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[...] Reluta-se, em geral, em considerar as narrativas históricas como o que são mais declaradamente: ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como achados,

60 No vertiginoso fornico daqueles adolescentes sublimes, morre, definitivamente, a Idade Média. Fernando e

Isabel irrompem nessa época de opressão. A força deles é estritamente angelical. Não parecia que eram anjos: belos, violentos ao extermínio, resplandecentes, sem cáries. Os historiadores torpes e geralmente paroquiais que obscureceram sua glória tiveram, no entanto, de qualificá-los com palavras que correspondem à mais precisa angelologia.

e cujas formas têm mais em comum com seus correlatos na literatura do que nas ciências”. (HAYDEN WHITE, 1974 apud COSTA LIMA, 2006, p. 18)61

Luiz Costa Lima toma como centro de gravitação do seu livro História. Ficção.

Literatura (2006) a sua constatação da carência de uma reflexão comparativo-contrastiva

acerca das escritas da História e da Literatura. Como quem é tocado por um ferrão de abelha, o autor recebe as considerações de Hayden White sobre a aproximação entre os discursos historiográfico e poético. Esse teórico brasileiro procura superar as análises que reduzem os enunciados de Literatura e da História a instâncias sinônimas. Sem negar que o conhecimento histórico não se realiza senão num discurso, Costa Lima ressalta que a História reivindica uma veracidade estranha à ficção: “[o] ferrão tem duas pontas: o relato historiográfico é uma

ficção verbal e deve ser abordado como um artefato verbal. Mas o autor [Hayden White] não

sente a necessidade de se indagar sobre a ficção, crendo bastante precisar seus procedimentos básicos” (COSTA LIMA, 2006, p. 18). Para o teórico brasileiro, é de suma importância que se estabeleçam e fiquem claros os diferentes pressupostos que orientam a escrita da História e da Literatura. O conceito de ficção é posto como mediador entre ambos, por constituir um contraste mais apropriado à teoria da História, uma vez que seu discurso pretende propor uma verdade correspondente à realidade:

O contrário do que sucede no discurso ficcional porque este não postula uma verdade, mas a põe entre parêntese. Já a historiografia tem um trajeto peculiar: desde Heródoto e, sobretudo, Tucídides, a escrita da história tem por aporia a verdade do que houve. Se se lhe retira essa prerrogativa, ela perde sua função. Torna-se por isso particularmene difícil ao historiador não considerar prova aporética o que resulta do uso de suas ferramentas operacionais. As tentativas de Cornford e Hayden White de aproximá-la do poético procuravam conjurar essa dificuldade; terminaram, contudo, por criar um desvio tão grave quanto: converter a escrita da história em uma modalidade de ficção. (COSTA LIMA, 2006, p. 21)

Costa Lima recorre a Heródoto e a Tucídides — os primeiros historiadores dos quais possuímos textos integrais —, por se tornarem os primeiros com os quais a questão da aproximação dos discursos histórico e literário se apresenta. Para Tucídides, a História era rigorosa acribia; ou seja, um registro preciso e rigoroso do que ouve. O historiador grego via, nos acontecimentos antigos, que ele não havia testemunhado, uma impossibilidade de clareza: “[p]ois bem, tais foram de acordo com minhas pesquisas os tempos antigos; sobre eles é difícil dar crédito a todo e qualquer indício” (TUCÍDIDES, 1999, p. 27). Diferentemente, o seu antecessor, Heródoto, conforme afirma Costa Lima (2006, p. 34), considerava que a

61 WHITE, 1974, p. 82.

investigação da História se cumpria por registrar as versões do que ouvira sobre certo evento. Tucídides, contudo, é acusado, por seus comentadores, de haver escrito o que é falso, ao descrever seu próprio método, pois admitia que reproduzia com as palavras o que, no seu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado.

Tucídides via, na poesia de Homero, o fabuloso, o adorno: “[...] caso se deva aqui também dar algum crédito à poesia de Homero que, sendo poeta, naturalmente a embelezou para engrandecê-la” (TUCÍDIDES, 1999, p. 15). No entanto, embora considerando-a uma narrativa fabulosa, adornada, duvidosa e talvez insuficiente, o historiador recorre a dados recolhidos da Ilíada como fonte de sua narrativa:

Parece-me que Agamenão, tendo recebido essa herança e tendo-se tornado mais forte que os outros por causa de sua frota, não tanto por simpatia quanto por temor, reuniu e realizou sua expedição. Vemos que ele partiu com o maior número de navios e os forneceu aos arcádios, como nos indica Homero, se é que para alguém o seu testemunho é suficiente. (TUCÍDIDES, 1999, p. 14)

Diante disto, Costa Lima indaga sobre a possibilidade de integração do discurso do historiador com o do poeta. Questionamento esse que poderia ser um ato execrável para os positivistas duros, por terem como “ferramentas” as ideias de “pureza” e de “autenticidade”, uma vez que a História só poderia ser reconhecida por sua capacidade sensível e objetiva de retratação, mas que bem poderia ser concebível, para os historiadores modernos, os ditos complacentes:

A introdução de novas técnicas de análise comprovaria uma falha grave naquele que fora considerado o verdadeiro pai da história. Ao escapar da condição de mero comentador do texto historiográfico, ao considerar o próprio historiador como escritor, o pesquisador contemporâneo não só já não pode manter a crença literal na história como aporética afirmação da verdade como é forçado a admitir a inevitável parcialidade de quem escreve a história. Isso significaria dizer que ele se inclina para o lado dos que a tomam como próxima, se não integrada à linguagem dos poetas? (LIMA, 2006, p. 44)

Utilizando-se do fragmento abaixo de J. L. Moles, comentador de Tucídides, a questão facilmente se responde:

Então a obra de Tucídides é história ou literatura, análise desapaixonada ou incitação emotiva, impessoal ou altamente pessoalizada, objetiva ou subjetiva, imparcial ou preconceituosa (prejudiced), simples ou retórica, verdadeira ou inverídica? A resposta há de ser: é tudo isso, embora Tucídides tenha uma clara preocupação com a verdade e, nisso, com diferentes espécies de verdade. (MOLES, 1993 apud COSTA LIMA, 2006, p. 38)

Ou seja, desde que se mantenha o estatuto da História, o seu compromisso com a verdade, não há nada que impeça o discurso do historiador de apresentar semelhanças com a formulação verbal daqueles dos quais, intencionalmente, ele procurava se distinguir. A aproximação da escrita ficcional e até da poética, porém, não as iguala, nem mesmo integra os discursos, como pretende sugerir Costa Lima em seu questionamento. Ainda que a escrita da História contenha registros de parcelas de impressões e subjetividade do historiador e até mesmo dados da escrita poética, aceitando essas proximidades ela não se confunde com a escrita literária. Ao contrário da escrita que se pretende História, que tem como estatuto a clareza dos fatos, o compromisso com o referente e com a verdade, a literária mantém explícita sua condição de ficcionalidade.

Na escrita literária, conforme veremos no próximo capítulo, as três últimas décadas do século XX estão marcadas por crescente interesse pela temática histórica. Verifica-se, nesse momento, um grande volume de romances que se propõem a reescrever a história, principalmente a da Conquista e posterior colonização da América. Sendo assim, utilizando-nos da mesma linha de pensamento de Costa Lima, poderíamos dizer que os poetas estariam, então, deixando de adornar, fabular a sua escrita, ao aproximá-la da História? A questão que o teórico coloca para a o discurso histórico pode muito bem também ser aplicada ao literário, o que só vem a evidenciar o grau do intercâmbio interdisciplinar dos discursos.

Costa Lima, em suas reflexões sobre o tema, não esconde sua preocupação com a crescente interação entre História, Literatura e Cultura. A “contaminação” entre essas fronteiras é, para o autor, “um excelente chamariz por combinar "correção política" e amadorismo”.62

Segundo ele:

A flagrante perda de prestígio da ficção literária, que se aprofunda desde as últimas décadas do século XX, ultimamente tem sido acompanhada pela expansão dos chamados culturais studies, que, embora pudessem ter representado um desafogo contra o fechamento das literaturas no âmbito histórico-nacional, na verdade antes têm cumprido o papel de profissionalizar o amadorismo. (COSTA LIMA, 2006, p. 281)

Sem pretender aprofundar no assunto e gerar uma discussão teórica sobre os Estudos Culturais, que não se apresenta como foco desta pesquisa, acredito ser importante abrir pequenos parênteses de reflexão, uma vez que essa tendência é alvo de preocupação não só do teórico brasileiro, mas também de muitos outros pesquisadores do Brasil, da Europa e até mesmo dos Estados Unidos, onde, atualmente, mais se desenvolvem estudos sobre o tema.

62COSTA LIMA, Luís. Entrevista a Wanderson Lima. Revista Desenredos, Teresina, ano I, n. 2, set./out. 2009.

Será que estamos realmente diante de um amadorismo generalizado, que somente utiliza clichês culturalistas para atrair grandes tiragens?

Esta breve reflexão, ancora-se na reunião de ensaios de Crítica Cult (2007), de Eneida Maria de Souza, que traz para o cenário de suas reflexões discussões sobre a crítica literária e sua vinculação à Crítica Cultural e à Literatura Comparada. As inquietações levantadas por Costa Lima sobre os estudos culturais são tratadas, pela autora, nos ensaios “A teoria em crise” e “O não-lugar da literatura”, numa tentativa de entender e esclarecer as causas das acaloradas desavenças entre os contrários à prática interdisciplinar que propõem os Estudos Culturais. Logo no início do primeiro ensaio, a autora nos adverte que já não se trata mais de considerar a Literatura somente como obra esteticamente concebida e valorizá-la por seus critérios de literariedade, “mas de interpretá-la como produto capaz de suscitar questões de ordem teórica ou de problematizar temas de interesse atual, sem se restringir a um público específico” (SOUZA, 2007, p. 63-64).

Para essa ensaísta, os estudiosos brasileiros, acostumados a conviver com a chegada de teorias estrangeiras, veem-se em conflito frente aos caminhos da Crítica Literária. Os Estudos Culturais — que estariam “distorcendo” a Teoria da Literatura, devido ao enfraquecimento dos territórios, causados pela crescente diluição das fronteiras disciplinares e dos objetos específicos de estudos — têm como um dos maiores fatores da polêmica a mudança do centro produtor dos saberes ligados às Ciências Humanas da Europa para os Estados Unidos:

Antigos inimigos do estruturalismo francês, ao lado de novos defensores da literatura como discurso a ser priorizado frente aos outros, assim como da teoria como forma de controle à interdisciplinaridade desenfreada, estão novamente em estado de alerta contra o “imperialismo americano” e os efeitos de sua política cultura globalizada. (SOUZA, 2007, p. 64)

Ainda segundo Eneida Maria de Souza, os detratores dos Estudos Culturais manifestam-se inconformados não só pela diluição do objeto de análise, mas também pela ausência de rigor teórico e de sistematização metodológica. Situação essa que teria sido motivada pelas teorias da multiplicidade, da desconstrução e da descontinuidade pós- estruturalista, de Deleuze e Guattari, Derrida e Foucault. O que se percebe, também, frente às opiniões dos que se posicionam contrários, é a preferência desses estudiosos por escritores consagrados (brancos e ocidentais) e tradicionalmente aceitos pela comunidade acadêmica como objetos de culto e análise:

As razões que motivam a defesa da literatura como manifestação singular e acima do senso comum dependem de critérios consensuais de determinada classe social, guiados pela relação entre cultura e poder, cultura e prestígio, critérios esses tributários da concepção mediatizada e institucionalizada da literatura. Por trás da discussão do gosto estético se acham inseridos problemas mais substantivos quanto à diferença de classe, à democratização da cultura e à perda do privilégio de um saber que pertencia a poucos. (SOUZA, 2007, p. 67)

A diluição do conceito de origem com a valorização de pensadores contemporâneos, em detrimento dos tradicionais e “verdadeiros” precursores teóricos configura-se como uma das maiores acusações às teorias culturalistas.

A autora deixa bem claro, nesses ensaios, o seu ponto de vista sobre esse assunto. Levando-se em consideração o inumerável conjunto de novos objetos até pouco tempo desconsiderados pela crítica (estudo das minorias, dos textos paraliterários, da correspondência, do memorialismo, etc.), não há como deixar de se considerar as pluralidades interpretativas, uma vez que não há impecilho algum à convivência do saber moderno com o pós-moderno:

A defesa de uma teoria que poderia se impor como única e exclusiva não se sustenta mais no atual espaço acadêmico, pela natureza plural das tendências críticas. Se a sociologia atua como disciplina que dialoga com a teoria construtivista de Schmidt, a filosofia, com os princípios teóricos de Luiz Costa Lima e a semiologia, com as posições de Leyla Perrone-Moisés e de Antoine Compagnon, outros campos do saber poderão continuar a manter o diálogo com os estudos literários e culturais. O perigo é acreditar que a verdade se define pela exclusividade e singularidade desta ou daquela disciplina.[...] A interdisciplinaridade, de vilã da história poderia receber tratamento mais condizente com sua força de aglutinação de diferenças e de pulverização dos limites fechados dos campos teóricos. (SOUZA, 2007, p. 72-73)

Enfim, considerando-se que os processos de modernização do mundo estão em permanente movimento, o debate em torno dos lugares disciplinares tem, para a autora, “cheiro de fruta passada e já deveria estar produzindo outros frutos que enriqueceriam os estudos literários comparatistas e culturais” (SOUZA, 2007, p. 81). Para que esse debate não se transforme em consenso de grupos ou apatia acadêmica, pode-se concluir que o melhor caminho a seguir é enfrentar o desafio e entender a prática inderdisciplinar como mecanismo de abertura para o trânsito entre os discursos das Ciências Humanas. Mecanismo esse que exerce papel importante na crítica literária, a fim de se produzirem “novos frutos”.

Considerar a prática interdisciplinar como força aglutinadora de diferenças faz cair por terra (e esse era, realmente, o objetivo) a questão inicialmente proposta: a que sugere a possibilidade de os poetas estarem deixando de adornar a sua escrita, ao aproximá-la da História. O romance histórico contemporâneo utiliza-se da prática interdisciplinar não para

aproximar os discursos e, sim, para contestar e problematizar a enunciação histórica. A releitura da história deixa claro o seu projeto de ficcionalização e torna explícita a subjetividade do autor, que não deixa de “adornar e fabular” a narrativa, assim como, talvez, procedesse o historiador antigo.