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A Subordinação do Social no Interior do Campo Ambiental: implicações da regulação

CAPÍTULO 1 – O LUGAR DO SOCIAL NA AVALIAÇÃO DE IMPACTO AMBIENTAL

1.2. A Subordinação do Social no Interior do Campo Ambiental: implicações da regulação

Este primeiro capítulo se propõe a desvelar o sentido da construção histórica responsável pela dimensão que foi atribuída ao componente social ou meio socioeconômico nos estudos de avaliação de impacto ambiental. Para tanto, faz-se necessário retroceder ao contexto histórico, político e institucional de surgimento da regulação normatizadora desse instrumento de planejamento ambiental no país, que mantém elos importantes, por sua vez, com o contexto internacional. Essa retrospectiva é valiosa ao trazer alguns elementos em cena que permitem explicar o conteúdo e o formato específicos pelos quais a AIA se apresenta hoje, no Brasil – sobretudo, no que diz respeito à importância do social no diagnóstico ambiental, na previsão de impactos e na proposição de medidas mitigadoras dos EIA/RIMAs.

Como se pretende argumentar mais à frente, o primeiro ponto fundamental a ser considerado, na composição desse mosaico histórico, é que a prática de avaliação prévia de impactos sociais de obras e atividades nasce no seio das lutas que constituiriam e consolidariam o campo ambiental13, ou seja, a partir de suas regras e bandeiras, de sua lógica e hierarquia de legitimidades, de seus discursos e agentes, de sua composição de forças internas ao campo (entre subordinados e hegemônicos), com capitais e lucros simbólicos muito particulares (BOURDIEU, 2005; FONSECA; BURSZTYN, 2007).

Essa primeira aproximação da problemática permite dar sentido à crítica recorrente expressa por aqueles que lutam pela efetiva incorporação do social nos processos de avaliação de impacto e licenciamento ambiental:

(...) apesar do que está expresso na Constituição, bem como em diversos instrumentos internacionais sobre direitos humanos, os agentes públicos teimam em tratar o meio ambiente como um conjunto de recursos naturais dissociado das pessoas que nele vivem. (...) No licenciamento ambiental, os estudos de impacto ambiental raramente analisam grupos socioculturais diferenciados presentes nas áreas de abrangência afetadas pelos empreendimentos. Mesmo aqueles que

13 A noção de ‘campo’ é utilizada no sentido de espaço social, no qual pessoas, grupos e instituições se definem pelas relações de concorrência e de poder que estabelecem entre si (BOURDIEU, 1982 apud LOUREIRO; PACHECO, 1995). Essa chave analítica do ‘campo ambiental’ permite compreender a dinâmica das lutas e dos conflitos não apenas do espaço governamental, mas também em sua relação com os espaços formados pelos movimentos ambientalistas, pelos partidos políticos, pela mídia, pela academia, pelo setor empresarial, entre outros, compondo uma totalidade estruturada com habitus (estruturas internalizadas), signos, valores e capitais particulares. Torna-se possível ainda, através desta chave, compreender as diferentes configurações históricas de alianças, lutas e posições entre os variados subcampos ambientais (entre agências ambientais reguladoras, entre agências e organizações ambientalistas, entre disciplinas universitárias que lutam para impor seu enfoque da temática etc).

admitem a presença desses grupos não apresentam diagnósticos suficientes da organização sociocultural e dos impactos dos empreendimentos sobre os territórios e populações atingidas (CASTILHO, 2005, p. 17-18).

Abordar a questão dos impactos sociais embutidos em projetos – e seu pouco reconhecimento na esfera da regulação e responsabilização – remete necessariamente à constituição histórica da regulação ambiental, na medida em que a consideração obrigatória do componente social vem a se desenvolver a partir desse campo.

Premido pela conjuntura internacional e depois nacional, o campo ambiental brasileiro se consolidaria gradualmente: da exigência de estudos ambientais para financiar projetos estruturantes, por parte do Banco Mundial, após a Conferência sobre Meio Ambiente de Estocolmo (1972), somada à crescente pressão de grupos ambientalistas internos e de grupos sociais afetados pelos efeitos nefastos de grandes projetos ‘desenvolvimentistas’ do regime autoritário, serão estruturados órgãos de deliberação, coordenação e fiscalização ambiental, legislações de proteção ambiental nos três níveis de governo, empresas de consultoria para produção de EIA/RIMAs, além de conselhos de meio ambiente, como o CONAMA (FONSECA; BURSZTYN, 2007). Por outro lado, os agentes envolvidos nessa constituição incipiente do campo ambiental brasileiro, que viriam a definir as normas vigentes para o instrumento de estudo de impacto ambiental, portariam uma concepção ainda restrita de meio ambiente e de forte cunho conservacionista14.

O baixo desenvolvimento histórico da regulação do componente social, face aos componentes biótico e físico, parece ter resultado de um relativo vácuo político em sua defesa, no campo ambiental, na medida em que seus agentes dominantes partilhavam de uma representação limitada e dicotômica sobre o meio ambiente, excluindo-lhe o social. Desinteressante para empreendedores públicos e privados, sem conseguir angariar defensores no seio dos movimentos sociais tradicionais ou dos grupos ambientalistas conservacionistas, até meados da década de 80,

14 A abordagem de Carlos Vainer (1996) fornece pistas preciosas para o argumento que se deseja expor aqui ao desvelar os sentidos simbólicos (em disputa) por trás da ideia (aparentemente natural) de meio ambiente: “(...) partir do entendimento de que população e meio ambiente, longe de constituírem realidades empíricas em si (...), são construções sociais, representações acionadas em um campo de forças no qual interagem diferentes grupos sociais (cf. Bourdieu, 1984). Neste linha de reflexão, a questão ambiental deixa de ser vista como produto de uma relação entre o Homem – categoria genérica que remete à noção estritamente biológica de espécie – e a Natureza – categoria que, nada naturalmente, resulta de um complexo processo de elaboração -, para se situar no campo das relações que diferentes grupos entretecem no espaço social, bem como das diferentes estratégias que se elaboram com vistas ao embate pela apropriação, controle e uso de recursos naturais” (VAINER, 1996, p. 184) [grifos nossos].

e antes que houvesse efetivo envolvimento de cientistas sociais no diálogo com a área ambiental, o componente social teria o seu papel atrofiado no desenvolvimento inicial da regulação ambiental.

Essas características históricas trazem implicações importantes em, pelo menos, duas dimensões. A primeira delas diz respeito ao modo de regulação, à importância relativa e ao escopo atribuído ao chamado ‘componente antrópico’ nos estudos de impacto ambiental. Custos sociais de projetos passam a ser negligenciados ou subestimados nos EIAs, engendrando uma dinâmica de baixa responsabilização por impactos sociais gerados e, por conseguinte, de externalização/ socialização destes custos de forma injusta. A segunda dimensão, por sua vez, mantém ligação com a primeira e se expressa por meio da constituição de um campo disciplinar frágil sobre avaliação de impactos sociais no país.

Deve-se registrar, contudo, que essa última dimensão não é exclusiva apenas do Brasil. Se, por um lado, o estudo de impacto ambiental passaria a ser um instrumento conhecido em todo o mundo, difundido desde o final da década de 60, alavancando o surgimento de uma verdadeira ‘comunidade do EIA’ (AB’SABER; MÜLLER-PLANTENBERG, 2002), por outro lado, na grande maioria dos países, a avaliação de impacto social não deslancharia com a mesma intensidade e nem se institucionalizaria do mesmo modo que a avaliação de impacto ambiental. Sua disseminação teria sido muito mais fraca e descontínua. De fato, haveria um boom desses estudos nos Estados Unidos (locus de seu surgimento), durante a década de 70, impulsionado pela lei federal conhecida como National Environmental Policy Act (NEPA/1969), sofrendo um declínio generalizado a partir da década de 80. Muitos ativistas da avaliação de impacto social passariam a denunciar o desnível existente entre os dois tipos de avaliação de impacto, defendendo mais atenção, recursos e pesquisas para o seu campo (BARROW, 1997). No Brasil, de forma semelhante, não seria forjado um campo disciplinar forte e relativamente autônomo da avaliação de impacto social de projetos. Países como Nova Zelândia, Austrália, Canadá e Estados Unidos são algumas das exceções à regra. E, no Brasil, à parte uma literatura crítica sobre o tema, a avaliação institucionalizada de impacto social de projetos teria que se conformar dentro dos limites colocados ao componente social, enquanto parte subordinada dos estudos de impacto ambiental. Como bem sintetiza Barrow (1997), referindo-se à realidade da avaliação de impacto social no plano internacional:

How closely environmental and social impact assessment are integrated generally depends partly on a country’s or agency’s definition of environment. (…) Usually social impact assessment is a modest component of a wider environmental impact

assessment (…). There have been occasions where an environmental impact assessment team carried out a social impact assessment without adequate social science input; there are frequent cautions in the literature that social impact assessment should be conducted by competent, professional social scientists (BARROW, 1997, p. 233).

1.3. Contexto Internacional de Surgimento da Regulação Ambiental: desdobramentos para a