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3 A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER COMO A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UM REGIME EM PROL DA PROTEÇÃO HUMANA E A EFETIVIDADE DE SUAS

4 A APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE PROTEGER O CASO COREIA DO NORTE

4.1 A situação humanitária norte coreana sob a ótica internacional

Como já exposto, a Responsabilidade de Proteger incute à comunidade internacional – tanto órgãos quanto nações – o dever de cuidar de populações que estejam sofrendo com crimes que afetam ou ameaçam a existência da humanidade,

baseando-se principalmente na situação do exercício da responsabilidade estatal –

se dado Estado, a partir do que está disposto na Carta da ONU, oferece condições de estabelecer ou se ignora – ao dar suporte ao desenvolvimento humano. Balizando-se por esse instituto, estaria a República Popular Democrática da Coreia como alvo potencial dos procedimentos da R2P? Qual a situação sociopolítica da mesma, e o que justificaria ou impediria sua aplicação?

Diante disso, “Um país pequeno e pobre, que enfrenta adversários muito mais fortes e a constante ameaça de seu próprio colapso” (FISHER, 2017, s/p) é uma descrição razoável do ponto de vista da comunidade internacional em relação à República Popular Democrática da Coreia, ou simplesmente, Coreia do Norte. Dada esta definição, se faz preciso situar que em meados da década de 1990, o país sofreu com uma fome devastadora que matou cerca de 300 mil pessoas. A ONU relata que mais de um terço da população está malnutrida e há falta de assistência médica e saneamento básico. Um clima rigoroso, com períodos de inundações e secas, dificulta a autossuficiência de produtos agrícolas, o que faz o país depender de importações. Entretanto, a Coreia do Norte tem negócios com poucos parceiros (como China e Irã, por exemplo), assim, as organizações internacionais tentam prover ajuda humanitária ao país.

Sendo um país extremamente fechado - governado sob o regime ditatorial hereditário atualmente exercido por Kim Jong-un - que sofre com extensas sanções externas devido a sua prática politica, tendo por exemplo, o Conselho de Segurança, no início de agosto de 2017, concordado com uma resolução da ONU que adotava as penas mais duras fechadas até hoje contra a Coreia do Norte: o país foi proibido de exportar carvão e ferro, peixes e frutos do mar - deixando de vender, com isso, produtos no valor de cerca de 1 bilhão de dólares. Além disso, várias organizações foram colocadas na lista negra da ONU, incluindo o banco de operações cambiais da

Coreia do Norte. Essas “condenações”, pelo menos em parte, são um dos fatores responsáveis pelas crises humanitárias naquele Estado.

Barbara Demick, jornalista do Los Angeles Times, se mudou para Seul em 2001 (capital da Coreia do Sul) com a responsabilidade de trabalhar cobrindo jornalisticamente as duas Coreias. Intentando conseguir o maior número de informações possíveis a respeito das condições sócio-políticas da Coreia do Norte, adotou a estratégia de ouvir pessoas que já haviam morado naquele país, passando sete anos recebendo informações por esse método. Dessa forma, ela elaborou praticamente um relatório sobre as condições de vida da população norte-coreana. Para tanto, a mesma utilizou-se principalmente de entrevistas concedidas na Coreia do Sul fazendo, além disso, a verificação das informações, respaldando com noticiários, vídeos e documentos - apesar de que, graças ao regime de governo, muita coisa restava inverificável – relacionados no final obra.

Os relatos baseiam-se no cotidiano dos ex-moradores, que vão desde o enfrentamento da fome até a rotina da vida na escuridão, já que desde o final da Guerra Fria, o país sem condições para manter a infraestrutura elétrica condicionada essencialmente pelos combustíveis recebidos em razão de acordos com a antiga União Soviética, fica quase completamente invisível pelas lentes dos satélites à noite - onde apenas a capital Pyongyang tem luz suficiente para aparecer.

A situação da população norte coreana pode ser explicitada por alguns dos relatos coletados por Demick (2013, p. 135) que cita:

Em 1998, estimava-se que entre 600 mil e 2 milhões de norte-coreanos já haviam morrido em consequência da fome, o equivalente a cerca de 10% da população. Números exatos seriam quase impossíveis de estabelecer, já que os hospitais da Coreia do Norte não registravam a desnutrição como causa mortis. Agências de ajuda humanitária que tentavam prestar assistência ficavam inicialmente circunscritas a Pyongyang e outros locais cuidadosamente maquiados. Quando os visitantes tinham permissão para sair de seus escritórios e hotéis, as pessoas vestidas em farrapos eram obrigadas a sumir das ruas; durante visitas a escolas e orfanatos, só os mais bem vestidos e bem alimentados podiam ser vistos. (...) No final de 1998, o pior da crise de escassez de alimentos tinha passado, não necessariamente porque alguma coisa tivesse melhorado, e sim, como a sra. Song mais tarde conjecturou, porque havia menos bocas para alimentar: “Todo mundo que era para morrer já tinha morrido.”

Aos olhos da comunidade internacional, muito da política implementada pelo governo da Coreia do Norte, podia ser considerada como infame. Isso pode ser

reconhecido, inclusive, no sistema punitivo daquele Estado. Para tanto, Demick (2013, p. 160) também comenta:

Alguém que comete uma pequena infração — como faltar ao trabalho — talvez seja mandado para um jibkyulso, um centro de detenção operado pela Agência de Segurança do Povo, uma unidade policial de nível baixo, ou talvez para um rodong danryeondae, um campo de trabalhos, onde o infrator seria condenado a um mês ou dois de trabalho duro, como a pavimentação de uma estrada. As prisões mais famigeradas eram os kwanliso — que se pode traduzir por“locais de controle e gerenciamento”. São na verdade uma colônia de campos de trabalho que se estendem por quilômetros nas montanhas do extremo norte do país. Espionagem por satélite indica que eles abrigam até 200 mil pessoas. Imitando o gulag soviético, Kim Il-sung instaurou os campos logo após tomar o poder para tirar do caminho qualquer um que pudesse desafiar sua autoridade. Políticos rivais, descendentes de proprietários de terras ou de colaboracionistas pró-japoneses, clérigos cristãos. Alguém flagrado lendo jornais estrangeiros. Um homem que, depois de muitos drinques, fizesse uma piada sobre a altura de Kim Jong-il. “Insultar a autoridade dos líderes” é o mais sério dos chamados “crimes contra o Estado”. Uma mulher da fábrica da sra. Song foi presa por escrever algo politicamente incorreto em seu diário. Os norte-coreanos que conheci sempre sussurram sobre alguém que conheceram — ou de quem ouviram falar — que desapareceu no meio da noite e nunca mais deu sinal de vida. As condenações ao kwanliso são sempre perpétuas. Filhos, pais e irmãos são muitas vezes levados também para eliminar o “sangue manchado” que perdura por três gerações. Já que não são parentes consanguíneos, as esposas geralmente são deixadas para trás e obrigadas a se divorciar. Pouco se sabe sobre o que acontece dentro dos kwanliso e poucos saem de lá para contar a história.

Percebe-se, através da leitura acima, a fragilidade da liberdade da população norte coreana e o nível de intimidação com a qual o governo daquele país opera em relação a sua população civil. Tanto é que, Thomas Buergenthal (sobrevivente de Auschwitz), juiz que já trabalhou para a Corte Internacional de Justiça, afirmou, depois de ouvir depoimentos de ex-prisioneiros e guardas norte-coreanos, que as prisões políticas da Coreia do Norte são comparáveis ou até mais terríveis do que as que existiram na Alemanha nazista. (FIFIELD, 2017, s/p)

Muitos outros casos podem ser citados, mesmo com a notável dificuldade em obter dados internos da Coréia do Norte. Para tanto, o Conselho de Direitos Humanos da ONU apresentou relatório sobre a condição humanitária da RPDC através da Comissão de Inquérito sobre os Direitos Humanos na República Popular Democrática da Coreia, a fim de levantar a maior quantidade de informações possíveis referente a tal situação da mesma.

O relatório foi apresentado ao Conselho de Direitos Humanos (CDH) em 17 de março de 2014. A metodologia única usada por Michael Kirby e seus colegas,

Marzuki Darusman e Sonja Biserko, permitiu à COI reunir material e documentar as graves violações de direitos humanos que estão ocorrendo (incluindo crimes contra a humanidade).

Nesse sentido, Kirby (2016, p. 148) comenta:

Nós não esperávamos que a RPDC cooperasse com a COI, e isso de fato não ocorreu. Por isso, nos deparamos com um problema inédito que era não sermos capazes de visitar o país e verificar a situação por nós mesmos. Assim, tivemos que recolher depoimentos fora do país. Nós não tivemos qualquer problema na obtenção de testemunhas. Nós fizemos um chamado público e recebemos um retorno alto, com um número muito grande de pessoas que desejavam falar. Há uma comunidade de cerca de 28.000 refugiados norte-coreanos na Coreia do Sul, de onde se originou a maioria das testemunhas. As testemunhas foram autorizadas a dar seu testemunho sem perguntas pré-fixadas e com intervenção mínima da COI. Um dos pontos fortes do relatório da COI sobre a RPDC dizia respeito ao fato de que, em quase todas as páginas, havia passagens citadas da transcrição que contavam a experiência dos indivíduos. Isso aumenta o poder e o vigor do relatório, que eu acredito ser um divisor de águas.

Assim, o COI - na obrigação de realizar uma investigação abrangente para a elaboração de um resultado mais preciso quanto possível, construiu um relatório de 372 paginas no qual transcrevia, segundo os depoimentos dos ex-moradores da Coreia do Norte, casos concernentes às violações tanto de liberdade de locomoção quanto de crença, descriminações com base em estratificação de níveis sociais (semelhantes ao sistema de castas da Índia), tortura, prisões políticas e desaparecimento forçado de pessoas em larga escala.

Além desses, aparecem crimes de extermínio, assassinato, escravatura, abortos forçados e outras formas de violência sexual, perseguição por motivos políticos, religiosos, raciais e de género, transferência compulsória de populações e o ato desumano de intencionalmente causar fome prolongada.

A United Nations General Assembly (2014, p. 62-63, tradução livre) cita em seu relatório, por exemplo, um relato que descreve o que acontecia com pessoas que extrapolavam a política repressiva de pensamento do governo norte-coreano:

Meus amigos, pessoas que costumavam ser escritores. . . nunca nos é permitido escrever nossas idéias, nossos pensamentos. . . por exemplo, este escritor, ele escorregou quando estava falando com outra pessoa. Ele estava bêbado na época, ele escorregou e disse que os escritores nunca têm permissão para escrever suas idéias e apenas dizendo isso, ele foi enviado para Yodok, Camp. No. 15.

Há muitas pessoas que foram levadas assim, especialmente na mídia. Se vocês estão na mídia na Coréia do Norte, se você escorregar, isso se torna uma questão política. E como Sr. Jang disse, vimos muitas pessoas serem

levadas para o kwanliso, os acampamentos políticos. Então, algumas pessoas, os criminosos gerais, vão para os campos correcionais, mas esses escritores, as pessoas na mídia, se eles escorregam apenas uma vez, eles podem desaparecer durante a noite e sua família pode ser raptada durante a noite, e às vezes, três gerações são apagadas.

Dessa forma, a liberdade de pensamento, consciência, religião, opinião, expressão, informação e associação é quase totalmente negada aos norte-coreanos. O Estado opera como uma máquina de doutrinamento, que propaga o culto à personalidade oficial e prega a obediência absoluta ao “líder supremo”, assim, praticamente todas as atividades sociais dos cidadãos (independentemente da idade) são controladas pelo Partido dos Trabalhadores da Coreia, ditando a vida das pessoas via associações organizadas pelo partido.

Esse extensivo controle – no qual a mídia estatal é a única fonte permitida de informação - tem como causa essencial a (auto) proteção do sistema de governo em relação a sua população, principalmente no que tange ao fenômeno da soberania/legitimidade. A história mostra essa como uma prática corrente em governos totalitários.

Nesse sentido, o relatório da United Nations General Assembly (2014, p. 72, tradução livre) pontua que:

Uma submissão, baseada em extensos testemunhos de cristãos clandestinamente praticando sua religião na RPDC, apresentou três razões pelas quais os cristãos são procurados pelas autoridades e visto como criminosos políticos: “(1) [Eles] não genuinamente adoram ao líder, e aderiram a outra ideologia , portanto, representam uma ameaça à estabilidade da sociedade; (2) [Eles] são considerados espiões de “estados cristãos” como a Coréia do Sul e os Estados Unidos; e (3) [Eles] são responsáveis pelo fim do bloco comunista na Europa Oriental e na União Soviética. Na Polônia, a Igreja Católica Romana era um forte força opositora ao regime, por exemplo. Os protestos que acabaram com o regime de Nicolae Ceauşescu’s na Romênia foram desencadeados por um pastor húngaro [protestante], Laszlo Tokes, que publicamente criticou o governo e se recusou a ser despejado de seu apartamento de propriedade da igreja.

Isso acontece porque nesse tipo de sociedade baseada na superestrutura do Estado e no culto à personalidade de um líder/ideia, os direitos individuais e coletivos estão interligados: o que é bom para o grupo também o é para o indivíduo. Dessa forma - como caso de sistemas fechados, se um indivíduo expressa uma opinião contrária à do grupo, esforços são feitos para persuadir o indivíduo a colocar sua opinião em harmonia com a opinião coletiva, mesmo que para isso se faça o uso da coerção física para a consecução de tal tarefa.

Pode-se, então, observar perseguições de cunho religioso descritas no depoimento de uma das pessoas contidas no relatório United Nations General

Assembly (2014, p. 72-73, tradução livre):

Ambas as irmãs do Sr. A foram punidas severamente por sua crença religiosa. Descobriu-se que alguém pregava o cristianismo a um amigo e o mesmo foi pego com uma Bíblia, resultando em uma sentença de 13 anos em um campo de prisioneiros comum (kyohwaso) O outro foi pego na China. Como resultado das rações de inanição e condições de vida horríveis, a primeira irmã quase morreu na prisão e só sobreviveu depois que o Sr. A. pagou um suborno substancial para libertá-la depois de três anos de confinamento. Por sua vez, a outra irmã foi rotulada de criminosa política porque descobriu-se que ela havia praticado o cristianismo na China e também tentado fugir para a República da Coréia. Ela foi enviada para Yodok Camp e nunca mais se ouviu falar dela.

De acordo com as leis da Coreia do Norte, toda religião deve ser banida - por

considera-la o “ópio” do povo. Há poucos anos, tomando parte de uma grande

campanha, o governo abriu uma igreja católica, uma igreja ortodoxa e um templo protestante na capital, mas as próprias investigações e depoimentos apontam que estes são apenas imitações e/ou existem apenas de fachada. Na prática, o culto permitido no país é apenas aquele dedicado ao líder.

Desse mesmo depoimento, extrai-se uma síntese da política do Estado em relação à liberdade de locomoção da população. Quem é pego tentando fugir da Coreia do Norte, por exemplo, é mandado para os campos de concentração, e graças a um sistema de vigilância pessoa-pessoa semelhante ao que existia na Alemanha nazista - composto tanto por “vigilantes” contratados como também por parentes do sujeito suspeito, poder-se-ia delatar cidadãos para as autoridades policiais sobre ações proibidas (que iam desde o planejamento de saída do país a pequenas piadas proferidas em relação a figura do governante), e são poucos os casos de sucesso. Além disso, são raros os casos de habitantes que conseguiram chegar à Coreia do Sul atravessando a zona desmilitarizada que separa os dois países, onde, a despeito do que o nome sugere, é uma das fronteiras mais perigosas e mais patrulhadas do mundo, com cerca de dois mil soldados patrulhando o local de ambos os lados.

Nesse interim, Yeonmi Park, como moradora da Coreia de Norte, relata em seu livro “Para Poder Viver: a jornada de uma garota norte-coreana para a liberdade” como era a vida naquele país e como se deu sua fuga do mesmo. Em um trecho, Park e Vollers (2016, p. 29) destaca:

O governo impusera mais restrições a viagens na Coreia do Norte, e era necessário providenciar uma papelada para viajar para fora da cidade. Primeiro, meu pai precisava de uma permissão para deixar a fábrica na qual trabalhava. Ele combinava uma taxa com um médico para que ele lhe escrevesse um atestado de que estava doente, e depois dizia a seu supervisor que tinha de sair da cidade por alguns dias para o tratamento. O supervisor lhe fornecia os documentos. Então meu pai ia até a polícia e os subornava para que lhe dessem uma permissão de viagem.

Percebe-se que a liberdade de ir e vir é um direito, se não inexistente, pelo menos bastante restrito na República Popular Democrática da Coreia. Todo esse controle se dava, essencialmente, através do que se poderia denominar como “documento de identidade” de cada cidadão. Este servia como uma espécie de “passaporte” com o qual cada cidadão ficava adstrito. As pessoas eram, segundo os depoimentos coletados por Demick (2013) obrigadas a registrar as viagens que fossem realizar, obtendo com isso, uma permissão. A título de exemplo, até mesmo se um determinado indivíduo fosse dormir na casa de um parente, era necessário o pré registro deste feito para não ficar como caracterizada uma ilegalidade.

Assim, apesar do acesso restrito ao Estado, a comunidade internacional pôde, quer seja por depoimentos contidos na literatura internacional (tendo como exemplo aqueles da jornalista Barbara Demick, Yeonmi Park, entre outros) como também através do próprio relatório da CDH, obter informações concernentes à situação

humanitária da Coreia do Norte onde, este último deixa expresso: “Crimes contra a

humanidade estão em curso na RPDC porque as políticas, instituições e padrões de impunidade que se encontram em seu centro, permanecem no local ”.

Portanto, ciente de todos esses problemas, resta a análise da conduta internacional em relação à Responsabilidade de Proteger, diante da ação anti- humanitária da Coreia do Norte para com a sua população.

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