• Nenhum resultado encontrado

A sociedade panóptica e os teatros de subjetivação

2. Foucault: saber-poder, disciplinas e biopolítica

2.2 A sociedade panóptica e os teatros de subjetivação

No final do século XVIII, o filósofo Jeremy Bentham exprimia a empolgação diante do conceito de um novo plano de edifício, o qual poderia servir aos mais diversos propósitos:

31

[…] seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos em qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em ascensão no caminho da educação, em uma palavra, seja ele aplicado aos propósitos das prisões perpétuas na câmara de morte, ou prisões de confinamento antes do julgamento, ou casas penitenciárias, ou casas de correção, ou casas de trabalho, ou manufaturas, ou hospícios, ou hospitais, ou escolas. (BENTHAM, 2008 [1787], p.19-20).

Idealizada em parceria com seu irmão, Samuel Bentham, essa arquitetura, facilmente adaptável, como se viu, a uma vasta gama de objetivos, materializará a utopia política da sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2014 [1975]). Concebido inicialmente como um modelo de espacialização industrial – e não carcerária – que deveria maximizar a vigilância e o aprendizado de obreiros em um povoado-fábrica, o Panóptico, como foi designado, permitirá ao poder encontrar um escalonamento perfeito e uma outra economia para o seu exercício sobre as frias vigas que lhe dão sustentação. Tal proeza seria possível graças ao efeito articulado entre duas construções fundamentais: na periferia, um edifício anelar; em seu centro, uma torre envolta de um pátio. O prédio circular desdobra-se em um conjunto de celas recortadas por duas janelas: uma se abre para o exterior, a outra para o pátio onde está encravada a torre de vigilância. A luz penetra em cada uma dessas divisões de fora a fora. Seu único obstáculo é o corpo (do criminoso, do trabalhador, do doente, do louco, do colegial) que habita a cela e que se oferece à individualização total e à visibilidade constante de quem se encontra na torre central (o vigia, o chefe de oficina, o médico, o psiquiatra, o professor). Entre cada um dos compartimentos do edifício periférico, há paredes que impedem o contato e a comunicação dos ocupantes entre si, diminuindo distrações, prevenindo rebeliões, assegurando, enfim, a ordem. A torre central, uma vez que não permite a retribuição do olhar, pode ser ocupada por qualquer pessoa, até mesmo por Deus: o vigilante é sempre um ponto cego aos olhos de quem está encerrado na cela. É ele, além do próprio agenciamento provocado pela estrutura panóptica, que fixa o poder, mesmo que ficcionalmente, numa posição determinada. Se assim o situa não é, contudo, para esgotá-lo no mesmo instante, mas sim para, a respeito de seus objetos de vigilância, constituir com ele um saber. As disciplinas produzem fartos arquivos; neles, cada indivíduo possui uma pasta nominal com o histórico de seu comportamento, de seu quadro de saúde, de seu rendimento na fábrica, de sua progressão estudantil.

Em comparação com o mecanismo de atuação do poder no regime soberano ou punitivo, Foucault opõe, palavra por palavra, o seu funcionamento na sociedade

32

disciplinar. As disciplinas representam – mais que a materialização do poder em uma instituição qualquer – um novo tipo de controle que se organiza física e anatomicamente sob a forma de uma “ortopedia social” generalizada (FOUCAULT, 2002 [1973]). Assim, os grandes espetáculos de demonstração do poder que ainda encontrariam alguma regularidade até o século XVIII (uso franco da força, punição física dos condenados, exclusão extrema dos doentes) cederão progressivamente espaço às instituições sociais ortopédicas e, naquelas em que o poder ainda assumia uma função eminentemente negativa, investimentos positivos passarão a concorrer com a economia pesada e onerosa do encarceramento, da violência explícita e da reclusão em larga escala.

Às tétricas encenações de dor e súplica de uma sociedade punitiva, lentamente se sucederá um outro tipo de espetáculo, que encontra na arquitetura panóptica das sociedades disciplinares seu modelo funcional ideal para o agenciamento político dos corpos. Como já descrevia Foucault (2014 [1975])14, cada jaula que forma o edifício

vigiado pela torre central representa um pequeno teatro protagonizado pelo ator solitário em sua cela. Nela, o indivíduo introjeta fielmente seu papel no roteiro, mesmo na ausência real de uma plateia. O poder, com efeito, adquire uma espacialidade em qualquer disposição arquitetônica, porém Foucault, a partir da análise do Panóptico, convida a pensar a arquitetura como, segundo Preciado (2017 [2008]), órtese-política à produção da subjetividade do indivíduo disciplinar. “Exoesqueletos da alma”, os dispositivos duros e externos das estruturas panópticas permitem a circulação dos corpos em espaços que funcionam como verdadeiros “teatros de subjetivação” (PRECIADO, 2017 [2008]). Desse modo, os processos de produção de subjetividade dos indivíduos disciplinares são inseparáveis dos hospícios, hospitais, prisões, fábricas, escolas, etc, em que se encontram; em outras palavras, dos locais e das equipes de produção que agenciam seus corpos e apresentam a dupla objetivação/subjetivação (enquanto loucos, doentes, criminosos, trabalhadores ineficientes, colegiais indisciplinados) como o principal espetáculo desse teatro. O que

14 Em A verdade e as formas jurídicas (2002), compilação de conferências realizadas no Brasil em 1973, Foucault insistirá na conversão do espetáculo em vigilância operada pelo regime disciplinar. Assim, no lugar de possibilitar a teatralização de um acontecimento a um grande número de pessoas, caso dos sacrifícios na civilização grega ou das missas nas Igrejas, a sociedade panóptica perseguirá a construção de um único olhar, capaz de vigiar a maior quantidade de indivíduos possível. Em Vigiar

e punir, de 1975, contudo, o francês mobilizará, como se mostrou, um vocabulário que remete ao

caráter teatral dos acontecimentos no interior do Panóptico. Isso permite sugerir que a arquitetura panóptica já havia sido pensada, em Bentham, sob a metáfora do espetáculo e que o poder é aí teatralizado de uma nova forma.

33

o Panóptico explora ao máximo é, afinal, a qualidade performativa de sua arquitetura: “La finalidad de tales arquitecturas no es dar hábitat ni representar al individuo, sino que, como auténticos dispositivos performativos, tienden a producir el sujeto que dicen albergar” (PRECIADO, 2008, p.134). O doente, o estudante, o trabalhador e o presidiário são, assim, irredutíveis dos dispositivos arquitetônicos que os produzem performativamente enquanto tais. Não pode haver, sem a distribuição e a gestão políticas de seus corpos no espaço, objetivação e subjetivação disciplinar15.

É então no interior desses dispositivos (industriais, de saúde, de reparação penal, de força militar, de desempenho escolar) da segunda metade do século XVIII, que o indivíduo, outrora concebido enquanto globalidade maciça e indistinta, será, doravante, trabalhado em suas minúcias: cada corpo individual se mostrará, assim, passível de ser domesticado por uma série de instituições cuja função será o seu treinamento e posterior devolução, de acordo com a caracterização clássica de Foucault (2014 [1975]), como organismo “dócil” e “útil” ao convívio social. Nesse sentido, identifica o autor, as sociedades que emergiram das primeiras décadas da Revolução Industrial inverteram o eixo político da individualização: se nos regimes feudais e soberanos os mecanismos individualizantes atingiam seu ápice sobre as regiões ascendentes do poder, nesses novos regimes, que o francês qualificou como “disciplinares”, a mirada individualizante é descendente, atingindo sobretudo aqueles que se encontram nos escalões mais baixos da sociedade.

Desse modo, se o poder, em algum momento, já havia adquirido os contornos de uma unidade centralizada, cuja administração caberia senão a uma figura em particular (seja o soberano, seja o Estado), a sociedade disciplinar, como modelo de controle e correção de indivíduos dominante a partir da segunda metade do século XVIII, promoverá sua pulverização ao longo de todo corpo social. Para Foucault (2002 [1973]), a gênese de tais sociedades, de fato, pode ser localizada não no âmago da administração dos Estados-nação, mas no interior de diversas instituições de origem popular ou semipopular. Os instrumentos e técnicas disciplinares desenvolvidos por esses grupos da sociedade civil serão apenas posteriormente cooptados e readaptados aos interesses estatais.

15 É necessário marcar, entretanto, a despeito da ênfase na espacialização, que as disciplinas “[…] sempre tendem, de fato, a ultrapassar o âmbito local e institucional em que são consideradas” (FOUCAULT, 2010 [1976], p.210).

34

Em uma série de regulamentos e outras instruções para uma vida útil no exército, na fábrica ou nos liceus, o indivíduo disciplinar começa então ganhar forma: arte de pôr em fila, as disciplinas acessarão cada corpo em sua localização celular para que a relação entre a mecânica de um movimento, o volume de um espaço e o intervalo de tempo no relógio seja a mais rentável possível. Esses primeiros registros examinados por Foucault vão, dessa forma, submeter o indivíduo, primeiramente, à ordem da palavra escrita; depois, tornarão possível o seu aperfeiçoamento através do estabelecimento de uma nova economia dos gestos. O treinamento sobre cada corpo individual, trará, ao cabo, como um efeito de conjunto, o resultado pretendido pelas instituições das sociedades disciplinares.

Na prática judiciária, essa transformação assinalará a passagem do procedimento de inquérito, que procurava reconstituir a ocorrência de um fato através do interrogatório, ao exame do indivíduo em sua singularidade e, a partir dessa inspeção, à identificação do que nele está fora da ordem almejada, do que é normal ou não em sua conduta, do seu nível de periculosidade para a sociedade. As disciplinas demonstrarão, dessa forma, um intenso interesse pelos indivíduos, mas se assim o auscultarão, vigiarão ou submeterão ao teste será para (re)inscrevê-los nas palavras e facilitar a localização de sua história, de seu comportamento e de sua progressão em cadernos de anotação, registros e outros documentos de uma instituição qualquer. Através da expansão da técnica do exame, garantida pela crescente celularização disciplinar, haverá assim uma avolumação arquivística de saberes sobre os sujeitos. Será na alvorada da descoberta desse olho vígil e examinador que o surgimento das ciências que têm o homem como seu objeto de conhecimento também será possível (FOUCAULT, 2002 [1973], 2014 [1975]).

Aqui, cabe um parêntese: quando descreve o surgimento das disciplinas, Foucault, como vimos, concebe seu desenvolvimento em um campo de realização que tornou também possível a aparição das ciências humanas. Com isso, o francês busca não afirmar que o nascimento dessas ciências tem origem no cárcere, e sim que, a fim de fazer circular seus mecanismos de individualização e normalização social, as técnicas disciplinares convocaram um saber sobre o homem que fosse capaz de produzir a docilidade e a utilidade que eram reclamadas pelo poder emergente. E esse saber, exercido sob as formas de observação e exame e em cujo princípio reside a formação dessa nova tecnologia de poder disciplinar, foi produzido pelos discursos que, à época, almejavam o status de ciência e que se caracterizam

35

não apenas por eleger o homem como seu objeto, mas, ao mesmo tempo, por produzi-

lo como homem e, a partir disso, como objeto de conhecimento. É nesse sentido que,

para Foucault (2014 [1975], p.300), “A rede carcerária constitui uma das armaduras desse poder-saber que tornou historicamente possíveis as ciências humanas”.

Além da técnica do exame, Foucault (2014 [1975]) cita ainda dois outros recursos utilizados para garantir o bom adestramento dos indivíduos nas sociedades disciplinares: a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora. A primeira delas organiza o poder em um diagrama cuja ambição principal é o exercício da vigilância sem os empecilhos e as obstruções dos muros altos, das portas cerradas e das massas amorfas. Para isso, convém dispor as construções em uma ordem que favoreça o olhar mais rápido e abrangente no acampamento militar, investir nos vazamentos e nas transparências nas arquiteturas dos hospitais, promover separações entre indivíduos e aberturas para sua observação constante nas escolas ou nas fábricas. Para Foucault, a vigilância hierárquica sonha com a capacitação de um olho que tudo vê, permanentemente, e que tornaria, em um cenário disciplinar ideal, a águia e o sol figuras obsoletas. A sanção normalizadora, por sua vez, transporta para essas instituições pequenos tribunais cuja função é julgar as inobservâncias e os desvios à regra, atribuindo-lhes alguma penalidade. Nesse sentido, as sanções deverão ter em conta duas características principais: ser essencialmente corretivas (não abusivas, demasiado penalizantes ou desproporcionais) e ter sua expiação convertida em algum rendimento ao trabalho disciplinar. Daí que elas frequentemente se desdobrarão em exercícios: a sanção, de alguma forma, duplicará o fato que a provocou, exigindo que ele seja realizado novamente, mas agora da forma satisfatória, correta ou ótima. Por fim, a atribuição das sanções disfarçará as penalidades com a apresentação de uma certa benevolência. Mais que castigar, deve recompensar e reforçar positivamente aqueles que cumprem os regulamentos, que atingem os resultados esperados e que não (re)incidem nos desvios.

Através da exposição desses três grandes recursos utilizados em larga escala pelas instituições da sociedade disciplinar, é possível perceber que neles subjaz um outro investimento de poder sobre os corpos e uma nova forma de distribui-lo ao longo da existência do indivíduo e no espaço de uma arquitetura que é, antes de tudo, funcional. As disciplinas, nesse espectro, virão senão para facilitar o exercício do poder: ao esvaziá-lo de vez de suas qualidades negativas e de seus mecanismos de

36

subtração através de uma mirada essencialmente normalizadora sobre o indivíduo e ao decompô-lo em pequenos pontos espalhados por todo corpo social, deixarão sua economia fisicamente menos custosa, sua movimentação mais fluida e sua necessidade de aplicação muito pouco questionável. Desse modo, o poder se fará presente em toda parte e em cada parte determinada; em cada lugar em que se instaurar uma hierarquia e também na instituição como um todo. De tão esmigalhado, passará por anônimo: gigante em sua dimensão, mas pequeno demais para ser atribuível a um indivíduo em particular. Sob o pretexto da correção social, permitirá um controle mais meticuloso e coordenado das operações dos corpos, mas, no final das contas, adverte Foucault (2014 [1975], p.214), as disciplinas vêm “[…] para desequilibrar definitivamente e em toda parte as relações de poder; daí o fato de nos obstinarmos a fazê-las passar pela forma humilde, mas concreta de qualquer moral, enquanto elas são um feixe de técnicas físico-políticas”.

Enquanto dimensões espaciais e relacionais entre poder-corpo, as instituições disciplinares escoam um poder capilar que percorre sua arquitetura e desemboca na anatomia dos corpos individuais que intentam corrigir. As disciplinas circularão pelo corpo, conformando-o aos aparelhos de ortopedia social. Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, contudo, esse investimento do poder sobre o corpo de cada indivíduo passará a atuar junto a uma preocupação crescente com o corpo generalizado de uma população. Se, nas sociedades disciplinares, como observou Foucault (2014 [1975]), o poder dissociava-se do corpo, deslocando-se da forma de suplício para a produção de habilidade, aptidão ou capacidade, será no contexto biopolítico que esse poder ganhará, literalmente e de forma diferencial, (o) corpo.