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A suspensão dos instrumentos internacionais

The Suspension of the Right of Asylum JOANA A DE OLIVEIRA

3 A consagração dos direitos de asilo e de proteção internacional no pós Segunda Guerra Mundial

4.3 A suspensão dos instrumentos internacionais

Os exemplos atrás referidos demonstram que o direito de asilo se encontra em suspenso: não pode ser exercido.

No exemplo norte-americano, de acordo com a medida aprovada pela Câmara dos Representantes, não serão acolhidos refugiados a partir do momento em que entre em vigor. No caso europeu e turco, os refugiados deverão ficar contidos em solo turco. Por último, no exemplo jordano, não se podem deslocar para fora dos limites fixados, colocando em causa o seu direito à vida e à saúde (os quais se visam salvaguardar através do direito de asilo).

Em todos os exemplos referidos, a liberdade de deslocação é colocada em causa, a pretexto de tutela da segurança interna, a liberdade de deslocação. Esta, por sua vez, é condição sine qua non para o exercício de direito de asilo: não é possível obter proteção se não se puderem deslocar para além das fronteiras do Estado onde se encontram em risco.

Suspendendo o direito de asilo, suspendem-se igualmente os instrumentos internacionais que os consagraram. Repare-se que está em causa uma suspensão parcial, mas naquilo que de mais importa: a existência do direito de asilo e, bem assim, do direito à proteção subsidiária ou humanitária ou internacional.

Sucede, porém, que esta suspensão não é válida. De facto, dispõe o artigo 58º, nº 1, alínea b), ii), da CVDTE, que “[d]uas ou mais Partes num tratado multilateral podem concluir um acordo que tenha por objeto suspender, temporariamente e apenas entre si, a aplicação de disposições do tratado se essa suspensão não for proibida pelo tratado, desde que [n]ão seja incompatível com o objeto e o fim do tratado”. Trata-se, assim, de requisitos cumulativos.

É este o caso da Convenção de Viena: em primeiro lugar, foi assinada por vários Estados; depois, apesar de não proibir, a suspensão do direito de asilo é manifestamente

incompatível com o objeto e o fim do tratado. Como referimos inicialmente, a Convenção de Viena foi o primeiro instrumento internacional no pós-segunda guerra mundial a consagrar a existência de direito de asilo. Ao elemento histórico de interpretação, acresce a sua teleologia: os Estados não podem impedir o exercício do direito, a pretexto da tutela da segurança interna.

Em segundo lugar, quanto à Carta, o enquadramento é diverso. Devemos, em primeira linha, considerar o princípio do primado. De acordo com o Acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de março de 1978, Proc. 106/77, Amministrazione delle Finanze contra Simmenthal19, “o juiz nacional tem obrigação de assegurar a proteção dos direitos conferidos pelas normas da ordem jurídica comunitária, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação efetiva, pelos órgãos nacionais competentes, de eventuais medidas de direito interno que constituíssem um obstáculo à aplicação direta e imediata das normas comunitárias”.

Por conseguinte, retira-se que a Carta faz parte do direito europeu. Assim, devemos ter em conta a jurisprudência do Acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de julho de 1964, Proc. 6/64, Flaminio Costa contra ENEL20, nos termos do qual, por um lado, “o Tratado CEE instituiu uma ordem jurídica própria que é integrada no sistema jurídico dos Estados-membros a partir da entrada em vigor do Tratado e que se impõe aos seus órgãos jurisdicionais nacionais”.

Consequentemente, o princípio do primado do direito europeu inclui o direito originário – os Tratados -, bem como os outros instrumentos que sejam firmados no âmbito da União Europeia, ou seja, também a Carta.

O princípio do primado não tem exclusivamente como destinatários os Estados- membros, mas as próprias instituições. É aqui que assenta o princípio da legalidade dos atos da União.

Assim, se não se admite a suspensão dos Tratados, também não é admissível a suspensão da Carta – mesmo que parcialmente –, porquanto esta tem a mesma dignidade e valor daqueles.

Por último, e ainda no que concerne às medidas empreendidas pelas instituições europeias, urge ter presente a jurisprudência europeia, especificamente o Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 9 de novembro de 2010 (pedido de decisão prejudicial do Bundesverwaltungsgerich – Alemanha) – Bundesrepublick Deutschland/B (C 57/09), D (C 101/09).

Nesse acórdão, em que estava em causa um pedido de decisão prejudicial, quanto à aplicação da Diretiva 2004/83/CE, decidiu-se que: (i) “o facto de uma pessoa ter pertencido a uma organização inscrita na lista que constitui o anexo da Posição Comum 2001/931/PESC, relativa à aplicação de medidas específicas de combate ao terrorismo,

em razão da sua implicação em atos de terrorismo e de ter apoiado ativamente a luta armada dessa organização, não pode suscitar automaticamente uma suspeita grave de que essa pessoa cometeu um “crime grave de direito comum” ou “atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas”; (ii) que “a constatação, em tal contexto, de que existem suspeitas graves de que uma pessoa cometeu um crime dessa natureza ou praticou tais atos está sujeita a uma apreciação casuística de factos precisos a fim de determinar se atos praticados pela organização em causa preenchem os requisitos estabelecidos pelas referidas disposições e se é possível imputar à pessoa uma responsabilidade individual pela prática desses atos, tendo em conta o nível de prova exigido pelo artigo 12º, nº 2”; e (iii) “[a] exclusão do estatuto de refugiado em aplicação do artigo 12º, nº 2, alíneas b) ou c), da Diretiva 2004/83, não está subordinada à condição de a pessoa em causa representar um perigo atual para o Estado-membro de refúgio”.

Esta jurisprudência foi notoriamente incumprida. Atento o ativismo judicial, as suas decisões, proferidas a título prejudicial sobre a interpretação dos atos adotados pelas instituições (cf. artigo 267º, primeiro parágrafo, alínea b), do TFUE) gozam da aplicação do princípio do primado. Efetivamente, o escopo dos pedidos de decisão prejudicial é a uniformização dos atos europeus, sejam eles de direito originário ou derivado, ou seja, idêntico ao princípio do primado.

Por conseguinte, incumprir a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia significa suspender a Carta, em consequência da violação das diretivas supra referidas. Em conclusão, configurando-se as atuações recentes, dos EUA, da Turquia, da Jordânia e da União Europeia como suspensão dos instrumentos internacionais, trata-se de uma suspensão internacionais, por violar, por um lado, o disposto no referido artigo 58º, da CVDTE, e, por outro, por violar in totum a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados.