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A superação do mito em René Girard e Paulo Freire

III. Religião e Pedagogia do Desejo

2. Mito e realidade

2.1. A superação do mito em René Girard e Paulo Freire

No segundo capítulo nós vimos como, na análise de Girard, a tradição judaico-cristã supera o mito. Girard analisa o mito a partir de sua função religiosa, nas sociedades primitivas, de “ensinar” o mecanismo do bode expiatório. Obviamente, para garantir a eficiência desse mecanismo, essa aprendizagem deveria dissimulá-lo. O mito “esconde” o mecanismo do bode expiatório que quer ensinar. E esse é justamente o segredo dessa aprendizagem. Pois as pessoas precisavam acreditar na culpa da vítima e no seu sacrifício como único meio para devolver a paz à comunidade nos tempos de crise. Além do mais, o mito confortava as pessoas fornecendo uma explicação para a crise instaurada. Mais ainda, o mito funcionava como um mecanismo que regulava a ordem social, pois determinava quais ações e atitudes poderiam ameaçar a ordem social. Assim, o mito se caracteriza como a primeira instituição humana, responsável por educar e regular a ordem social.

Devemos, porém, reconhecer a importância do mito a partir do seu aspecto pedagógico. Assim, só podemos admitir o seu lugar e a sua importância nas sociedades que não estavam ainda preparadas para formular outras soluções para as crises sociais. É por isso que René Girard afirma que “quando livre entre os homens, o sagrado arcaico é ‘satânico’; mas não as religiões arcaicas, uma vez que tentam manter esse sagrado violento fora da comunidade” (GIRARD, 2000, p.215). Ou seja, os mitos têm a sua importância, considerado o seu aspecto pedagógico de educar a humanidade a conviver com sua própria violência até que ela tenha condições de superá-la.

A tradição judaico-cristã foi responsável pela superação do mito. A “descoberta” da inocência da vítima e a compreensão do mecanismo mimético forçaram uma opção, ou pela continuidade do mecanismo vitimário ou pela defesa das vítimas. A tradição judaico-cristã fez opção pelas vítimas, elaborando uma educação do desejo que pudesse fazer frente ao mecanismo mimético na solução das crises sociais.

Todavia, cabe analisar aqui em que consiste realmente a diferença dos textos da tradição judaico-cristã em relação aos mitos. O próprio Girard aponta para as semelhanças, concluindo que os autores bíblicos, “quer na Bíblia hebraica

quer na Paixão, dão representações, exatas no essencial, de fenômenos de multidão muito análogos aos dos mitos” (GIRARD, 1999, p.17). A diferença dos textos da tradição judaico-cristã para os mitos não está na linguagem, não está na estrutura, não está na dinâmica e nem nas representações. A diferença fundamental está no objetivo desses dois tipos de texto: enquanto o mito quer dissimular o mecanismo mimético, com a finalidade de garantir a sua reprodução, os textos da tradição judaico-cristã pretendem “desmascarar” o mecanismo mimético e proclamar a inocência da vítima.

Desta forma, a proposta judaico-cristã de educar o desejo se apresenta como a primeira elaboração de uma noologia. Ou seja, forneceu elementos para possibilitar a escolha entre os dois tipos de mitos existentes: aquele que dissimulava o mecanismo mimético ou aquele que proclamava a inocência da vítima. Obviamente, para que pudesse possibilitar tal escolha, foi preciso, justamente, formular uma proposta alternativa ao mecanismo do bode expiatório, no caso, a educação do desejo.

Algo semelhante acontece com a análise que Paulo Freire faz dos mitos. Segundo Freire, o mito dissimula a realidade, impedindo que se tenha uma percepção clara dela. Nesse sentido, sua proposta de conscientização é, no fundo, uma proposta de desmitologização.

Na medida, porém, em que a consciência dos homens está condicionada pela realidade, e conscientização é, antes de tudo, um esforço para livrar os homens dos obstáculos que os impedem de ter uma clara percepção da realidade. Neste sentido, a conscientização produz a repulsa dos mitos culturais que alteram a consciência dos homens e os transformam em seres ambíguos

(FREIRE, 1980a, p.48).

Ao impedir uma clara percepção da realidade, o mito impede que a realidade seja transformada. O mito condiciona a se aceitar a realidade presente como a única possível, se tornando, assim, num dos principais instrumentos de manutenção da realidade. Este é exatamente o problema do mito: “O indubitável é que toda esta mitificação, através da escola ou não, termina por obstaculizar a capacidade crítica dos homens, em favor da preservação do ‘status quo’” (FREIRE, 1982, p.84). Assim, a crítica de Paulo Freire ao mito se caracteriza por sua crítica à realidade presente, no caso, uma realidade de grande exclusão

social. E, da mesma forma que a tradição judaico-cristã, ele atribui um caráter demoníaco ao mito. Num de seus trechos mais “agressivos”, Freire ataca as forças que impedem a verdadeira libertação das pessoas, as mesmas forças que produzem os mitos:

Nunca pensou, contudo, o Autor, ingenuamente, que a defesa e a prática de uma educação assim, que respeitasse no homem a sua ontológica vocação de ser sujeito, pudesse ser aceita por aquelas forças, cujo interesse básico estava na alienação do homem e da sociedade brasileira. Na manutenção desta alienação. Daí que coerentemente se arregimentassem – usando todas as armas contra qualquer tentativa de aclaramento das consciências, vista sempre como séria ameaça a seus privilégios. É bem verdade que, ao fazerem isto, ontem e amanhã, ali ou em qualquer parte, estas forças distorcem sempre a realidade e insistem em aparecer como defensores do Homem, de sua dignidade, de sua liberdade, apontando os esforços de verdadeira libertação como “perigosa subversão”, como “massificação”, como “lavagem cerebral” – tudo isso produto de demônios, inimigos do homem e da civilização ocidental cristã. Na verdade, elas é que massificam, na medida em que domesticam e endemoniadamente se “apoderam” das camadas mais ingênuas da sociedade. Na medida em que deixam em cada homem a sombra da opressão que o esmaga. Expulsar esta sombra pela conscientização é uma das fundamentais tarefas de uma educação realmente libertadora e por isto respeitadora do homem como pessoa (FREIRE, 1980b, p.44-5).

Todavia, é preciso considerar também que Paulo Freire não faz uma crítica abrangente ao mito. Freire não é dado a abstrações, e delimita precisamente o tipo de mito que julga necessário eliminar. Sua crítica é bem dirigida. Freire se refere ao mito como instrumento de dominação e opressão, como instrumento de manutenção do status quo. Nessa perspectiva, ele identifica quais são os mitos que sustentam a ingênua percepção de que as coisas estão do jeito que devem estar, os mitos que dizem que os opressores devem continuar sendo opressores, e estão certos ao sê-lo, e os mitos que dizem que os oprimidos devem continuar sendo oprimidos, estando certo ao se resignarem a sê-lo.

Os mitos que sustentam a posição dos opressores são: “O mito de sua ‘superioridade’, o mito de sua pureza de alma, o mito de suas virtudes, o mito de seu saber, o mito de que sua tarefa é salvar os pobres” (FREIRE, 1982, p.86). Da mesma forma, os mitos que sustentam a posição dos oprimidos são: “O mito da

inferioridade do povo, o mito de sua impureza, não só espiritual, mas física, o mito de sua ignorância absoluta (FREIRE, 1982, p.86).

Freire ainda fala de mitos da cultura dominante (FREIRE, 1982, p.41), como o mito do consumo (FREIRE, 1982, p. 68) ou mito da neutralidade (FREIRE, 1982, p.111), e mais:

O mito [...] de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade. De que todos são livres para trabalhar onde queiram. [...] O mito de que esta “ordem” respeita os direitos da pessoa humana [...]. O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser empresários – mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: “doce de banana e goiaba” é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. O mito do direito de todos à educação [...]. O mito da igualdade de classe [...] O mito do heroísmo das classes opressoras, como mantenedoras da ordem que encarna a “civilização ocidental e cristã”, Que elas defendem da “barbárie materialista”. O mito de sua caridade, de sua generosidade, quando o que fazem, enquanto classe, é assistencialismo, que se desdobra no mito da falsa ajuda que, no plano das nações, mereceu segura advertência de João XXIII. O mito de que as elites dominadoras, “no reconhecimento de seus deveres”, são as promotoras do povo, devendo este, num gesto de gratidão, aceitar a sua palavra e conformar-se com ela. O mito de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus. O mito da propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana, desde, porém, que pessoas humanas sejam apenas os opressores. O mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos. O mito da inferioridade “ontológica” destes e o da superioridade daqueles

(FREIRE, 1987, p.79).

Freire critica ainda os meios pelos quais esses mitos são divulgados. Os mitos a que se refere e os quais critica, “cuja introjeção pelas massas populares oprimidas é básica para a sua conquista, são levados a elas pela propaganda bem organizada, pelos “slogans”, “cujos veículos são sempre os chamados “meios de comunicação com as massas” (FREIRE, 1987, p.79)23.

Todavia, o projeto de libertação proposto por Paulo Freire faz uso da linguagem metafórico-simbólica. Ele encontra justamente na tradição judaico- cristã conceitos-chave no pensamento de Paulo Freire, como profetismo, páscoa e ressurreição.

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Esses meios de comunicação, que não verdade não são comunicação, mas “depósitos de conteúdos alienantes” (FREIRE, 1987, p.79) são também meios de exploração e manipulação do desejo.

A educação para a liberdade deve ser profética: “A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa” (FREIRE, 1987, p.73). Profecia e esperança são elementos fundamentais na tarefa de transformação da realidade, pois, ao criticar a realidade presente, deve também apontar para uma nova realidade. Nesta tarefa, são imprescindíveis

Profetismo e esperança que resultam do caráter utópico de tal forma de ação, tomando-se a utopia como a unidade, inquebrantável entre a denúncia e o anúncio. Denúncia de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens possam ser mais. Anúncio e denúncia não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico (FREIRE, 1987, p.73).

A educação libertadora exige também uma paixão, uma experiência da “profunda significação da Páscoa”. Indispensavelmente, “este aprendizado requer, como condição ‘sine qua’, que eles [os educadores] façam realmente sua Páscoa. Isto é, que ‘morram’ como elitistas para renascerem como revolucionários, por mais humilde que seja sua tarefa como tais” (FREIRE, 1982, p.76).

Todavia, esses conceitos, forjados na luta por libertação dos homens e das mulheres, podem também ser usados com interesses opressores. Paulo Freire chama a atenção para o fato de se evitar que isso aconteça. A Páscoa não pode ser somente uma data comemorativa esvaziada de sua profunda significação. Isso também é manipulação e condicionamento. Na realidade, os verdadeiramente engajados na luta pela libertação

Cedo percebem que a indispensável Páscoa, de que resulta a mudança de sua consciência, tem realmente de ser existenciada. A Páscoa verdadeira não é verbalização comemorativa, mas práxis, compromisso histórico. A Páscoa na verbalização é “morte” sem ressurreição. Só na autenticidade da práxis histórica, a Páscoa é morrer para viver. Mas uma tal forma de experimentar- se na Páscoa, eminentemente biofílica, não pode ser aceita pela visão burguesa do mundo, essencialmente necrofílica, por isso mesmo estática (FREIRE, 1982, p.87)

Assim, a proposta pedagógica de Paulo Freire também se caracteriza como uma espécie de noologia, ou seja, implica na rejeição dos mitos que são

usados na manutenção de uma realidade desumanizante, mas sem deixar de fazer uso de uma linguagem mítico-simbólica no anúncio de uma realidade mais humana.

Desta forma, compreendemos a proposta de superação do mito tanto em René Girard como em Paulo Freire como a necessidade de superar os mitos que geram desumanização.