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Capítulo 2: Políticas educacionais e os movimentos quilombola e palenquero: um diálogo

2.2 A soberania intelectual de quilombolas e palenqueros

Como já assinalamos neste texto, uma das facetas do projeto da “modernidade” tem sido as tentativas de universalização dos conhecimentos europeus (STAM & SHOHAT, 2006; MBEMBE, 2014a, 2014b), e para o legitimarem, como nos explica Bulhões, outras “epistemologias, cosmovisões e múltiplas formas de se conceber as coisas do mundo foram brutalmente perseguidas, apagadas e desconsideradas pelas potências europeias em nome de uma ciência dita civilizada e ‘humana’” (BULHÕES, 2018, p. 5).

Em combate às formas de alterícidio e epistemícidio45 (MBEMBE, 2014a), os povos negros têm resistido e elaborado estratégias contra o rolo compressor colonial. Dentre essas estratégias, eles encontram caminhos para serem escutados com respeito, para legitimarem as suas autonomias e simetrias nas capacidades de decisões sobre gestão de suas próprias vidas e territórios, ou seja, criam mecanismos para elaborar e/ou de expressar suas soberanias intelectuais.

Reconhecemos que as inúmeras estratégias de resistência e de superação ao racismo dos povos negros na Diáspora historicamente transitaram e transitam entre possibilidades de ações por dentro e por fora das instituições coloniais, imperiais e/ou republicanas. Estas lutas são fundamentais para o fortalecimento das comunidades e das noções de pertencimento em meio às violências coloniais e suas heranças. Dessa forma, compreendemos que a Constituição Federal de 1988 no Brasil serviu para dirimir desigualdades étnico-raciais, pois trouxe em seu bojo o Artigo 68, que garante “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, e os artigos 215 e 216, que reforçam o direito das comunidades negras ao ratificarem que

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão de manifestações culturais. [...], Art. 216 e que os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver constituem patrimônio cultural brasileiro (BRASIL, 1988).

Já a Constituição da Colômbia, que data de 1991, também foi um importante documento para as populações afrocolombiana e palenquera, pois nela existem artigos fundamentais que asseguram direitos a essas comunidades. Em relação aos direitos sobre a identidade cultural e territorial, citamos os artigos abaixo:

Artigo 63. Os bens de uso público, os parques naturais, as terras comuns de grupos étnicos, as terras de resguardo, o patrimônio arqueológico da nação e os demais bens que determine a lei, são inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis. 46 (COLÔMBIA, 1991)

Artigo 79. Todas as pessoas têm direito a gozar de um ambiente são. A lei garantirá a participação da comunidade nas decisões que podem afetá-la.47 (COLÔMBIA, 1991)

Embora as cartas constitucionais brasileira e colombiana assegurem direitos a essas comunidades, elas não têm sido suficientes para garantir seu cumprimento. Além disso, associado ao texto constitucional, outras iniciativas precisam ser criadas para que se tornem palpáveis as ideias defendidas no texto. Dessa forma, interessa-nos analisar os desdobramentos desses direitos relacionados às questões de educação, história e memória.

Como citamos no capítulo anterior, os povos negros no Brasil já lutavam pela escolarização antes mesmo da abolição da escravatura e, ao longo do tempo, continuaram buscando caminhos de construção de oportunidades que primassem pela integração à dita sociedade brasileira, usufruindo os mesmos direitos enquanto cidadãos (DOMINGUES, 2007). Neste caso, os movimentos negros brasileiros se empenharam para fazer da educação escolar um dos espaços primordiais para pôr em exercício a discussão das questões raciais neste país, na formação dos povos negros e não negros.

46 Artículo 63. Los bienes de uso público, los parques naturales, las tierras comunales de grupos étnicos, las tierras de resguardo, el patrimonio arqueológico de la Nación y los demás bienes que determine la ley, son inalienables, imprescriptibles e inembargables.

47 Artículo 79. Todas las personas tienen derecho a gozar de un ambiente sano. La ley garantizará la participación de la comunidad en las decisiones que puedan afectarlo.

Em 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) já se sinalizava no Artigo 26 a adoção da diversidade no currículo para tratar das características regionais, locais e culturais na sociedade.

Anos mais tarde, o mesmo artigo sofreu uma alteração com a Lei 10.639 de 2003, e criou- se o Artigo 26-A, que torna o currículo escolar mais orientado às diversidades étnico-raciais e culturais presentes no Brasil, ao incluir a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro- brasileira nos estabelecimentos de ensino particulares e públicos do país. Em 2008, houve outra alteração, com a incorporação da obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas indígenas também.

Não muito diferente dos movimentos sociais negros brasileiros, os colombianos também mantiveram a luta pela inclusão das negras e dos negros nos sistemas educativos. Na história do país, os povos negros colombianos sempre lutaram para que seus direitos fossem efetivados, obviamente, muito antes da promulgação da constituição; por isso, “no plano político estabeleceram por todo o continente sociedades de insurgentes, de palenques com os fugitivos que foram chamados cimarrones” 48 (MOSQUERA et al., 2002, p. 15, tradução nossa).

Ainda segundo Mosquera, Pardo e Hoffman (2002), teóricos dos estudos afrocolombianos, após a abolição da escravatura, em 1851, os povos negros foram declarados “cidadãos” sem que pudessem, no entanto, exercer a cidadania, por isso “construíram modos genuínos de vida e de produção, entre isolamento, autoconsumo e dependência de uns poucos negociantes de produtos de extração florestal” 49 na costa do Pacífico (MOSQUERA et al., 2002, p. 16, tradução nossa).

Neste ponto, interessa-nos refletir sobre como os povos negros em ambiente rural reforçaram os seus direitos por educação em ambos os países. Na Colômbia, por exemplo, há a conquista da Lei 70, de 1993, que outorga a essa população direitos em educação, cultura e projetos de desenvolvimento próprio, e da Lei 115, de 1994, que formalizou o conceito de etnoeducação,50 no Artigo 55.

48 En el plano de lo político, estabelecieron por todo el contiente sociedades de arrochelados, de palenques con fugitivos que fueron llamados cimarrones.

49 Construyeron modos genuinos de vida y de producción, entre aislamento, autoconsumo, y dependencia de unos pocos negociantes de productos de extracción forestal.

50 ARTICULO 55. Definición de etnoeducación. Se entiende por educación para grupos étnicos la que se ofrece a grupos o comunidades que integran la nacionalidad y que poseen una cultura, una lengua, unas tradiciones y unos fueros propios y autóctonos.

Se na década de 1990 as causas ligadas às questões educacionais dos povos negros vivendo em ambiente rural ganham destaque na Colômbia, no Brasil o interesse em promover uma educação antirracista pelo uso de práticas curriculares anticoloniais no contexto rural negro é mais recente. Em 2012, quase uma década após a promulgação da Lei 10.639/03, foram conquistadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.

Embora essas conquistas tenham se formalizado em Diretrizes Curriculares Nacionais no ano de 2012, vale lembrarmos que as e os quilombolas de Conceição das Crioulas já efetivavam a Carta de Princípios da Educação Escolar Quilombola em 2008, como já foi citado neste trabalho. Com a promulgação da Carta de Princípios51, a comunidade de Conceição das Crioulas formalizou seu desejo de uma educação diferente, com ênfase em suas perspectivas culturais e identidades.

Com isso, entendemos que a garantia dos referenciais identitários quilombolas e palenqueros na educação é essencial para superar a imposição aos povos negros de conversão em um Outro para ser (CÉSAIRE, 2010). Quando as e os quilombolas e palenqueros incorporarem as narrativas, conhecimentos e modos de vida das suas comunidades no processo de escolarização, a partir de suas perspectivas, podem fazer nascer outras propostas de educação diferentes daquelas que legitimam os estereótipos e preconceitos disseminados contra os povos negros no imaginário social.

Então, ao falarmos sobre os processos de escolarização nas comunidades quilombola e palenquera, precisamos questionar como a educação em geral, e o currículo em particular, podem deixar de privilegiar o chamado “conhecimento legítimo, o conhecimento que todos devemos ter” (APPLE, 1982, p. 98) para dialogar, reconhecer e incorporar de maneira simétrica outros conhecimentos capazes de inspirar modelos plurais de educação que considerem os contextos rurais e urbanos das contribuições dos povos negros. Afinal, como explica Daniela Santos do Rosário, mestre em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, “a base para a construção dessa identidade política, imprescindível no avanço do empoderamento e da tomada de espaço social, em qualquer grupo que dentro da lógica global atual chamamos de ‘minorias’, é a educacional” (ROSÁRIO, 2015, p. 193).

Diante dos desafios impostos para construir referenciais educacionais com base em suas memórias e identidades, quais seriam as similaridades entre os projetos de educação desenvolvidos

por quilombolas e palenqueros? De que maneira as suas práticas pedagógicas podem romper com as barreiras da descolonização, com as formas de silenciamento impostas aos povos negros? Assim, no que diz respeito especialmente aos modelos de educação de cada comunidade, antes de tudo é preciso considerar que, como explica Givânia Maria da Silva:

Não basta uma tentativa de transmissão caricaturada e nem uma interpretação desconectada da realidade. É preciso perceber como essas comunidades se entendem, se afirmam, se reconhecem e querem ser vistas. É preciso o envolvimento das mesmas como agentes de suas histórias, buscando fazer desse processo um momento de aprendizagem coletiva. (SILVA, G., 2011, p. 06)

Nessa perspectiva, trata-se de pensar a educação escolar de quilombolas e palenqueros tendo como eixo norteador o reconhecimento das especificidades históricas, sociais e culturais de cada comunidade. Torna-se necessário, portanto, a elaboração de práticas pedagógicas que exaltem o protagonismo negro através de um processo de libertação ontológica, de valoração e legitimação de valores definidos pelos próprios negros (CÉSAIRE, 2010), os quais não mais serão vistos de modo objetivado e negativizado, pelo estigma da escravidão. Isso é fundamental para o enfretamento de um imaginário social racista que produziu e produz narrativas que relacionam os corpos negros apenas às dimensões de servidão, pobreza e incapacidades.

Por isso, para analisarmos como essas especificidades podem contribuir para os projetos intelectuais de cada comunidade, exporemos, a seguir, três eixos pedagógicos da educação escolar de quilombolas e palenqueros, cuja problematização pensamos ser fundamental para as questões envolvendo a elaboração de políticas educacionais. Os eixos são: currículo escolar, formação de professoras e professores e gestão escolar.

Apesar das diferentes concepções sobre esses temas, concordamos com Sacristán (1999, p. 61) sobre o conceito de currículo. Para ele, o currículo é “a ligação entre a cultura e a sociedade exterior à escola e à educação; entre o conhecimento e a cultura herdados e aprendizagem dos alunos; entre a teoria (idéias, suposições e aspirações) e a prática possível, dadas determinadas condições”.

Sobre os demais temas, dialogamos com o entendimento do educador Paulo Freire. Na obra Educação na cidade, o autor sustenta que “ a formação do educador deve instrumentalizá-lo para

que ele crie e recrie a sua prática através da reflexão sobre o seu cotidiano” (FREIRE, 1991, p. 80). Já no que se refere à gestão da escola, ele cita a importância do diálogo, de uma reflexão coletiva sobre as necessidades e os interesses da escola.

Retomando a ideia anterior, nosso interesse nesses temas, portanto, é para dialogarmos com as e os quilombolas e palenqueros e aprendermos como essas questões são pensadas e tratadas em seus projetos de educação.