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OS ARQUITECTOS E A MODERNIDADE DO POPULAR:

O INQUÉRITO A ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL1

Apesar de um êxito relativo à esquerda, as conclusões do Inquérito à Habitação Rural foram porém insuficientes para contrariar, no imediato, a hegemonia da casa portuguesa, consagrada oficialmente quer como horizonte de leitura da arquitectura popular, quer como proposta estilística dominante na arquitectura portuguesa.

De facto, como foi sugerido no capítulo sobre «A Casa Portuguesa» - os anos em que o Inquérito à Habitação Rural é levado a cabo correspondem, por um lado, aos anos de afirmação de uma «política de espírito» do regime - coordenada por António Ferro e assente na acção do SPN/ SNI - em que se assiste à multiplicação de iniciativas - como o concurso da Aldeia Mais Por- tuguesa de Portugal e o Centro Regional da Exposição do Mundo Português - que exploram a casa como símbolo da nacionalidade.

Por outro lado, a passagem dos anos 1930 para os anos 1940 coincide tam- bém - como vimos anteriormente - com uma mudança importante na cena arquitectónica portuguesa. Se, até então, o Estado Novo havia «flirtado» - nomeadamente por intermédio do ministro Duarte Pacheco - com a arquitec-

1 Repito aquilo que escrevi na Apresentação. O Inquérito organizado pelo Sindicato

Nacional dos Arquitectos de que resultou o livro Arquitectura Popular em Portugal tinha o título inicial de Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa, adoptado certamente por razões de natureza táctica, uma vez que era essa a designação que o regime reservava ao universo daquilo que, entretanto, os arquitectos do SNA irão rebaptizar - ao escolherem o título para o livro - de Arquitectura Popular em Portugal. Por essa razão, optei, no decurso deste livro, pela designação Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal.

tura modernista, a partir daí define-se claramente o propósito de uma arqui- tectura de regime, cristalizada em torno de modelos que reservam à casa por- tuguesa um importante papel.

Tendo tido até aí uma relação ambígua com o regime, Raúl Lino - que, desde 1933, tinha tornado clara a sua discordância relativamente ao movi- mento moderno - transforma-se então numa das referências centrais da arqui- tectura oficial, com uma importante acção de «policiamento do gosto», diri- gida em particular contra a arquitectura moderna e os seus valores.

Esses valores - nascidos no final do século xix e sedimentados ao longo das primeiras décadas do século XX - colocavam uma ênfase particular no culto do progresso - epitomizado pela máquina e pela mecanização - e na vontade de ruptura com o passado1. Vista como a arquitectura de um tempo resolutamente novo, a arquitectura moderna não só procura romper com as linguagens historicistas dominantes ao longo do século XIX como se baseia na construção simultânea de uma nova linguagem capaz de

descobrir formas adequadas às necessidades e aspirações das modernas sociedades industriais e de (...) criar imagens capazes de dar corpo aos ideais de uma idade

moderna supostamente distinta» (Curtis 1995a: 8).

Este compromisso com a procura de uma nova linguagem arquitectónica adaptada à modernidade dos tempos baseia-se num certo número de cânones, entre os quais avulta o primado da função sobre a forma: «a arquitectura moderna (...) deveria ser disciplinada pelas exigências da função» (id., ibid.). Contra a concepção «beaux arts», decorativista e ornamental da arquitectura, a nova estética contrapõe o gosto por formas que são supostas brotar do programa mesmo dos diferentes edifícios. Em conjunto com a exploração das potencia- lidades de novos materiais, como o cimento e o vidro - de que cultiva fre- quentemente a «verdade» - e com o recurso às novas técnicas construtivas a eles associadas, o discurso formal da arquitectura moderna tenderá, simulta- neamente, a valorizar a experimentação com formas - pilares, «fenêtre en lon- gueur», cobertura em terraço, volumes cúbicos puros - baseadas na linearidade e na simplicidade. Valores como a serialidade e a horizontalidade são também centrais no novo movimento que pratica uma arquitectura marcada por um des- prezo inicial pronunciado pelo contexto urbano pré-existente, visto como caduco, e pelas tradições construtivas locais, encaradas como pertencentes à «tradição» a que o modernismo quer justamente escapar. Da hipermnésia revi- valista típica do século xix2, passa-se à amnésia modernista, toda orientada para a criação de formas de ruptura. Advogando um conjunto de novos princípios

1 A apresentação a que em seguida se procede visa reconstituir, de uma forma muito gené-

rica e necessariamente lacunar, alguns dos grandes princípios do movimento moderno na sua fase ascendente e afirmativa. Para mais detalhes veja-se Curtis 1995a e Frampton 1996.

urbanísticos cuja formulação emblemática será feita na Carta de Atenas, o novo estilo defende também uma aproximação radicalmente renovada à organização interna do espaço, designadamente habitacional, onde conceitos como os de «living room» e «open space», entre outros, fazem a sua aparição.

A acção de policiamento contra os princípios do movimento moderno não deixa entretanto de suscitar resistências. Em Lisboa, essa resistência surge asso- ciada ao grupo Iniciativas Culturais Arte e Técnica (ICAP), formado em 1946 e ligado à renovação da revista Arquitectura, que tem em Keil do Amaral (1910- -1975), arquitecto oposicionista interessado no desenvolvimento de vias de diá- logo entre arquitectura erudita e popular alternativas à casa portuguesa1, a sua figura central. No Porto, também, é criada em 1947 a Organização dos Arquitectos Modernos (ODAM). Entre outras acções de promoção do ideário da arquitectura moderna, esta promoverá, em 1949, um abaixo assinado contra as tentativas de imposição de «um estilo nacional, e mesmo portuense» (Barbosa 1972: 119) pelo presidente da Câmara Municipal do Porto, e realizará, em 1951, no Ateneu Comercial do Porto, uma exposição de arquitectura moderna, onde são mostrados, entre outros, projectos de Arménio Losa (1908-1993), Cassiano Barbosa, Fernando Távora, João Andresen (1920-1967), Mário Bonito (1908- -1993) e Viana de Lima (1913-1991). No mesmo ano da criação da ODAM, Fernando Távora reedita também - na colecção «Cadernos de Arquitectura» coordenada por Manuel João Leal - O Problema da Casa Portuguesa (1947) que havia sido editado originalmente em 1945 na revista Aléo.

Mas é sobretudo em 1948, no quadro do I Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo Sindicato Nacional de Arquitectos (SNA), que esta acção de resistência contra a arquitectura do regime e em defesa dos prin- cípios da arquitectura moderna ganha maior expressão. Embora a direcção do sindicato fosse dominada por arquitectos com uma ligação mais ou menos clara ao regime, o Congresso é entretanto tomado de dentro pelos arquitectos modernos que farão dele uma tribuna em defesa das suas ideias, contra as impo- sições estilísticas do regime. Não só a maioria esmagadora das intervenções individuais - onde se multiplicam as referências a Le Corbusier, à Carta de Atenas e aos grandes princípios da arquitectura moderna - vai nesse sentido, como os próprios relatos das diferentes sessões de trabalho e as conclusões do Congresso dão também particular destaque à condenação do gosto oficial.

Na l.a sessão de trabalhos, subordinada ao tópico «A Arquitectura no Plano Nacional», por exemplo, um dos assuntos abordados teve justamente a ver com os

problemas relacionados com a feição tradicional da arquitectura portuguesa contem- porânea, e as imposições que, nesse e noutros sentidos, vêm sendo feitas aos arqui- tectos, até mesmo por alguns departamentos públicos (7..° Congresso... s/d : XXXVI).

1 Acerca de Keil do Amaral, cf. os vários estudos publicados em Keil Amaral Arquitecto

1910-1975 (1992) e em Keil do Amaral. O Arquitecto e o Humanista (1999).

A esse propósito,

salientou-se (...) a quase unanimidade com que os arquitectos portugueses consideram nocivas quaisquer imposições de estilo ou feições tradicionais aos seus trabalhos. Frizou-se também a necessidade de uma revisão dos conceitos de tradição e regiona- lismo, tão mal compreendidos entre nós (id.: XXXVI-XXXVII).

Também na 3.a e 4.a sessões de trabalhos, consagradas ao «Problema Português da Habitação»,

foi mais uma vez condenado certo regionalismo formal manifestando-se preferência pelas modernas técnicas de modo a não ser falseada a função dos diferentes mate- riais. Condenada, foi ainda a cópia ou imitação das formas arquitectónicas do pas- sado, que privam a arquitectura de hoje da sua dignidade e da sua expressão adequada à época actual e aos novos materiais empregados (id.: XLIII).

Nas conclusões do Congresso, por seu turno, a questão da «feição portu- guesa dos novos edifícios», merece também um conjunto importante de refe- rências, como aquelas em que se procede ao elogio de «edifícios novos, com processos e materiais novos» (id.: LXII), se condena «a imitação de elemen- tos do passado» (id.: LXIII) ou se exara o voto - numa referência óbvia ao Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal - de

que se não consagrem mais aldeias atrasadas e menos higiénicas, permitindo assim que se confunda estagnação e primitivismo com tradição e que se vulgarize o con- ceito errado de que a feição portuguesa dos edifícios se reduz a uma questão de pito- resco (id. ibid.).

Na sequência do Congresso, os arquitectos modernos - tendo à sua frente Keil do Amaral, posteriormente afastado por imposição do governo - tomam conta do Sindicato e intensifica-se a acção de questionamento da arquitectura do regime. Os abaixo-assinados e outras formas de denúncia de projectos e regulamentos de concursos em que era nítida a preferência pelo estilo oficial multiplicam-se. Em 1953 surge o Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), ligado a nomes como Nuno Teotónio Pereira, António de Freitas Leal e João de Almeida, que dá expressão ao descontentamento, entre os meios católicos críticos do regime, do alinhamento da igreja com as opções do «gosto oficial» em matéria de arquitectura. Em simultâneo com esta agitação, cres- cem também os projectos filiados no gosto moderno, primeiro de uma forma mais modesta e insegura, mas depois, a partir dos anos 1950, de um modo crescentemente firme e expressivo (cf. França 1991 [1974]: 449-451 e sobre- tudo Tostões 1997). As tentativas de diálogo entre arquitectura erudita e popu- lar alternativas à casa portuguesa conhecem também novos desenvolvimen- tos, sobretudo no Porto, onde Januário Godinho (1910-1990) desenha no decurso dos anos 1950 um importante conjunto de pousadas onde moderno e vernáculo são vistos como valores complementares (Tostões 1995: 540).

O INQUÉRITO A ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL

É neste quadro que surge justamente o Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, cujo contributo para o declínio da casa portuguesa será deter- minante (cf. França 1991 [1974]: 444). A necessidade da realização de um Inquérito desse tipo tinha já sido ventilada por Fernando Távora, em 1945, e por Keil do Amaral, em 1947. Fernando Távora, em O Problema da Casa Portuguesa pronunciava-se a favor de

um trabalho sério, conciso, bem orientado e realista, cujos estudos poderiam talvez agrupar-se em três ordens: a) a do meio português; b) da Arquitectura portuguesa existente; c) da Arquitectura e das possibilidades da construção moderna no mundo (1947: 10).

Constatando que o «o estudo da Arquitectura portuguesa, ou da constru- ção em Portugal não está feito» (id.: 10-11), Távora sugere a urgência de um conhecimento mais detalhado «das nossas casas antigas e populares» (id.: 11). Keil do Amaral, na sequência do seu interesse por uma aproximação à arqui- tectura popular alternativa à da casa portuguesa, abordará também o tema no artigo «Uma Iniciativa Necessária», publicado na renovada revista Arquitec- tura. Dirigindo-se à classe dos arquitectos na segunda pessoa do singular, Keil desafia-a para um trabalho de

recolha e classificação de elementos peculiares à arquitectura portuguesa nas diferen- tes regiões do País, com vista à publicação de um livro, larga e criteriosamente docu- mentado (1999 [1947]: 125)

acerca do tema. A sua crença nas possibilidades de efectivação do estudo é grande: «com trinta contos, mais escudo, menos escudo, fazia-se a coisa. Técnicos existem. (...) Tempo arranjava-se, pela certa... Só falta o dinheiro» (id., ibid.).

Entretanto, apesar destes apelos iniciais, é só a partir de 1955 - dez anos depois da primeira versão do artigo de Távora - que a concretização do Inquérito terá lugar. O seu grande impulsionador é justamente Keil do Amaral, que assegurou também a sua coordenação. Depois de uma primeira tentativa frustrada de financiamento junto do Instituto para a Alta Cultura realizada em 1949, o Inquérito consegue o apoio financeiro do governo em 1955. Em decreto datado de 19 de Outubro desse ano, o Ministério das Obras Públicas - então presidido por Arantes e Oliveira - é autorizado a conceder ao Sindicato Nacional de Arquitectos

um subsídio até ao montante de 500.000$00 (...) destinado a cobrir os encargos com a investigação sistemática dos elementos arquitectónicos tradicionais das diversas regiões do país» (Decreto-lei n.° 40.349 de 19 de Outubro de 1955).

Uma vez obtido este financiamento, o Inquérito é de imediato posto em andamento. O país é dividido em seis «zonas»: a zona 1 cobrindo o Minho, o Douro Litoral e a Beira Litoral; a zona 2 Trás-os-Montes e o Alto Douro; a zona 3 as Beiras; a zona 4 a Estremadura, o Ribatejo e a Beira Litoral; a zona 5 o Alentejo; e, finalmente, a zona 6 o Algarve e o Alentejo litoral. Cada uma destas zonas deveria ser coberta por uma equipa constituída por um arquitecto mais experiente - designado como o chefe de equipa - e por dois outros arquitectos mais jovens, geralmente tirocinantes. Depois de vários con- tactos e reuniões preparatórias, a composição das equipas acabou por ser a seguinte: na zona 1, Fernando Távora, Rui Pimentel e António Meneres; na zona 2, Lixa Filgueiras (1922-1998), Arnaldo Araújo (1925-1984) e Carvalho Dias; na zona 3, Keil do Amaral, Huertas Lobo (1914-1987) e João Malato; na zona 4, Nuno Teotónio Pereira, Pinto de Freitas e Silva Dias; na zona 5, Frederico George (1915-1994), Azevedo Gomes e Mata Antunes; e, final- mente, na zona 6, Pires Martins, Celestino de Castro e Fernando Torres. Enquanto que as equipas das zonas 3, 4, 5 e 6 se baseavam em Lisboa, as zonas 1 e 2 foram cobertas por arquitectos do Porto. Na distribuição dos che- fes de equipa pelas diferentes zonas o critério seguido - segundo Teotónio Pereira (1996a) - parece ter sido o de respeitar ligações prévias dos diferen- tes arquitectos a cada uma das áreas.

A partida das equipas para o terreno foi antecedida de algumas reuniões, no quadro das quais se recolheu a opinião de especialistas de outras áreas dis- ciplinares - como Orlando Ribeiro (Teotónio Pereira 1996a) - e se tentou afi- nar a metodologia de trabalho comum que havia sido definido na proposta ini- cial apresentada ao MOP. Nessa metodologia isolavam-se alguns dos pontos sobre os quais deveria ser recolhida informação pelas diferentes equipas: «materiais e processo correntes de construção», «estrutura urbana», «influên- cia do clima» e «influência das condições económicas» e «sociais» sobre a arquitectura e a formação dos aglomerados, a identificação de «costumes, hábi- tos e outros factores condicionantes» da habitação, etc... Tratava-se não tanto de identificar de forma rígida a informação a ser recolhida, mas de indicar a importância de alguns tópicos, em particular dos relacionados com uma apro- ximação contextualizada da arquitectura popular por referência às condições geográficas, económicas, sociais e «etnológicas».

A importância desta liberdade de critérios - que, do ponto de vista metodo- lógico, diferencia claramente o Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal do Inquérito à Habitação Rural ou das pesquisas de Veiga de Oliveira e dos seus colaboradores - é sublinhada por alguns dos participantes no Inquérito. Nuno Teotónio Pereira retém justamente o modo como a definição de critérios foi

feita de uma forma solta. O Keil não era uma pessoa autoritária, de modo nenhum, era muito aberto e deixava as pessoas funcionarem com toda a liberdade, não impondo nada. Portanto, as pessoas partiram para o Inquérito de acordo com os seus próprios interesses (Teotónio Pereira 1996a).

Távora acentua também, em termos muito idênticos, a agilidade do Inquérito: «deixar às equipas uma certa liberdade era importante e tinha muito a ver com o espírito do Keil» (Távora 1996).

Uma vez no terreno, a pesquisa encontrava-se estruturada de forma tam- bém simples. O chefe de equipa assegurava a coordenação geral do trabalho na zona e a ligação entre o grupo e o Sindicato Nacional dos Arquitectos. Embora os chefes de equipa se pudessem integrar nos trabalhos de campo, estes competiam basicamente aos dois arquitectos mais jovens, a quem, para o efeito, foram atribuídas scooters, com as quais percorreram os itinerários previamente planificados com o chefe de equipa. Fernando Távora descreveu- -me do seguinte modo a experiência de trabalho da equipa da zona 1:

Quem conduzia a pesquisa no terreno eram o Meneres e o Pimentel, cada um na sua

Vespa. Eu fazia o transporte à minha custa e não recebia nada... Eles é que recebiam.

Eu tinha o dinheiro, administrava. Combinávamos percursos, eles faziam os percur- sos e eu ia ter com eles ao fim-de-semana. Normalmente iam os dois juntos, mas por vezes dividiam-se (Távora 1996).

Nuno Teotónio Pereira teve uma experiência muito idêntica:

os dois jovens arquitectos transportavam-se em motoretas e estavam em full time. Estavam toda a semana a trabalhar e eu ia ter com eles ao fim-de-semana. Fazia os fins-de-semana com eles e nesses fins-de-semana programávamos o trabalho para a semana seguinte. Fazíamos um balanço do trabalho feito, desenvolvíamos algumas recolhas durante o próprio fim-de-semana e programávamos o trabalho para a semana seguinte (Teotónio Pereira 1996a).

Embora se previsse que os trabalhos de campo pudessem ter a duração de três meses, eles parecem ter-se prolongado nalguns casos por quatro e mesmo cinco meses. Ao longo desse período de tempo, as equipas do Inquérito

percorreram (...) cerca de 50.000 quilómetros, de automóvel, de scooter, a cavalo e a pé. Detiveram-se em centenas e centenas de povoados, nos quais fizeram cerca de 10.000 fotografias, centenas de desenhos e de levantamentos, e tomaram milhares de notas escritas (Arquitectura Popular... 1980: XXIII).

Ao trabalho de campo seguiu-se um período de cerca de um ano consa- grado à «ordenação, classificação e análise sistemática» dos materiais reco- lhidos. Foi «organizado um ficheiro fotográfico, desenhados rigorosamente os levantamentos e definidos em mapas e gráficos as relações, as analogias, a distribuição tipológica» (id., ibid.). Tal como durante a fase de recolha, as uni- dades pertinentes para este trabalho foram as diferentes equipas, sendo tam- bém muito escassas as formas de coordenação geral.

Grande parte deste trabalho preparatório parece ter sido concluído em 1958, ano em que é feita a apresentação pública da maqueta da Arquitectura Popular em Portugal ao Presidente do Conselho de Ministros e ao Ministro

das Obras Públicas, numa sessão - amplamente noticiada na imprensa da época - realizada na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNB A) a 22 de Abril. Na sequência desta sessão, multiplicaram-se os sinais de interesse pela inici- ativa e pelos seus resultados. Keil do Amaral publica na Gazeta Musical e de Todas as Artes um depoimento sobre o Inquérito (Amaral 1958) que projecta este para fora do cícrulo restrito dos arquitectos. Alguns dos arquitectos envol- vidos no Inquérito realizam também conferências sobre o tema e o número 66 da revista Arquitectura - editado em 1959 com uma fotografia na capa de «ter- raços e quintais uma cidade algarvia (...) tirada durante o Inquérito à arqui- tectura regional» - consagra dois artigos à problemática da arquitectura popu- lar - também eles profusamente ilustrados com fotografias do Inquérito - subscritos por António Freitas (1959) e Carlos Duarte (1959).

Mas será só em 1961 - mais de cinco anos volvidos sobre o seu início - que os resultados do Inquérito serão finalmente divulgados, sob a forma de dois volumes - profusamente ilustrados - com o título geral de Arquitectura Popular em Portugal.

Embora a obra deixe transparecer uma grande unidade gráfica, a apresen- tação dos materiais faz-se de acordo com a agilidade que havia até aí carac- terizado o Inquérito, tanto na fase de recolha como na fase de tratamento de materiais. Como se refere na Introdução

entendeu-se (...) que seria desejável que cada grupo tratasse a sua Zona sem uma abso- luta rigidez de ordenação comum. Ao risco da falta de unidade contrapunha-se o desejo de evitar a monotonia da exposição (Inquérito... 1980: XXIII).

Foram de qualquer forma definidas algumas regras genéricas para apre- sentação de certo tipo de materiais. Como refere Távora «a coordenação foi mais em ordem ao número de fotografias, em ordem aos desenhos, encontrar um tipo de desenho que cobrisse todo o Inquérito, as cartas tipológicas, etc...» (Távora 1996).

Em consequência, as aproximações propostas à arquitectura popular nas diferentes secções do livro são muito diversificadas. Não é que não possam ser detectadas um certo número de preocupações comuns: com a apresenta- ção geral geográfica e histórica da área ou com a caracterização das formas de povoamento e dos grandes traços definidores do modo de vida rural, ou, ainda, com a descrição dos tipos arquitectónicos mais representativos ou com o esboço de uma tipologia de conjunto para a região em análise. Mas não há, apesar dessas preocupações, nada que se assemelhe a uma grelha comum de estudo e em nenhum ponto do livro é ensaiada uma análise comparativa e inte- grada dos dados distribuídos pelos diferentes capítulos. Mais do que isso, o

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