas terras, e por esse apoio foram “sagrados” como diretores da Irmandade. Esse cargo permitiu ao seringalista fazer as vezes de “conselheiro” e “pregador”, reconquistando a adesão dos índios, não mais pela violência, mas pela condição de “irmão”. Dessa forma foi dada uma nova roupagem à velha relação de dependência, com a “bondade” do patrão confirmada pela escolha do Irmão José, e a obediência à proibição do uso da violência e do consumo e comercialização da cachaça também confirmando sua

“conversão”. A proibição do consumo de bebidas alcóolicas e sua venda nos barracões, carreou para o movimento o apoio do novo órgão protecionista, a FUNAI, e das autoridades militares, que viram na seita uma forma de controle dos eventos de violência vinculados a ingestão da cachaça e das bebidas tradicionais.

Ainda duas vias de incentivo a concentração populacional na beira do Solimões merecem destaque: a primeira, parcialmente ligada ao Movimento da Santa Cruz, mas realizada por indígenas com um certo grau de autonomia, tinha a sua motivação marcada por interesses próprios, visando melhores condições de comercialização de seus produtos, mas também no sentido da viabilização de certas demandas de modernização. Essas demandas eram expressas, de modo bem marcado, pela busca da escola, que funcionava como atrativo para o deslocamento em direção a alguns aldeamentos da beira. Oliveira (1978:201) fala da escola como “objetivo permanente dos pais Tukuna” e como “grande vetor orientador do processo migratório indígena”.

A percepção, de uma parte dos Ticuna em relação a necessidade (e mais ainda de seus filhos) de dominar os códigos da cultura branca, expressava uma busca, cada vez maior, da liberdade em relação a intermediação do patrão na negociação de sua produção. É interessante anotar que os filhos dessa geração, são aqueles que chegaram aos meados da década de 80, momento tido como de intensificação dos suicídios, com idades supostamente variando de 10 a 20 anos, onde a escolaridade deveria se constituir como fator definidor das opções ocupacionais.

A segunda via de urbanização foi o resultado da ação da Igreja Batista que constituiu missões em terras compradas a fazendeiros, e divulgou a notícia de que os Ticuna que viessem ali morar não teriam nenhuma obrigação econômica para com os missionários. Para essas localidades (Betânia e Campo Alegre) logo se verificou um grande afluxo de indígenas vindos, ou dos grandes seringais, ou de áreas de campesinato marginal.

A partir da década de 70, a percepção crescente da possibilidade de realização de novas formas de comercialização/acesso a

bens industrializados e ocupação de seu território, levaram os Ticuna a um movimento de busca da reafirmação da liberdade de comprar e vender, tendo o entendimento de um jogo de mercado que nem sempre também lhes era favorável, e o início de sua organização pela luta do reconhecimento da posse e demarcação oficial de suas terras. Os índios desenvolveram projetos comunitários em torno de uma melhor posição de sua produção no mercado local, preocupados em “ampliar seus vínculos com o mercado (e) modernizar sua atividade econômica” (Oliveira Filho, 1977:82).

Com a empresa seringalista em pleno declínio, o momento pode ser melhor definido pela existência de uma “reserva indígena” e uma maior presença do órgão tutelar (FUNAI), através de Postos Indígenas instalados em algumas das maiores comunidades da beira, do que pela inserção dos Ticuna de algumas pequenas comunidades, dos altos igarapés, nos seringais. A ação indigenista oficial se expandiu no Alto Solimões, na década de 70, ainda sob o signo dos rigores de um regime militar que considerava as áreas indígenas de fronteira como uma questão de segurança nacional.

A presença de uma proposta de “antropologia da ação” (Oliveira, 1978:212-221) na área colocou as condições propícias que viriam a permitir que a luta pela terra, como “território político”, “localidade sobre a qual se assenta a identidade tribal”, se tornasse o eixo da constituição de uma organização Ticuna independente em relação à FUNAI.

A partir da década de 80, a necessidade de constituição de uma representação tribal que tivesse respaldo para negociar junto a FUNAI o processo de reconhecimento e demarcação de suas terras, resultou, em primeiro lugar, na organização do grupo através de suas lideranças mais representativas. Os capitães Ticuna, representantes de cada comunidade, organizados na forma de um Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT), escolheram um Capitão Geral e alguns auxiliares deste, que passariam a servir de intérpretes e negociadores dos interesses de todo o grupo, junto aos órgãos governamentais. O longo processo de luta pelo reconhecimento do direito à terra, que culminou com a sua demarcação

física em 1993, trouxe para a cena novos modos de relacionamento com a sociedade nacional, que se constituiram de maneiras diversas para os seus diferentes segmentos. Os Ticuna passaram, a partir de então, a ampliar seu horizonte reivindicativo, reforçando as áreas de interesse consideradas como primordiais para a sua manutenção como nação auto- determinada: terra, educação, saúde, desenvolvimento sustentado.

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Alguns informantes, principalmente os mais velhos, falando sobre os seres sobrenaturais que moram no fundo dos rios, descrevem sua morada como sendo farta em objetos que fazem parte do cotidiano dos brancos, e acessíveis a apenas uma parte dos Ticuna Os objetos citados vão desde os mais comuns como cadeira, mesa, talheres, até os mais caros e prestigiosos como carro, televisão, geladeira, ou os de difícil acesso, como os remédios (Belém do Solimões, 1996).

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Apesar do SPI ter sua representação instalada desde 1910 no Amazonas, através de uma Inspetoria Regional, quando de sua viagem ao Alto Solimões, em 1929, comissionado por este mesmo órgão, o etnólogo Curt Nimuendajú visita os índios Ticuna e em seu relatório de viagem destaca o desconhecimento dos índios em relação ao órgão criado para a sua proteção e da inoperância do delegado em mediatizar as relações entre índios e brancos (Nimuendajú, C., 1929. In: Suess, P. (coord.), 1982).

No documento O SUICÍDIO TICUNA NA REGIÃO (páginas 99-105)