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4 CULTURA, TERRITORIALIDADE E DESENVOLVIMENTO NA APA DO RIO CURIAÚ

4.2 INSTRUMENTAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS

4.2.1 A superposição APA/TQ

A concordar com Acevedo-Marin et al. (2010), a sobreposição da APA ao quilombo é palco de dúvidas e incertezas sobre o futuro das famílias que dependem dos recursos para realizar suas atividades de sobrevivência. Isso, porque, há a conjugação situacional de uma pressão externa, de diversas ordens (populacional, ecológica, jurídica, simbólica, econômica e política), e uma pressão interna marcada pela busca de fontes sustentáveis de recursos na área do quilombo. Então, compreende-se a dificuldade de serem definidas vantagens e desvantagens, para quem e para quê, nesta miscelânea institucional e territorial.

Desde as primeiras tentativas de proteção da APA do Rio Curiaú, existem conflitos. Segundo Acevedo-Marin et al. (2010), se por um lado a titulação das terras do Curiaú garantiria a propriedade e o uso comum pelas famílias, por outro, a APA instituiria processos de controle e preservação que comprometeria o modus vivendi das famílias. Prejudicaria e prejudica, portanto, o manejo dos sistemas ecológicos existentes no território que são repassados entre as gerações69.

No entanto, do ponto de vista dos benefícios socioterritoriais tal superposição acaba sendo algo positivo. Logo, ao mesmo tempo em que existe uma complementariedade, também é perceptível um afastamento ou divergência na prática dessas categorias. Elas convergem, ou beneficiam quilombolas e poder público, a partir do momento em que mecanismos de proteção, não só do meio ambiente, mas do sítio histórico e das tradições originais que ali existem, são disseminados entre os moradores e entre outros sujeitos.

Um exemplo disto cabe à funcionalidade tácita de o Quilombo funcionar como uma espécie de “camisa de força” (ACEVEDO-MARIN, 2012)70 que contém o avanço da periferia

urbana de Macapá sobre a APA. Neste caso, embora não pertença à APA, a comunidade de Extrema (remanescente de quilombo de ocupação mais recente) foi estrategicamente povoada no limite em que ocorre esta pressão urbana. Portanto, esta “cerca viva” (QUEIROZ, 2007) inibe as tentativas de invasão desordenada por sujeitos que não são quilombolas.

Entretanto, existe uma confusão administrativa por parte dos gestores local, municipal e estadual. A AMQC informa que o quilombo deveria ser visto como prevê o Título de

69 Ainda em Acevedo Marin et al. (2010), tem-se a afirmativa de que a “terra é de todos” (relato do presidente da

associação dos moradores naquela época) e, no sentido de garantir o uso comum do território pelas famílias locais, tem existência legal em certidões desde 1892, por meio do registro de posse das terras denominadas São Joaquim do Curiaú.

Reconhecimento, sendo uma propriedade privada de uso coletivo, nesse caso, dentro de uma APA. Seria equivalente a uma propriedade privada, já contemplada pela lei do SNUC, porém com uma extensão territorial de 3.321ha, todavia, não é o que acontece.

O posicionamento da AMQC em relação a essa questão é contundente. De acordo com a atual presidente desta associação, as autoridades lidam como se este espaço fosse um bairro no qual a presença de bares, festividades e balneários é um convite ao lazer desordenado, que desrespeita o conteúdo das tradições locais, que polui e prejudica toda uma comunidade. Para ela, até mesmo o acesso teria que ser de modo coordenado e que a SEMA não tem esse olhar. Por sua vez, a SEMA-AP tem uma postura mais diplomática afirmando que a sobreposição é um reforço na gestão compartilhada e que enxerga uma assistência e proximidade maior do Estado para com os quilombolas. Em suas ações, a prefeitura quase sempre desconsidera, não só a legitimidade da AMQC, mas também o ser aquilombado. Essa ocorrência é enfática quando da autorização à execução de obras e de festas sem dialogar com o CONGAR ou a AMQC.

A prefeitura municipal de Macapá emite autorizações para realização de festas na APA sem se preocupar com vistorias mais abrangentes que contemplem o entendimento do modus vivendi e operandi da população tradicional nesta UC (SANTOS, 2012). Tal situação é idêntica quando das liberações de obras ali. Isso além dos já mencionados entraves de ordem política com o governo do Estado do Amapá.

Tudo isto acontece na esfera administrativa, contudo, na dimensão cotidiana dos moradores pode-se sintetizar que eles se entendem mais como remanescentes de quilombolas. E porque, mesmo não sabendo conceitualmente as diferenças, quando indagados sobre o funcionamento de uma APA, suas falas eram associadas mais à condição da propriedade coletiva, com os esclarecimentos de que ali não se pode vender a terra e da não existência de muros. Por fim, é válido ressaltar que em meio à pesquisa de campo ficou claro o engajamento de outras comunidades pertencentes à APA na busca pelo seu reconhecimento enquanto área remanescente de quilombo; foi assim na Casa Grande e em Curralinho.

Ainda, dados da pesquisa de campo revelam que dos 23 entrevistados residentes na área de quilombo (Curiaú e Mocambo), apenas quatro (17,39%) estabeleceram claramente as diferenças entre APA e TQ. Isso permite reforçar que a maioria da população no quilombo do Curiaú percebe-se de fato como um afrodescendente e que suas ações no território correspondem às posturas tácitas de sua respectiva identidade. Logo, o viver, também, em uma UC possibilita uma impressão de que isso não é tão importante para os sujeitos ali

territorializados, pois a própria condição de Ser quilombo já pressupõe a proteção ambiental objetivada pelo SNUC.

Uma observação fundamental é que uma área de quilombo é legitimada por instituições federais como INCRA e FCP. Deste modo, a garantia de direitos sobre a terra tem apoio jurídico mais forte, pois provém da União, e não somente dos estados. Portanto, é mais vantajoso para as comunidades locais serem amparadas e terem acesso a recursos que são federais e, assim, poderem viabilizar seu desenvolvimento.