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Críticas ao Discurso Hegemônico no Interior do Subcampo da AIS

CAPÍTULO 2 – AVANÇOS TEÓRICOS DA AVALIAÇÃO DE IMPACTO SOCIAL NO

2.5. Críticas ao Discurso Hegemônico no Interior do Subcampo da AIS

Não obstante a construção de muitos consensos teóricos ao longo da consolidação histórica do subcampo da avaliação de impacto social, o mesmo não passaria à margem da crítica interna de parte de seus agentes, sobretudo, em relação aos seus aspectos mais imediatamente políticos. Embora houvesse amplo reconhecimento das limitações impostas à expansão da área, já era possível discernir diferentes tônicas quanto às potencialidades e ao papel desempenhado, de fato, pela AIS como instrumento. Dificuldades com o tratamento de interesses e valores conflitivos na AI, constrangimentos financeiros e logísticos para a implementação da AIS – cujos estudos seriam tidos como acessórios desnecessários, acrescentando custos adicionais à intervenção -, a falta de legislações nacionais específicas para dar suporte, a prevalência de uma mentalidade que considera a AIS como mais um obstáculo regulatório a ser transposto, todos esses entraves seriam identificados e compartilhados pela comunidade profissional e acadêmica do subcampo (ESTEVES et al., 2012). O fulcro das divergências se estabeleceria na questão do poder – ou, melhor dito, no papel da AIS como instrumento de poder – e, por tabela, na profundidade da crítica empunhada pelos diversos agentes na sua atuação profissional.

Ainda que admitissem a relevância da AIS como instrumento de planejamento e gestão e vislumbrassem potencialidades para a ferramenta, parte dos agentes se colocariam em uma postura menos eufórica do que aquela apresentada pelos seus pares mais (re)conhecidos e legitimados no subcampo - cujo discurso terminaria por ganhar repercussão internacional ao ser ecoado pelos encontros e conferências de grande porte e prestígio da área, tornando-se hegemônico e ofuscando os posicionamentos mais críticos. A despeito do peso diferenciado da crítica, contudo, o diagnóstico da existência de desequilíbrios de poder na execução dos estudos de AIS seriam

(STOLP et al., 2002), o método seria inovador porque, até então, não haviam propostas,na literatura especializada, de como sistematizar e analisar as opiniões e valores coletadoscom rigor científico. A técnica se utiliza de entrevistas individuais, surveys quantitativos e critérios de avaliação para estabelecer os valores-chave da comunidade, para então selecionar a melhor alternativa existente para a intervenção: “CVA was founded on three basic premises. First, decisions about what matters in the environment and what is studied as part of an EIA should be based on value orientations that are explicit and these should not come exclusively from technical experts. The people who are actually living in an area have important knowledge to share, based on their use and experience of the local environment and their observations of the operations of facilities and infrastructure. (…) Second, the inclusion of citizen values explicitly in the EIA process increases the quality of the EIS, because it provides a broader overview of positive and negative aspects of alternatives. (…) Moreover, including citizen values in an EIS puts them on an equal footing with scientific and technical information. This increases the legitimacy of the document from the perspective of the public (…)” (STOLP et al., 2002, p. 12-13).

partilhados, em boa medida, entre os praticantes da área. A assimetria de poder, originada do fato de que tais estudos são contratados e financiados pelos proponentes das intervenções, imporia uma série de problemas e desafios para o cumprimento dos objetivos e princípios inicialmente propalados pelos defensores do subcampo da AIS. Diante de consultores altamente especializados, comissionados pelos próprios empreendedores, as comunidades afetadas não conseguiriam expor suas preocupações e interesses em nível de igualdade. Aliado a isso, o vínculo formal com os proponentes do projetos deixariam os estudos de AIS, de antemão, vulneráveis às manobras dos seus financiadores, como o aceleramento do processo de consulta pública para obtenção da licença junto às agências reguladoras, a limitação do alcance da participação social (inclusive, por meio de menor investimento de tempo e recursos para esse fim) e as tentativas deliberadas de evitar que interesses conflitivos e resistências sociais à intervenção sejam trazidos à tona nos estudos (ESTEVES et al., 2012).

Situado entre aqueles que atribuem um peso maior às limitações políticas e institucionais do instrumento de AIS, nos moldes atuais, Rahman (2015) alerta para a necessidade de distinção entre a retórica corrente da área e a prática concreta de seus agentes ou os resultados realmente alcançados ao longo de anos de intervenções, a fim de traçar um balanço mais rigoroso da efetividade do instrumento101. Até o momento, entretanto, a literatura (dominante) focada nas boas intenções da AIS teria contribuído para simplificar o assunto e desestimular análises mais detidas. A afirmação autoproclamada de que a AIS garantiria maior justiça social - através da gestão adequada das consequências sociais derivadas de projetos de desenvolvimento, com genuína participação e engajamento comunitários – e favoreceria um desenvolvimento mais equitativo, sustentável e democrático deveria se submeter ao crivo da pesquisa sistemática. Antes que isso tenha sido realizado, todavia, os defensores da institucionalização do subcampo da AIS tem conseguido angariar um crescente reconhecimento e prestígio no seio de setores ligados à agenda

101 Segundo Rahman (2015), a despeito do discurso eufórico e otimista da área sobre os benefícios de implementação da AIS, ainda seria muito ínfimo o número de estudos e pesquisas que se debruçam sobre a efetividade das medidas propostas por este instrumento. Na verdade, acrescenta o autor, a própria ideia unilateral de efetividade deveria ser colocada em xeque, na medida em que múltiplas interpretações e racionalidades sobre o que significa ser efetivo estariam colocadas simultaneamente: para empreendedores, a AIS pode ser considerada efetiva se trouxer a aprovação do projeto em tempo exíguo e sem custos adicionais; para reguladores, a AIS é efetiva se contribui para antecipar e mitigar impactos potenciais; para comunidades afetadas, a AIS seria efetiva se incorporasse, de fato, as preocupações e anseios locais e isso fosse traduzido em influência política na tomada de decisão final.

do desenvolvimento (agências multilaterais e bilaterais de financiamento, bancos e corporações privadas, organizações transnacionais etc), alavancando as possibilidades de carreira profissional. Por ser manifestamente político e se enraizar em processos políticos, ainda que traga consigo o potencial de promoção da justiça social para as comunidades afetadas, o instrumento de AIS se veria preso a algumas contradições entre o discurso e a prática. A primeira contradição decorreria de sua própria constituição enquanto campo científico, alcançada ao longo de idas e vindas de seus agentes em busca de legitimidade (resultando na formação de conceitos, princípios e métodos particulares), que também manteria relações híbridas com o campo econômico. Ao adquirir a chancela de legitimidade do campo científico (BOURDIEU, 2005), o qual lhe outorga autoridade e aceitação social, ao mesmo tempo em que vincula a sua possibilidade de existência ao financiamento de empreendedores, a AIS se veria desafiada por alguns dilemas éticos. Tanto a barreira erigida pelo discurso técnico quanto o uso político do saber científico, voltado à aprovação de projetos e à concretização de alguns dos interesses em jogo, entrariam em contradição com o papel democrático (autoproclamado pela AIS) na condução do processo de avaliação e gestão de impactos sociais. Em outras palavras, os processos políticos subjacentes à prática da AIS bloqueariam, de antemão, as supostas virtudes da participação e do saber local exaltadas no discurso oficial do subcampo (RAHMAN, 2015). E, uma vez que esse modelo de regulação é institucionalizado e respaldado pelas normas jurídicas que estruturam o campo político, a contradição inicial se transformaria aos poucos em estrutura inquestionável, e a avaliação de impacto passaria a operar como instrumento reificado e poderoso de interpretação da realidade.

Por omitirem do discurso técnico as escolhas igualmente políticas que sustentam a seleção de seus métodos e suas variáveis de análise, bem como subestimarem frequentemente o papel da incerteza em seus estudos, a AIS e seus praticantes colocariam em movimento um segundo tipo de contradição. Ao negarem o papel relevante da política na formatação, execução e utilização do instrumento, a AIS forneceria sua plataforma de discurso técnico como alicerce para despolitizar a agenda do desenvolvimento, favorecendo os mesmos interesses políticos dominantes que a financiam. E ao controlarem o modo como devem ser interpretadas, avaliadas e mensuradas questões sociais cruciais de cada contexto local, por meio de sua chancela de legitimidade científica, os praticantes da área iriam de encontro à declamada importância simultânea de opiniões técnicas, por um lado, e conhecimento local de outro:

“(…) SIAs, consistent with other impact assessment instruments, can promote reification of certain governance standards and practices by controlling how social justice and related concerns are framed, evaluated and contested (Cashmore et al., 2010). In this case, SIA scholars act as powerful political campaigners by interpreting the use, misuse, or non-use of SIAs in ways that have significant policy implications, and thus, institute roles of political advocacy (…)” (RAHMAN, 2015, p. 08).

Em resposta aos impasses destacados acima, e sem escapar aos condicionantes de sua prática, o discurso hegemônico internacional da AIS tenderia a se esquivar da análise mais aprofundada das implicações das relações assimétricas de poder, plasmadas em cada contexto, para a consecução de seus estudos. Via de regra, a literatura produzida pelo subcampo tem enfatizado boas práticas, diretrizes e recomendações, dotando o instrumento de força transformadora ainda pouco comprovada e concedendo maior peso a aspectos de qualidade técnica do que a processos políticos latentes para justificar o baixo rendimento dos resultados prometidos102. Consonante com esse viés, a questão da participação pública aparece descolada dos desafios políticos colocados em cada contexto social local, pressupondo a suspensão temporária das desigualdades sociais preexistentes e, mais ainda, a ideia de que a política seria um elemento intrusivo e desviante na condução do processo participativo democrático:

Deliberation and deliberativeness are multidimensional concepts that can be defined as dialogue intended to induce deep reflection (i.e. serious consideration) of options and possibilities in an open and inclusive way (i.e. without the intrusion of power or politics), and that considers the concerns of all stakeholders (VANCLAY et al., 2015, p. 20).

Em outras palavras, o discurso hegemônico internacional da AIS, sob risco de contradizer seus valores e princípios, é incapaz de assumir o papel que os desníveis de poder e que as desigualdades de capital econômico, político, cultural ou científico (etc) desempenham para condicionar o sucesso ou o fracasso das estratégias de legitimação acionadas pelos diversos grupos sociais e agentes em jogo. E, ainda que seus praticantes defendam a participação pública pelo princípio democrático e pelos benefícios resultantes às comunidades, por estar intrinsecamente amarrado à existência de propostas de intervenção e ao financiamento de seus empreendedores, o instrumento de AIS (assim como de outras formas de AI) permaneceria atado aos interesses dos

102 Não é sem fundamento a hipótese de que, surgido no seio de sociedades de industrialização avançada - com intervalos de desigualdade social, econômica e política muito menores do que no caso brasileiro -, o discurso internacional consolidado de AIS tenha se erigido distante das preocupações e das críticas mais fulcrais relativas às desigualdades de poder.

proponentes. Com esse ponto de partida, a participação precisaria ser legitimada por outros meios, seja porque reduz o risco de custos adicionais originados de conflitos socioambientais, seja porque imprime maior legitimidade ao projeto, seja ainda porque garante o aval de operação (‘social licence to operate’) por parte da comunidade. Seguindo essa linha, parece compreensível que a questão do conflito social seja escamoteada, omitida ou subestimada no discurso oficial da AIS103 – afinal, trazê-la à tona implicaria colocar em risco a própria viabilidade de expansão do subcampo para outros domínios que não o exigido legalmente pela regulação ambiental104.

103 Uma abordagem possível e radicalmente distinta do discurso supramencionado pode ser vislumbrada, por exemplo, na ideia de planejamento conflitual, desenvolvida atualmente pelo Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual (NEPLAC) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) do Rio de Janeiro. Apesar de delimitar seu escopo de pesquisa ao planejamento urbano em contextos de conflito, a iniciativa parece ser válida para pensar também a questão do planejamento e da regulação ambientais, na qual se insere a AIS hoje: “Em face ao conflito, o mainstream aponta para processos participativos e negociais, que têm por fulcro e fim precípuo evitar, contornar, mediar ou resolver conflitos, vistos como disfuncionais, custosos e ameaçadores. (...) O Planejamento Conflitual, ao contrário, aponta e aposta no potencial criativo do conflito, do qual emergem sujeitos coletivos que resgatam a cidade enquanto arena política, isto é, enquanto espaço em que cidadãos se encontram e confrontam para debater e arbitrar os destinos da urbe. (...) Pelo Brasil e no mundo, experiências de resistência e luta social pelo território tem gerado novas práticas de planejamento fundadas no conflito. (...) Pretende trazer para o debate acadêmico, reconhecendo seu potencial criativo e inovador, perspectivas que contribuam para a teoria crítica do planejamento urbano e a luta por cidades justas” (LABORATÓRIO ESTADO, TRABALHO, TERRITÓRIO E NATUREZA – ETTERN, s.d.). Disponível em: <http://www.ettern.ippur.ufrj.br/ultimas-noticias/217/i-encontro-de- planejamento-urbano-em-contexto-de-conflito>. Acesso em: 29 Jun. 2015.

104 Nesse sentido, os estruturadores do subcampo internacional da AIS passariam a investir na multiplicação de papéis e tarefas pertinentes à sua área de atuação - junto a agências multilaterais, corporações, organismos de financiamento entre outros setores -, embalado pelas oportunidades abertas pelos discursos ascendentes do desenvolvimento sustentável, da responsabilidade social empresarial e dos direitos humanos.

Apesar de faltarem pesquisas que identifiquem as influências pormenorizadas dessas agências e organismos na conformação do instrumento de AIS, como já realizado para a AIA e a AAE (PELLIN et al., 2011), é possível afirmar que essa influência se encontra presente tanto indiretamente, enquanto público-alvo dos interesses expansionistas dos profissionais da área, quanto diretamente, através do patrocínio das grandes conferências anuais da IAIA. O patrocínio realizado se traduziria em capital simbólico, por sua vez, alcançado através do reconhecimento público concedido - caso do Banco Europeu de Investimento, que receberia um prêmio pela promoção do desenvolvimento sustentável durante o encontro de 2015 da IAIA (INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR IMPACT ASSESSMENT, 2015, p. 05) - ou através da possibilidade de divulgação ativa de suas práticas e recomendações, talhando a imagem da entidade patrocinadora e instilando suas visões e posições no espaço de conformação do pensamento mainstream da área - caso do Banco Mundial, que organizaria o ‘World Bank Group Event’ durante o mesmo encontro (INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR IMPACT ASSESSMENT, 2015). Disponível em: <http://conferences.iaia.org/2015/world_ bank_group_event.php>. Acesso em: 21 Jul. 2015.

CAPÍTULO 3 – UMA INCURSÃO INVESTIGATIVA E ATUAL PELOS MEANDROS DA