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PARTE III União Europeia, Imigração e Ética

2. A Contingência dos Conceitos

2.1 A Soberania

O princípio da não intervenção nos assuntos internos, que tem regido as relações jurídicas internacionais, aponta a soberania dos Estados como condição de legibus solutus. No âmbito do controlo das migrações, a soberania é a característica fundamental da autodeterminação dos Estados, e como tal, estes não podem estar sujeitos a nenhuma limitação normativa externa à vontade da comunidade política. Deste modo, os Estados mantêm o direito legal e moral de exercer o seu poder sobre o controlo das migrações, com base nos interesses nacionais, de forma absoluta e discricionária (Carens, 1987).

A evolução das relações internacionais veio colocar em causa o conceito de soberania, dado que os Estados já não são os únicos sujeitos de Direito Internacional, encontrando-se, cada vez mais, dependentes uns dos outros.257 Este desenvolvimento, resultado do processo de globalização e do processo da integração europeia, gerou a possibilidade de criação de novos direitos, estabelecendo, assim, um conjunto de princípios pragmáticos e orientadores das relações internacionais. A soberania dos Estados-membros, da UE, encontra-se salvaguardada no Tratado da UE. Num âmbito mais global, na Carta da Organização das Nações Unidas (artigo 2º) que assenta a sua doutrina nos conceitos tradicionais da soberania e da igualdade (aparente) dos Estados (Fontes, 2007).

Porém, o próprio fenómeno migratório tronou-se um desafio à soberania dos Estado, dado que esta relação transborda os limites internos e externos dos Estados, fragmentando alianças políticas e a própria identidade dos povos europeus (Wihtol de Wenden, 2013).

A ideia tradicional de Estado soberano, tal como o conhecíamos, já não se sustenta. Dado que, os elementos fundamentais à soberania − um povo, um território e o exercício do poder máximo na esfera interna e internacional – estão a fragmentar-se (Velasco, 2005). Por um lado, a própria constituição da UE impulsionou a partilha de poderes entre os Estados-membros, de grande parte das suas competências e em diferentes áreas:

257 No âmbito, do DIP a invocação da soberania e das fronteiras não têm impedido, que instituições como a

ONU, assim como, diferentes sujeitos intervenientes da comunidade internacional, de adoptarem políticas de coercibilidade, onde se inclui, por exemplo, a possibilidade de intervir ou de ingerir (Fontes, 2007).

legislativa, financeira, comercial, militar, entre outras. Por outro lado, a própria dinâmica gerada pela interdependência dos Estados, no processo de globalização, debilitou o poder dos mesmos. Enquanto, o Estado Moderno se baseava no conceito Estado-nação, onde as relações destes se regulavam entre iguais e se demarcavam segundo o seu território, assiste-se a novas formas sociais que desafiam os fundamentos da soberania, marcando o início de uma nova ordem mundial.258 Sob a perspectiva da globalização verifica-se

alterações ao quadro político constitucional dos Estados, não só pela obrigatória transposição das fronteiras, como também no enfraquecimento das ligações entre espaço e identidade nacional (Sarmento, 2009). Num mundo, cada vez mais interligado – ecológico, económico, político e cultural – as decisões adoptadas pelos Estados, no âmbito político, económico, social ou territorial, coincidem cada vez menos com as pessoas e territórios que podem ser afetados por estas, devido à diminuição das competências legítima dos mesmos (Habermas, 2000).

Senão vejamos, a integração europeia possibilitou ao Direito Comunitário a conjugação de dois princípios fundamentais, o da soberania dos Estados e o da solidariedade internacional. 259 Por um lado, os Estados soberanos apresentam a plenitude da sua soberania internacional (Gouveia, 2010), que no âmbito das políticas de asilo e migração da UE se viu reforçada (Geddes, 2013). Por outro lado, a UE como sociedade internacional solidária, assumiu na sua constituição a responsabilidade moral de proteger os direitos humanos da sua população e inclusive da sociedade internacional, cuja responsabilidade moral, pode ser vista como um imperativo moral de proteção do direitos humanos em todo o mundo (Wheeler, 2000).

Portanto, podemos inferir que os Estados-membros abdicaram de partes da sua soberania, assistindo-se ao esgotamento dos seus poderes de controle efetivo e dos seus princípios constitutivos, mas quando abordada a questão da imigração, a soberania acaba sempre por ser evocada. Até porque, como já referimos, a própria UE deixou à descrição dos Estados diversas decisões que são fundamentais, no que diz respeito à política de asilo e migração. A falta de consenso para a adopção de um procedimento unificado sempre se

258 Segundo a perspectiva de Beck (2002) o emergir da segunda modernidade, ou de uma nova desordem

mundial, como referiu Habermas (2000).

259 Estes dois princípios foram evocados, durante a crise de verão de 2015, perante o afluxo massivo de

refugiados, diversos Estados-membros evocaram a sua soberania recusando-se a receber mais pedidos de asilo, porém, e após negociações, acordou-se a realocação e ajudas financeiras, considerando o princípio de proporcionalidade (Conselho Europeu, 2015b).

fundamenta na soberania dos Estados, quando esta é permeável por interesses de outra ordem.

Assim, verificamos que o tradicional conceito de soberania já não pode ser um entrave, por parte dos Estados, à concretização de uma política de asilo e migração unificada pela UE. Devendo esta política responder às aspirações dos indivíduos, na procura de uma vida melhor − onde grande parte deles, já só e apenas, procura sobreviver − da mesma forma que deve contemplar o Direito Internacional Humanitário. Insistir numa política de asilo e migração fundamentada em conceitos de Estado-cêntrico, responsabiliza a UE, de certa forma, pelo o atual drama migratório que afeta a Europa. A visível exploração do homem pelo homem e do homem pelo Governos, que fomenta o crescimento da indústria ilegal, sob interesses políticos e económicos, comprometendo não só o bem estar atual dos povos, como das futuras gerações. Como tal, a proteção da dignidade humana, a nosso ver, ultrapassa as velhas convenções dos Estados soberanos (Moreira, 2005).

A UE e os seus Estados-membros devem consciencializar-se da necessidade de outras respostas frente aos desafios que o fenómeno migratório coloca − em termos políticos e jurídicos – para responder às alterações da estrutura demográfica, social, económica e laboral que se verifica em muitos dos países europeus (Velasco, 2005).

Manter o argumento da defesa da soberania, tal qual como a conhecemos, só tem vindo a desvirtuar os fundamentos da UE, ao promover a regra do mais forte. Quando, na verdade, a UE deveriam ser o meio para uma integração social, democrática e solidária, da Europa em relação aos países terceiros. Mesmo, dentro do consenso europeu (ou da falta dele), assistimos a uma união de Estados, onde a soberania em vez de ser partilhada por todos é usurpada pelos países mais fortes e ricos − num soberanismo ofensivo. Exemplo disso foi a política migratória excludente, com prorrogações consecutivas em relação à liberdade de circulação dos cidadão romenos e búlgaros, fomentando a exclusão e possibilitando a continuidade de um sistema fechado de desigualdade e pobreza.

Enquanto a UE permitir que a política de asilo e migração dos Estados-membros se escuse no argumento de soberania, coloca grande parte dos indivíduos imigrantes em situação de grande vulnerabilidade frente ao abuso, à injustiça e arbitrariedade, o que por si só acarreta implicações negativas aos direitos naturais do próprio Estado democrático (Carens, 2013).

No documento União Europeia, imigração e ética (páginas 81-84)