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3. Corpo-teoria

3.3 Breve genealogia do ciborgue

Sob a cadência repetitiva dos ponteiros do relógio e ao som das engrenagens barulhentas das primeiras máquinas (moinhos, canhões, autômatos), o homem da era da técnica começa a ser montado como projeto (político, econômico, corporal) muito antes da Revolução Industrial. Um gesto indispensável virá, sem dúvida, de sua decomposição em corpo e mente, operada por Descartes no século XVII. O primeiro, por um lado, investido de matéria pura e traiçoeira, seria regido pelas leis da física e, por conseguinte, poderia ser submetido ao exame científico; já a mente, reduto da alma, preservaria alguns resquícios divinos e asseguraria por mais um tempo o abismo entre o humano e o animal. Um século depois, o médico francês La Mettrie, se não matará a alma, pelo menos conferirá a ela um componente material, localizado no cérebro. Da tradição cartesiana iniciada por Descartes e abraçada por outros filósofos e médicos, nascerá assim o corpo-máquina, metáfora soberana para explicação do corpo vivo até o final do século XVIII.

Esse será, contudo, apenas um dos registros de sua história, aquele que Foucault (2014 [1975]) denominou de “anátomo-metafísico”. No plano técnico-político, a outra parte da narrativa, conta o autor, será escrita por um conjunto de regulamentações (militares, escolares, hospitalares, etc) que visarão ao controle e à correção das operações corporais nas sociedades disciplinares. A incessante analogia entre homem-máquina não se tratava, afinal, de oferecer apenas explicações mecânicas aos processos químicos e biológicos do corpo humano, como também de adestrar naquele mesmo corpo a máquina oculta que garantiria o seu desempenho ótimo e que dele extrairia o seu melhor rendimento.

No cruzamento entre esses dois registros que compõem a história do homem- máquina, encontra-se a grande ironia daqueles tempos mecanizados: a técnica e o saber científicos da época buscarão decifrar o homem e seus processos vitais utilizando, para isso, um protótipo imóvel e sem vida. Será assim que, nas mãos dos anatomistas do Renascimento e do Iluminismo, o aforismo grego “conhece-te a ti mesmo” declinará para o moderno “conhece-te como a teu cadáver”. À observação

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clínica, turvada pela opacidade dos corpos, deverá se seguir o trabalho da anatomia patológica. É ela que, no final das contas, ao esfolar o cadáver, dele arrancará a verdade muda da doença e da morte46.

Com a crescente industrialização do trabalho no século XIX, contudo, o livro do homem-máquina, se não deixa de ser escrito, ao menos diminui seu ritmo. Como nota Preciado (2014 [2004]), o agenciamento dos corpos como instrumentos de trabalho a serviço da máquina inverterá os termos da metáfora: a mecanização total do corpo vivo cederá progressivamente lugar a uma espécie de biologização da máquina. Surge daí o robô, alegoria que antecipa o nascimento do ciborgue. Técnicas preliminares para uma construção ciborguiana serão testadas somente no século XX, elegendo, para tanto, os homens do pós-guerra como cobaias. Ao deixarem alguns pares de braços e pernas nas trincheiras dos campos de batalha, no retorno mutilado a suas pátrias precisarão ser reintegrados à maquinaria industrial. Para a autora, a reabilitação prostética dos soldados e a incorporação fantasmática de seus membros desencaixáveis romperão de vez com o modelo mecânico. A prótese, que deveria ser um simples instrumento de substituição a um membro ausente, quer sentir. A máquina que deseja a consciência e a sensibilidade é, afinal, um prelúdio do ciborgue. Ainda não é, segundo Preciado, pois a prótese pode, a qualquer momento, retornar à sua qualidade de objeto. Será somente após a Segunda Guerra que serão concebidos os primeiros ciborgues através do trabalho biotecnológico e comunicacional das instituições do capitalismo em sua fase global.

É necessário antecipar que o ciborgue, como Foucault, demonstra a mais profunda apatia pelas origens: não lhe interessam os mitos fundadores, a sua determinação em uma escala evolutiva, no interior da história das espécies ou a inserção na linhagem daquela que poderia ser sua família ciborguiana. A despeito dessa ressalva, poderíamos, ficcionalmente (assim como seria possível afirmar que Descartes fez as vezes de pai solteiro do homem-máquina), reconhecer Donna Haraway como a ciborgue-mãe. Na metade dos anos 80, Haraway (2013 [1985]) gera, ou melhor, regenera (a fim de, como orienta, não recair ainda mais nas metáforas do sexo reprodutivo) a potencialidade política dos corpos que circulam em um mundo

46 Assim descreve Bichat, anatomista francês do século XVIII, citado por Foucault (2013 [1963], p.162): “Durante 20 anos, noite e dia, tomar-se-ão notas, ao leito dos doentes, sobre as afecções do coração, dos pulmões e da víscera gástrica, e o resultado será apenas confusão nos sintomas, que, a nada se vinculando, oferecerão uma série de fenômenos incoerentes. Abram alguns cadáveres: logo verão desaparecer a obscuridade que apenas a observação não pudera dissipar”.

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crescentemente solapado pela profusão das tecnologias mecânicas e cibernéticas. Seu manifesto é senão um convite para que a luta aconteça com outras armas ou, mais exatamente, com as mesmas que marcaram alguns como os “outros” da história, da escrita, do trabalho, da vida pública e da sexualidade.

Para uma revolução dessa monta, é preciso, num primeiro momento, suspender todas as dicotomias caras à modernidade: mente e corpo, animal e humano, organismo e máquina, público e privado, natureza e tecnologia, essencialismo e construtivismo, homens e mulheres, primitivo e civilizado. Não porque os ciborgues não tenham nada a dizer a esse respeito, e sim porque são prova viva dos hibridismos, das mestiçagens e dos entre-lugares que o constituem enquanto identidade política. Insistir na violência das polarizações hierárquicas é, ao cabo, flagelar a si mesmo.

Em um segundo momento, os ciborgues devem garantir sua participação nas relações sociais da ciência e da tecnologia não mais como objetos ou forças de trabalho, mas enquanto sujeitos de linguagem e ação (distinção que, aliás, depois de Austin, não faz mais tanto sentido) capazes de escrever suas próprias narrativas, fundar novas epistemologias e explorar outros usos do corpo à luz das biotecnologias e da cibernética. Para isso, é imperativo varrer completamente a demonização tecnológica dos discursos e escapar do fascínio pelo eu unitário como centro da ancoragem teórico-política. O entendimento de que toda técnica está a serviço da dominação (patriarcal) fez historicamente com que as correntes feministas voltassem a si mesmas, ao que haveria de natural e de potente nos corpos das mulheres (sexo, reprodução, maternidade, etc) e que organizaria sua experiência ao redor de um mundo modelado pela tecnocracia masculina. Como alerta Preciado (2014 [2004]), argumentos dessa “natureza” (para recorrer ao duplo sentido) desembocam numa crítica que renaturaliza o papel da mulher enquanto natureza e do homem enquanto tecnologia. Renaturaliza porque, como já examinou Haraway (1990), no discurso antropológico e colonial o homem era definido como aquele que manipulava instrumentos (tecnologia), enquanto a mulher, além de integrar o domínio natureza (e desempenhar, por conseguinte, o papel de mais um artefato a ser manuseado pelos homens), era descrita não tanto em relação ao corpo masculino, mas em oposição ao do primata fêmea47. Logo, a humanidade, essa figura modernista, “[…] tem uma face

47 Existe ainda, para Preciado (2014 [2004]), uma outra renaturalização: o homem, durante um bom tempo, permaneceu incólume à desconstrução pela análise feminista, que organizou sua produção sob

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genérica, uma forma universal. A face da humanidade tem sido a do homem” (HARAWAY, 1993 [1992], p.277). Uma humanidade feminista necessitaria então, para a autora, de uma nova forma, de uma outra gestualidade, sem, no entanto, deixar-se entregar à figuração e à representação literais. Para isso, teria de ser, desde o princípio, pós-identitária.

Os ciborgues conspiram, nesse sentido, para a virada pós-feminista: sem gênero, a eles não interessam as velhas identidades, somente aquela que os une em torno de uma aliança política. A ação centrada nas identidades tradicionais experimenta, afinal de contas, o risco iminente – e imanente – de escorregar nas essencializações e no reducionismo totalizante. Ela distribui os sujeitos em torno de novas normas, cria suas próprias taxonomias, determina os sujeitos autorizados ao discurso, os objetos de representação privilegiada, os corpos mais desejáveis, enfim, produz sua outridade sem necessariamente perturbar a ordem dominante contra a qual pretende fazer frente.

Assim, em tempos ciborguianos, a identidade necessita ser crescentemente inutilizada enquanto fundamento à organização social e à ação política: não há unidade essencial, e o protagonismo identitário é colocado em xeque por táticas que produzem abjeção e anormalidade – constituindo seus próprios “foras” por onde vazam cada vez mais os sujeitos a que se pretendia acoplar em uma unidade. De igual modo, ao reivindicar, sob o discurso do reconhecimento social e político, a inclusão dos subalternizados e dissidentes nos mecanismos formais do poder e nas formas de controle explícitas, aceita sua administração por parte do Estado; a opressão, que antes adquiria os ares de um esquecimento institucional, torna-se assim legalmente autorizada e passa a ser exercida de maneira sistemática48.

Em vez disso, Haraway (2000 [1985]) oferece, como alternativa à coesão identitária, os grupos agregados em torno de uma consciência de oposição ou de opressão que não se inscrevem mais, portanto, em narrativas essenciais que põem em movimento e manutenção as invenções coloniais e modernas da raça, sexo, gênero, classe, etc. Uma vez que a dominação adquire uma qualidade informática, sua arquitetura de atuação excede uma unidade e espalha-se em redes, conexões,

os slogans “não se nasce mulher”, de Beauvoir e, mais tarde, “as lésbicas não são mulheres”, de Wittig; as declinações masculinas “não se nasce homem” e “os gays não são homens” levaram décadas para serem articuladas.

48 Para uma crítica (e uma alternativa) à ontologização das políticas de identidade sexuais e suas propostas assimilacionistas, ver também Preciado (2011 [2003]).

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circuitos. Se, como disse Foucault (2015 [1972]), não sabemos muito bem quem detém o poder, somente aqueles que não o possuem, a articulação não pode se dar mais pela fixação na identidade, mas pela falta, restrição e negação do (acesso ao) poder. A base de resistência não será mais, assim, ficcional (como a matriz identitária)49, mas decorrerá de processos de exclusão e normalização sociais,

políticos, sexuais, econômicos, corporais, tecnológicos, discursivos, estéticos, representacionais, etc, que poderão ser então explorados numa política de coalizão50.

No mundo-ciborgue, os organismos e as máquinas coincidem entre si através de fusões, dissoluções de fronteiras e contaminações sistemáticas. O sexo, o gênero e a raça são como os microchips, os hormônios sintéticos, os suplementos alimentares: tecnologias que corporificam, rendem materialidade e tornam-se indistinguíveis do “eu” e do que nele haveria de mais natural e biológico. O corpo, já atravessado pela engenharia genética, pelos sistemas de comunicação, pelas indústrias gastronômica e farmacêutica redescobre uma nova potência política no que sempre se disfarçou em si mesmo com o nome de natureza. A realidade-ciborgue, nesse contexto, é ficção que se cumpriu.

No presente capítulo, ao pensar o gênero a partir da admissão de uma performatividade socialmente construída fomos conduzidos à materialidade dos corpos que se entregam à performance; quando concebemos o sexo, de modo inverso, como o elemento material da sexualidade, encontramos, nesse que seria o último resquício da natureza, uma plasticidade que é manipulada sem cessar pelas tecnologias de produção dos corpos sexuais. Gênero e sexo foram então descritos como duas ficções – absolutamente vivas – que são incorporadas como matéria modulável, visual e discursiva pelos corpos-ciborgue contemporâneos. Em outras palavras, enquanto tecnologias que desempenham, nesse cenário, a função de

dispositivos. No próximo capítulo, será o momento de explicar o que se entende por

este termo.

49 De acordo com Agamben (2014 [2005]), a formação de sujeitos e identidades reais – pressupostos fundamentais da política – não encontra realização nas sociedades contemporâneas uma vez que os processos de subjetivação têm assumido, como veremos adiante, uma qualidade altamente

dessubjetivante, dificultando, com isso, a ocorrência de qualquer subjetivação real. Assim, de onde

poderia surgir uma nova subjetividade, deriva, sob o ponto de vista do italiano, uma forma larval e espectral de sujeito, que estabelece com a política uma relação de puro governo comprometida apenas com a reprodução de seu aparato governamental.

50 Haraway (2013 [1985]), contudo, vislumbra uma política baseada sobretudo na intersecção entre raça, classe e gênero.

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