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A SOMBRA ESQUIVA DOS LUSITANOS: EXERCÍCIOS DE ETNOGENEALOGIA

Num artigo depois parcialmente retomado em After Tylor, George Stocking (1992,1994) abordou o tema dos livros que na história da antropologia não foram escritos. Os exemplos que dá são dois: Tylor e a edição revista de Primitive Culture, obra inicialmente editada em 1971 e considerada um dos clássicos da antropologia evolucionista e Malinowski e a monografia sobre o parentesco tro- briandês. Em ambos os casos, apesar dos autores terem anunciado publicamente ser seu objectivo publicar essas obras, elas nunca chegaram a ser editadas. Em ambos os casos, também, Stocking mostra como esses não-acontecimentos per- mitem sublinhar aspectos importantes do desenvolvimento histórico da antropo- logia: a crise do paradigma evolucionista na viragem do século, no caso de Tylor, a marginalidade de Malinowski no novo curso que os estudos sobre família e parentesco ganharam na antropologia britânica a partir de Radcliffe-Brown. A conclusão implícita do artigo de Stocking é a de que se aprende tanto com o que realmente aconteceu como com aquilo que não chegou a acontecer, aprende- se tanto com a história dos êxitos como com a história dos insucessos.

Exemplos de tipo similar aos fornecidos por Stocking poderiam ser dados para a história da antropologia em Portugal. É o caso dos trabalhos de Consiglieri Pedroso sobre botânica e medicina popular que, embora formal- mente anunciados pelo autor (Pedroso 1988b: 114 e 256 [1879/80: 331; 1882: 219]), nunca chegaram a ver a luz do dia. É também o caso da Etnografia Portuguesa de Leite de Vasconcelos (1933, 1936, 1942), obra prematuramente interrompida pela morte do autor ao fim do terceiro de um conjunto previsí- vel de dez a doze volumes. E ainda o caso da anunciada e nunca concretizada monografia de Jorge Dias sobre Castro Laboreiro, que deveria completar o

ciclo de monografias sobre comunidades de montanha do norte de Portugal de que fazem parte Vilarinho da Furna (Dias 1948a) e Rio de Onor (Dias 1953a) Em qualquer dos casos, o que nunca chegou a acontecer dá-nos indi- cações úteis sobre algumas linhas de força, constrangimentos ou característi- cas principais de um determinado campo disciplinar.

E na mesma linha que podemos encarar o «dossier» a que este capítulo é consagrado - o «dossier» dos lusitanos. Não tanto que sobre ele não tenham sido escritos ensaios ou livros. Como veremos, até foram escritos vários. O fas- cínio pelas teses lusitanistas na antropologia portuguesa é de facto indesmen- tível. Mas o que avulta nesse «dossier» é o modo como esse fascínio acaba por ser contrariado por promessas não cumpridas, por projectos de livros ina- cabados e/ou abandonados, por silêncios, dificuldades e viragens que gradual- mente o vão transformando num enredo titubeante e incompleto, talvez mesmo falhado.

Isto é: à semelhança dos livros não escritos por Tylor ou Malinowski refe- ridos por Stocking, o «dossier» lusitano configura-se também como uma his- tória de insucesso.

EXUMAÇÃO E TRIUNFO DOS LUSITANOS

Entretanto, à partida - como em muitas outras histórias de insucesso - pareciam estar reunidas as condições para que as coisas se tivessem passado doutro modo.

De facto, afirmando-se como uma «antropologia de construção da nação», a antropologia portuguesa ao longo do período que medeia entre 1870 e 1970 configura-se - como vimos no capítulo anterior - como uma antropologia for- temente comprometida com a construção de um discurso de características etnogenealógicas (Smith 1991) sobre Portugal. Como em muitos outros paí- ses europeus, a antropologia portuguesa deu-se de facto como objectivo recor- rente a fundamentação da nação como uma «comunidade étnica de descen- dência», baseada em antecedentes étnicos providos dos argumentos da antiguidade e da originalidade, isto é, apoiada numa «etnogenia» peculiar e remota, de que a cultura popular seria exactamente o testemunho. Descontemporaneizada (Fabian 1983) pelo olhar do etnólogo, a cultura popu- lar era vista como um dos terrenos por excelência a partir dos quais era pos- sível enraizar a existência da nação na longa duração da tradição e da etnici- dade. A importância sucessiva que tiveram na antropologia portuguesa paradigmas historicistas de interpretação da cultura popular - desde correntes difusionistas pré-evolucionistas como o difusionismo de Benfey ou o turania- nismo, até à mitologia comparada e ao difusionismo propriamente dito - deve ser interpretada justamente a esta luz. Em qualquer dos casos, o que está em causa é o potencial analítico que essas correntes ofereciam para os exercícios etnogenealógicos inscritos no projecto nacionalista da antropologia portu-

guesa. Viajando espacialmente no país e nas suas tradições, o etnólogo pro- cedia a uma autêntica e gratificante viagem no tempo étnico da nação.

Nesse seu comprometimento com um projecto de tipo etnogenealógico, a antropologia portuguesa - em segundo lugar - não depende exclusivamente de si, mas está, pelo contrário, estreitamente vinculada às teses e conclusões obtidas no âmbito de outros campos disciplinares, como a história ou a arqueo- logia. Os seus vínculos com a arqueologia são, em especial, particularmente fortes1. O pano de fundo que possibilita o diálogo entre os dois campos dis- ciplinares é fornecido pela sua comum preocupação com os antecedentes étni- cos precisos de uma população nacional determinada2. No quadro deste objec- tivo comum, estabelece-se entretanto uma divisão de trabalho entre ambas as disciplinas que tem a ver, em primeiro lugar, com as fontes utilizadas. Enquanto que a arqueologia estuda os antecedentes étnicos da nação a partir dos vestígios materiais da pré-história - eventualmente combinados com a interpretação dos testemunhos da literatura antiga sobre os povos «primitivos» da Europa -, a etnografia fá-lo pelo seu lado a partir dos hábitos e costumes dos camponeses encarados como sobre vivências conjecturais desse fundo étnico ancestral. Essa divisão de trabalho estende-se depois aos objectivos que cada disciplina prossegue. A arqueologia tem de certa maneira a seu cargo o estabelecimento de uma espécie de lista dos antepassados étnicos da nação. A antropologia, pelo seu lado, deve proceder, a partir dessa listagem, à demons- tração, com base na cultura popular, das relações de continuidade entre esses antepassados e a nação na sua dimensão actual.

E justamente neste quadro que a história do «dossier» lusitano parece reu- nir, desde muito cedo, condições para se tornar numa história de sucesso. De facto, a partir de final dos anos 1870, os lusitanos transformam-se gradual- mente num dos horizontes a partir do qual podia ser pensada a etnogenealo- gia de Portugal3. Martins Sarmento - uma das figuras centrais da arqueologia oitocentista em Portugal - desempenha a esse respeito um papel central. Com recurso à leitura de fontes antigas sobre a Península Ibérica e com base na interpretação de um certo número de achados arqueológicos - com destaque para os castros e para as antas e dólmenes do norte e centro de Portugal - Martins Sarmento procede de facto a um trabalho de verdadeira exumação dos lusitanos como antepassados étnicos de Portugal.

Essa exumação dos lusitanos fez-se inicialmente - entre 1876 e 1879 (Sarmento 1933a, 1933b, 1933c) - à luz de teses de contornos celticizantes, então relativamente em voga na Europa4. A partir de 1880, os lusitanos pas-

1 Cf. Leal 1996 para um tratamento mais genérico do problema.

2 Acerca da articulação entre arqueologia e nacionalismo, cf. Diaz-Andreu & Champion

1996.

3 Para uma síntese da importância das teses lusitanistas na arqueologia portuguesa, cf. Fabião

1996. Ainda na mesma linha, mas explorando a figura de Viriato, cf. Guerra & Fabião 1992.

sam entretanto a ser vistos - como provável resultado do impacto das teses indo-europeístas da mitologia comparada - como os representantes de uma primeira vaga de migrações de povos indo-europeus para o ocidente, entre os quais se encontrariam os ligures, de que os lusitanos seriam de alguma forma os representantes mais ocidentais (Sarmento 1933d, 1933e, 1933f). Em qual- quer dos casos - celtas ou pré-celtas indo-europeus - os lusitanos seriam os antepassados por excelência de Portugal.

Propostas inicialmente por Martins Sarmento, as teses lusitanistas tende- rão a ganhar, à medida que nos aproximamos dos anos 1890, um certo con- senso, que se manterá até relativamente tarde. Por detrás desse consenso encontra-se antes do mais a natureza particularmente eficaz da narrativa etno- genealógica para Portugal que podia ser construída a partir delas. Por seu inter- médio ganhava corpo - em primeiro lugar - uma etnogenealogia provida dos argumentos da originalidade e da antiguidade. De facto, por um lado, embora inseridos em correntes migratórias mais vastas, os lusitanos testemunhavam de qualquer maneira de uma tendência precoce para a individualização. Por outro lado, a sua origem remontava àqueles que eram - nas teses celticistas e indo-europeístas - os tempos mais remotos de uma pré-história europeia etni- camente identificável. Em segundo lugar, a etnogenealogia para a nação cons- truída em torno dos lusitanos, baseando-se na identificação clara de uma só população como responsável principal pela formação étnica de Portugal, per- mitia uma nacionalização retrospectiva dos antecedentes étnicos muito mais eficaz e apoiada no modelo que, no mesmo período, triunfava noutros países europeus. Tal como os alemães descenderiam dos germanos (Bausinger 1993), os franceses dos gauleses (Pomian 1992) e os gregos modernos dos antigos helénicos (Herzfeld 1986), os portugueses descenderiam dos lusitanos

Recebendo a sua força destes argumentos implícitos, o consenso que se estabelece em Portugal em torno das teses lusitanistas a partir de 1890 é par- ticularmente evidente, em primeiro lugar, na arqueologia, onde duas figuras centrais desempenharão a esse respeito - como teremos ocasião de ver - um papel de grande importância: Leite de Vasconcelos e Mendes Correia. Em segundo lugar, esse consenso parece também ganhar a história, onde as teses voluntaristas de Alexandre Herculano parecem adequar-se mal, à medida que nos encaminhamos para a viragem do século, ao clima de nacionalismo cul- tural reinante (Ramos 1994). E instala-se, em terceiro lugar, de uma forma mais geral na vida cultural portuguesa. Assim o testemunham, por exemplo, as inúmeras revistas culturais portuguesas que contêm no seu nome uma refe- rência aos lusitanos: desde a Revista Lusitana de Leite de Vasconcelos - à qual de resto regressaremos no decurso deste capítulo - à Lusa de Cláudio Basto, passando pela Lusitânia de Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925)1.

1 Utilizando o inventário de revistas culturais e litarárias portuguesas realizado por Daniel

Pires (1996), é possível indicar um total de 25 publicações que, entre 1900 e 1940, possuíam no seu título uma referência aos lusitanos ou à Lusitânia.

E também a essa luz que podemos olhar para as teses de Joaquim de Vasconcelos acerca das raízes pré-históricas tanto da arte popular portuguesa como do estilo românico (Vasconcelos 1908, 1909). É ainda nesse contexto - como teremos também ocasião de verificar no capítulo 4 - que nasce tam- bém, com um obscuro tenente coronel que tinha tomado a seu cargo a recons- tituição da «cava de Viriato» em Viseu, o debate em torno da casa portuguesa. Na sua aparente disparidade, estes exemplos confirmam a importância das teses lusitanistas em vários horizontes da vida cultural portuguesa.

RESISTÊNCIAS INICIAIS

Marcadas pelo crescendo de influência que acabámos de pôr em evidên- cia, as teses lusitanistas esboçam desde a sua formulação inicial por Martins Sarmento um horizonte de trabalho possível para a antropologia portuguesa e para as suas tentativas de interpretação etnogenealógica da cultura popular por- tuguesa.

Martins Sarmento tinha sido, de resto, o primeiro a sugeri-lo. Segundo o autor, de facto, a cultura popular seria um dos melhores testemunhos dessa con- tinuidade fundamental entre os lusitanos e Portugal. Utilizando como método principal para a localização dos «monumentos» arqueológicos dos lusitanos, as tradições populares relativas a mouros e mouras, Martins Sarmento encarava estas como uma espécie de memória popular - obliterada pela cristianização - dos antecedentes lusitanos de Portugal. A sugestão de que o culto lusitano das fontes se reflectiria num certo número de tradições populares relativas à água, e, sobretudo, a ideia de acordo com a qual não existiria solução de continui- dade entre os cultos religiosos dos lusitanos e uma parte importante do panteão católico popular português - que não seria senão o resultado da cristianização de cultos pagãos - faziam parte desse mesmo padrão interpretativo, que tendia a ver os lusitanos como uma força ainda actuante na paisagem cultural do país. Entretanto, apesar destas suas sugestões, as teses de Martins Sarmento terão inicialmente um eco limitado no interior da antropologia portuguesa. De facto, esta, nos anos 70/80 do século XIX, preferirá outras opções para os seus exercícios etnogenealógicos.

Entre essas opções avulta desde logo a mitologia comparada, cuja influên- cia - como ficou sugerido no capítulo anterior - é particularmente nítida em Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho e Leite de Vasconcelos, reencontrando- -se também, embora de forma mais diluída, nalguns textos de Teófilo Braga. Por intermédio da mitologia comparada, vemos afirmar-se, na antropologia portuguesa dos anos 1870 e 1880, uma leitura etnogenealógica da cultura popular portuguesa que sublinha as suas raízes genericamente indo-europeias. Essa leitura assenta em dois dispositivos principais. Por um lado, na afirma- ção, por via comparativa, dos vínculos indo-europeus de tal ou tal aspecto da cultura popular portuguesa. Por outro lado, na reivindicação da originalidade

e da superioridade relativa da tradição portuguesa por referência à tradição indo-europeia1. Embora esta afirmação do quadro indo-europeu como quadro principal de referência não fosse em princípio incompatível com uma refe- rência mais particularizada aos lusitanos, esse passo não é entretanto dado.

Simultaneamente à mitologia comparada, uma outra linha presente na antropologia portuguesa dos anos 1870 e 1880 é o eclectismo etnogenealó- gico. Esta segunda linha de trabalho é, como vimos, particularmente bem representada por Teófilo Braga. Embora a sua obra comece por se situar sob o signo das teses celticistas (1867a, 1867b) e moçárabes (1871), a partir de 1883 ela estabiliza-se em torno de um modelo tripartido de análise da etno- genia da cultura popular portuguesa, em que é posta em evidência o contri- buto de três camadas étnicas sucessivas na formação de Portugal tal como esta poderia ser lida a partir da cultura popular. Os ocupantes dessas camadas são entretanto variáveis. Assim, no prefácio aos Contos Tradicionais Portugueses (1987 [1883]), são identificados os turanianos, os indo-europeus e a civiliza- ção cristã e ocidental. Em O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições (1985 [1885]), Braga começa por referir de novo a importância de um primeiro fundo pré-árico, de características turanianas. Seria a esse fundo que se teriam sobreposto as migrações celtas - primeiro, com os ligures e depois com os celtas propriamente ditos - dando origem aos celtiberos. Uma terceira influência decisiva na formação etnogenealógica de Portugal seria por fim constituída pelos moçárabes, resultantes da fusão dos germanos com os árabes2.

Em qualquer dos casos - apesar do seu eclectismo etnogenealógico e da sua versatilidade - Braga mostra-se indiferente às teses lusitanistas. Estas ape- nas surgirão muito mais tarde na sua obra, na introdução à 3.a edição da História da Poesia Popular Portuguesa (1902). Revendo as suas posições anteriores em torno do tema, Teófilo defende agora a importância de um fundo ligúrico, pré-celta, na poesia popular portuguesa, que ele designa como sendo um fundo «lusista».

Apesar pois das sugestões etnológicas de Martins Sarmento, a antropolo- gia portuguesa permanece inicialmente alheada das potencialidades etnográ- ficas das teses lusitanistas.

As razões exactas para isso não são entretanto fáceis de precisar. Podem eventualmente prender-se com questões de «timing»: as teses de Sarmento

1 Um bom exemplo deste segundo dispositivo pode encontrar-se na reflexão de

Consiglieri Pedroso sobre as mouras encantadas (1988b: 217-227). Pedroso começa por com- parar as mouras encantadas com figuras similares presentes noutras tradições indo-europeias; as nixen germânicas, as rusalki eslavas, as lac-ladies inglesas, as naida gregas, etc. Desta comparação Pedroso retém fundamentalmente a singularidade das mouras encantadas portu- guesas, que ele descreve como «uma das mais poéticas criações do maravilhoso popular por- tuguês» (id.: 218).

2 Estas teses foram no essencial retomadas - embora de forma retocada - em A Pátria

Portuguesa. O Território e a Raça (Braga 1894).

estavam então ainda muito frescas. O facto de elas surgirem defendidas por alguém que, a partir da província, se situava a contra-corrente da historiogra- fia então dominante em Portugal - onde ainda ecoava o cepticismo de Herculano - deve ter tido também algum peso. Mas, mais provavelmente, a indiferença da antropologia dos anos 1870 e 1880 relativamente às teses lusi- tanistas de Martins Sarmento pode ser entendida como o resultado de dife- rentes estratégias de gestão do impulso nacionalista subjacente às suas preo- cupações etnogenealógicas.

Assim, do ponto de vista dos defensores de uma aproximação baseada na mitologia comparada, as teses de Sarmento, embora inseridas - depois de 1880 - na corrente indo-europeísta, corriam o risco de proceder a uma nacionalização excessivamente prematura desses indo-europeus «portu- gueses» que seriam os lusitanos, enfraquecendo as possibilidades de inser- ção plena da literatura e das tradições populares portuguesas no patrimó- nio comum indo-europeu. Nesta situação, os etnólogos portugueses influen- ciados pela mitologia comparada parecem ter optado por uma narrativa mais genérica, susceptível de capitalizar de forma mais efectiva o prestí- gio que então rodeava - como mostrou Olender (1989) - as teses indo- -europeias.

Quanto a Teófilo Braga, a sua opção - sobretudo a partir de 1880 - parece ser outra. Nela exprime-se antes do mais, a preocupação com a cons- trução de um «mito de origem» susceptível de conferir ainda maior pro- fundidade temporal à nação portuguesa. É nessa perspectiva que podemos encarar o peso que nas suas concepções ocupa um fundo étnico pré indo- -europeu. A valorização deste permitia fazer recuar ainda mais no tempo a etnogénese da nação portuguesa. Simultaneamente, Braga evidencia tam- bém um continuado fascínio pelas teses celticistas, que se revelam entre- tanto difíceis de compatibilizar com as teses lusitanistas na formulação que, a partir de 1880, Martins Sarmento lhes tinha dado, ao defender que os lusi- tanos resultariam de uma migração de povos indo-europeus pré-celtas. Finalmente, nas teses etnogenealógicas de Teófilo Braga há também uma maior abertura às conclusões obtidas no interior de outros campos do saber, com destaque para a história. É justamente desse ponto de vista que pode ser encarado o peso que, persistentemente, Braga dá aos moçárabes na etno- génese portuguesa.

LEITE DE VASCONCELOS E OS LUSITANOS: DA CONTINUIDADE À JUSTAPOSIÇÃO

Dada esta conjuntura inicial de indiferença relativamente às teses lusita- nistas, será pois preciso esperar algum tempo para que a situação comece a mudar e para que os primeiros sinais de atracção pelas posições inicialmente defendidas por Martins Sarmento se comecem a manifestar.

Esses primeiros sinais provêm de um etnólogo que se encontra então na fase inicial de uma carreira que o conduzirá a médio prazo a uma posição de grande destaque não apenas na antropologia portuguesa, mas de uma forma mais geral, na ciência e na cultura portuguesas do seu tempo: Leite de Vasconcelos1.

A aproximação de Vasconcelos às teses lusitanistas parece ter sido facili- tada por dois factores principais. Por um lado, pela sua proximidade com a arqueologia, que tinha estado já na origem da publicação de umas «Notas Pré- -Históricas» em 1880 (Vasconcelos 1880-81). Por outro lado, pelas suas rela- ções de amizade com Martins Sarmento. A correspondência entre ambos é assídua e nela, assuntos etnográficos articulam-se com temas arqueológicos e vice-versa (Vasconcelos 1958)2.

Ora bem, essa dupla proximidade relativamente à arqueologia e a Martins Sarmento irá determinar, por volta de 1885, uma mutação maior na sua car- reira. Tendo até aí investigado e publicado basicamente na área da etnografia, Vasconcelos irá a partir de então concentrar o essencial das suas atenções na arqueologia.

O primeiro sinal dessa reorientação é dado por Portugal Pré-Histórico (Vasconcelos 1885). E é confirmada em 1887, com a sua nomeação para direc- tor da Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), onde Leite de Vasconcelos asse- gurará, entre outras tarefas, a leccionação de uma cadeira de numismática - uma área que, nomeadamente no tocante à chamada «numismática antiga», pos-

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