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Desenhar o mapa de um ato de dança é uma maneira de possuir uma chave que permita, a quem possa decodificar a notação, repetir o ato, voltar a realizá-lo, fazer com que permaneça vivo e, ao mesmo tempo, oferece a oportunidade de estudar suas condições de existência, a inteligibilidade do conjunto, as especificidades de sua arte combinatória, o alcance de seus fins explícitos ou não. Do mesmo jeito, aquela escrita que se propõe, no marco de um texto definido por suas características de ficcional e imaginário, portanto, literário, a descrição minuciosa de um lugar e dos movimentos que se produzem nesse lugar, poderia ser apreciada como uma forma de decodificar a cultura, que nos levasse a outros patamares de compreensão e, conseqüentemente, de conhecimento do mundo.

Graciela Ravetti (2005, p. 188-189)

Graciela Ravetti, ao comparar técnicas utilizadas na arte da dança para a reprodução gráfica da coreografia (notações) com as da escrita, destaca a descrição de um lugar e de seus movimentos como decodificadores culturais: “[q]uem dança, como quem escreve, desloca-se nas dimensões de espaço e tempo” (RAVETTI, 2005, p. 184-185). Ambos os movimentos registram o pensamento e a ação: “[a] escrita de uma narrativa literária é uma notação que pretende trazer, à página em branco, o que é da ordem do imaginário e do real, do inventado e do constatado” (RAVETTI, 2005, p. 189).

Como já visto, o narrador de Los perros del paraíso submete-se a um minucioso trabalho de notação dos ambientes e das personagens da história que retrata. Trabalho esse que visa, sempre, problematizar e colocar em questão a (im)possibilidade de reconstrução fiel do passado. O romance compõe-se de quatro partes, ou, bem caberia dizer, é composto por quatro grandes cenários a serem decodificados, nomeados com os nomes dos quatros elementos fundamentais da natureza: El aire, El fuego, El agua e La tierra. O capítulo “O ar” traça um panorama do cenário do mundo ocidental de antes da Conquista com ares do Renascimento. A reprodução gráfica (as notações) do ambiente descreve um mundo sem vida, sem espaço e sem ar. Pintores italianos anunciam ares alarmantes, com suas virgens transgressoras. A Igreja vê seus planos fracassados. A tomada de Constantinopla e a

invasão muçulmana haviam acarretado um golpe decisivo para o mundo cristão.286 Em pleno século XIV, deparamos-nos com um ambiente empresarial asfixiante das multinacionais: “[l]as multinacionales se asfixiaban reducidas a un comercio entre burgos. Reclamaban con airada impaciencia” (PP, 1989, p. 11).287 Executivos e empresários desejosos de conquistar novos espaços, sentindo-se capacitados para muito mais, rebelam-se diante da imobilidade:

“¡Queremos espacios! ¡Maderas preciosas! ¡Mercados! ¡Especias y marfiles de Oriente! ¡Basta de turquescos en el Mare Nostrum!”

Occidente, jadeaba, ansiaba su sol muerto, su perdido nervio de vida, la fiesta soterrada. […] Los hombres vacíos, casi sin sombra, buscaban su estatura.

Occidente, vieja Ave Fénix, juntaba leña de cinamomo para la hoguera de su último renacimiento. Necesitaba ángeles y superhombres. Nacía con fuerza irresistible, la secta de los buscadores del Paraíso. (PP, 1989, p. 11)288

Os movimentos do lugar anunciam o futuro próximo destinado ao novo “mercado” a ser conquistado, uma vez que o ar ocidental já se mostrava sem vida, sem perspectiva de ganhos comerciais. Ainda na primeira parte do romance, destacam-se momentos da infância e da juventude de Cristóvão Colombo, de Fernando e Isabel, principalmente o despertar sexual dos jovens príncipes, que se dá nos espaços internos do castelo de Castela, conforme veremos no último item deste capítulo, em uma conjunção de performances sexuais, jogos, rituais amorosos e deslocamentos frenéticos.

O capítulo “O fogo” tem como cenário a consolidação do Império espanhol, marcado por um ambiente inquisitorial, pela ardente paixão sexual de Fernando e Isabel, pela guerra final contra os mouros, em Granada, e pelas guerras de disputa de poder entre a princesa Isabel e sua sobrinha, a Beltraneja: “[d]espués de 777 años de morería todo quedaba dominado por la catolicidad imperial. Todos comprendieron que había nacido el ciclo del mar, aunque el fuego de los hogueras no cesaba”289 (PP, 1989, p. 122-123). O capítulo também tem

286De acordo com Steven Runciman (2002), o declínio e a queda de Bizâncio e o triunfo dos turcos otomanos, em

1453, tiveram grande imapacto na exploração das rotas oceânicas do mundo cristão. Para os turcos, a tomada de Constantinopla garantiu a continuidade de seu império na Europa. Enquanto a cidade, situada como estava no centro de seus domínios, na interseção entre a Ásia e a Europa, não estivesse em suas mãos, não poderiam sentir- se seguros. Eles não tinham motivos para temer os gregos sozinhos; porém, uma grande aliança cristã atuando a partir de tal base ainda poderia desalojá-los. Com a cidade de Constantinopla em seu poder, estavam seguros. Nesse momento, o comércio entre Europa e Ásia declina subtamente, o que leva as nações europeias a iniciar projetos para o estabelecimento de rotas comerciais alternativas.

287As multinacionais se asfixiavam, reduzidas a um comércio entre burgos. Reclamavam com violenta impaciência. 288Queremos espaços! Madeiras preciosas! Mercados! Especiarias e marfins do Oriente! Basta de turquescos no

Mare Nostrum! Ocidente, ofegava, agonizava seu sol morto, seu perdido nervo de vida, a festa soterrada. […] Os

homens vazios, quase sem sombra, buscavam sua estatura. Ocidente, velha Ave Fênix, juntava a lenha de cinamomo para a fogueira de seu último renascimento. Necessitavam de anjos e de super-homens. Nascia, com força, irresistível, a seita dos buscadores do Paraíso.

289Depois de 777 anos de mortes, tudo ficava dominado pela catolicidade imperial. Todos compreenderam que

como foco as ambições de Colombo por encontrar meios e pistas (livros, mapas, cartas) que lhe indicassem o caminho para o Paraíso, bem como pelo financiamento de sua empreitada. O final do capítulo ainda é marcado pelo encontro de Colombo com a rainha Isabel, que lhe propõe o financiamento da expedição: “[l]o narrado, tan importante para el Destino de Occidente (como se dice) ocurrió el 9 de abril de 1486. Colón había comprendido que aquel rito sellaba un gran acuerdo. ¡La Reina era su cómplice secreta en la secretísima aventura del Paraíso!” (PP, 1989, p. 128).290

Conforme veremos no item 4.3, a terceira parte do romance, “A água”, descreve o perturbado transcurso da viagem das três caravelas, aqui consideradas como o espaço heterotópico (Michael Foucault). Para Colombo, todos fogem do inferno, enquanto ele acredita ser o único que busca o Paraíso e terras para os injustamente perseguidos. Foucault, na conferência “Outros espaços”,291 define o século XX como a época do espaço, em contraste com o XIX, que teria tido como grande tema a História. O filósofo trabalha a perspectiva do espaço literário sob forma de relações de posicionamentos, definido pelas posições de vizinhança entre pontos ou elementos, e apresenta dois grandes grupos de espaços: o das utopias e o das heterotopias. O primeiro abrange os posicionamentos sem lugar real, que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. São espaços essencialmente irreais, que seriam a própria sociedade aperfeiçoada ou o seu inverso. Em contraposição a esses, encontram-se as heterotopias, os posicionamentos diferenciados, os outros lugares. Espaços reais que se podem encontrar no interior da cultura e que estão, ao mesmo tempo, representados, contestados e invertidos. Espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam, efetivamente, localizáveis.

O último capítulo, “A terra”, que veremos a seguir, marca a chegada dos espanhóis às novas terras que viriam ser a futura América, conforme representado na FIG. 3, o tão sonhado e utópico Paraíso terrestre (espaço utópico) de Cristóvão Colombo.

290O narrado, tão importante para o Destino do Ocidente (como se disse), ocorreu em 9 de abril de 1486. Colombo

havia compreendido que aquele ritual selava um grande acordo. A Rainha era sua cúmplice secreta na secretíssima aventura do Paraíso.

291FOUCAULT, 2001. p. 411-422. Conferência realizada no Círculo de Estudos Arquitetônicos, na Tunísia, em 14

FIGURA 3: Representação da chegada de Cristóvão Colombo à América.

Fonte: http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://lostangelesblog.files.wordpress.com/.

FIGURA 4: Nina_Pinta_Santa_Maria_replicas.

http://www.come2bcn.com/blog/eng/image.axd?picture=2009%2F10%2F1893_Nina_Pinta_Santa_Maria _replicas.jpg.