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A técnica moderna como modo de exploração da natureza

2.3 A Gestell: a técnica antiga e o desvelar da técnica moderna

2.3.2 A técnica moderna como modo de exploração da natureza

Depois da abordagem feita sobre a ciência moderna e seu modo de objetivação da natureza, ou seja, a transformação da natureza em objeto pelo homem, retomemos a explicação sobre a essência da técnica

moderna, a Gestell, de modo a compreender se esta tem relação com o desencobrimento (aletheia) assim como a técnica antiga.

Heidegger menciona que toda ―técnica é uma forma de desencobrimento‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.18), ou seja, onde acontece a verdade. Mas e na Gestell mora também o desencobrimento? É esta questão sempre suscita dúvida quando analisada via concepção instrumental da técnica, ou seja, quando pensarmos simplesmente na técnica moderna caracterizada pela máquina e aparelhos. Mas Heidegger quer ir mais longe, ele quer chegar ao mais originário da técnica moderna, quer compreender a essência da técnica moderna.

Como já mencionamos, Heidegger denomina de Gestell a essência da técnica moderna e a relaciona com a ciência moderna, ou melhor, com a ciência exata da natureza. No entanto, Heidegeger aponta corretamente, para a relação existente entre a ciência moderna e a técnica moderna como sendo uma relação de necessidade recíproca, cuja ciência se apóia nos aparelhos técnicos, e a técnica se apóia na ciência.

Muito se diz que a técnica moderna é uma técnica incomparavelmente diversa de toda técnica anterior, por apoiar-se e assentar-se na moderna ciência exata da natureza. Entrementes, percebeu- se, com mais nitidez, que o inverso também vale: como ciência experimental, a física moderna depende de aparelhagens técnicas e do progresso da construção de aparelhos. É correta a constatação desta recíproca influência entre técnica e física (HEIDEGGER, 2006b, p. 18). É essa relação entre ciência e técnica, que faz com que a técnica moderna se distinga de qualquer técnica anterior. Mas, ainda assim, a técnica moderna é desencobrimento. E segundo Heidegger, é esse o traço fundamental que mostra o novo da técnica moderna.

Heidegger afirma que a técnica moderna é também um des- encobrimento, mas não mais no sentido de pro-dução (poiesis), como encontramos anteriormente na técnica antiga, agora esse des- encobrimento possui o sentido de exploração da natureza para o armazenamento.

O desencobrimento dominante na técnica moderna não se desenvolve, porém, numa pro-

dução no sentido de ποίησις31 . O desencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada (HEIDEGGER, 2006b, p. 18-19).

Deste modo, tudo que se desvela ao homem, torna-se então algo a sua disposição, e esse estar à disposição o deixa aberto para a Gestell, ou seja, à exploração. É preciso, então, deixar claro que para estarem à disposição para a exploração, a natureza, os entes foram antes objetivados pelo homem.

A disposição, segundo o autor, possui dois sentidos diversos: o primeiro diz o que se abre e expõe, ao passo que o segundo diz estar predisposto a promover alguma coisa. Não há disposição de algo apenas para descobri-la e deixá-la disponível, e, portanto, o primeiro sentido não pode funcionar sem o segundo quando nos referimos à técnica moderna. É o segundo sentido que garante que algo possa e deva ficar disponível, mas para ser usado, ou seja, estocado, armazenado; promovendo, portanto, este algo a ser explorado, garantindo assim o máximo possível de rendimento e mínimo de gastos.

Nestes termos a natureza toma forma de dispositivo, ou seja, aquilo que apenas está à disposição para ser explorado, não tendo mais valor por si mesma. O exemplo do rio Reno apresentado por Heidegger deixa clara a mudança valorativa e funcional da natureza, é no caso do exemplo, do próprio rio Reno:

A usina hidroelétrica posta no Reno dis-põe o rio a fornecer pressão hidráulica, que dis-põe as turbinas a girar, cujo giro impulsiona um conjunto de máquinas, cujos mecanismos produzem corrente eletrica. As centrais de transmissão e sua rede se dis-põem a fornecer corrente. Nesta sucessão integrada de dis-posições de energia elétrica, o próprio Reno aparece, como um dis- positivo. A usina não esta instalada no Reno, como a velha ponte de madeira que durante séculos, ligava uma margem à outra. A situação se inverteu. Agora é o rio que está instalado na usina. O rio que o Reno é, a saber, fornecedor de pressão

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hidráulica, o Reno o é pela essência da usina (HEIDEGGER, 2006b, p. 20).

A natureza se transforma em outra coisa diferente do que era; ela se transforma em dispositivo, em objeto dis-posto. Seu valor não está mais em ser o que é, mas na energia que pode produzir, da mesma maneira que, o que é, está inteiramente ligado à sua capacidade de produção. A natureza simplesmente se torna um objeto, ela está a todo o momento a disposição para.

Desta forma, a técnica moderna explora a natureza, em prol da produção. A natureza se desnatura, deixa de ser a physis grega, para ser um objeto disponível visto como capacidade, energia, estoque. Assim, estar à disposição significa nada mais que explorar.

Portanto, para Heidegger, a técnica moderna é sim um desencobrimento, mas possui como principal sentido o explorar. A técnica moderna desencobre a natureza para explorá-la, torná-la objeto disposto. E nesse desencobrimento explorador, a natureza é explorada através de vários passos: extrair, transformar, estocar, distribuir, reprocessar.

O desencobrimento que domina a técnica moderna, possui como característica, o pôr, no sentido de explorar. Esta exploração se dá e acontece num múltiplo movimento: a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o transformado estocado, distribuído, o distribuído, reprocessado (HEIDEGGER, 2006b, p. 20).

Além de todos esses procedimentos que formam o desencobrimento explorador, ele é assegurado através do controle, ou seja, através das pistas por ele mesmo abertas e asseguradas. O controle da exploração é assegurado, ―pois controle e segurança constituem até as marcas fundamentais do desencobrimento explorador‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.20).

Heidegger afirma ainda, que o modo de vigência do que está disposto para estar à disposição posteriormente, é a disponibilidade. Tal modo designa, antes de qualquer coisa, o para que do objeto, ou seja, o disponível não está mais a nossa frente como simples objeto, mas antes o identificamos como dis-ponibilidade, como no caso do avião elucidado pelo autor:

Mas o avião comercial, dis-posto na pista de decolagem, é fora de qualquer duvida um objeto. Com certeza. É possível representar assim essa maquina voadora. Mas, com isso, encobre-se, justamente, o que ela é e a maneira em que ela é o que é. Pois, na pista de decolagem, o avião se des- encobre como dis-ponibilidade à medida que está dis-posto a assegurar a possibilidade de transporte. Para isso tem de estar dis-ponível, isto é, pronto para decolar, em toda a sua constituição e em cada uma de suas partes constituintes (HEIDEGGER, 2006b, p. 21).

Ao mostrar a técnica moderna como exploração, é impossível não nos prendermos às palavras dis-ponibilidade, dis-posição, dis-positivo, como podemos perceber até aqui. Mas ―quem realiza a exploração que des-encobre o chamado real, como dis-ponibilidade? Evidentemente, o homem‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.21).

Portanto, considerada como disponibilidade a máquina não é absolutamente autônoma32, pois depende do estar disposto do disponível. Em outras palavras, a máquina depende do homem, pois estará disponível para ser usada por ele, além de estar disposta a todo o momento para ser usada por ele. Mas não é o homem que tem o poder de des-encobrir, não é ele quem faz o ente se mostrar ou se esconder. Ele apenas elabora, realiza, constrói a partir do desencobrimento do ente.

Nesta medida, o desencobrir desafia o homem ao explorar, ou seja, ―somente à medida que o homem já foi desafiado a explorar as energias da natureza é que se pode dar e acontecer o desencobrimento da dis-posição‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.21).

Fica claro, portanto que a técnica moderna desafia o homem à desafiar a natureza, pois ―sem deixar de ser um ‗des-abrigar‘, ela é um ‗desafiar‘(herausfourdern) a Natureza para que ela se mostre ou se

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Tal observação é aclarada pelo autor na medida em que retoma rapidamente Hegel e sua proposta de considerar o instrumento como absolutamente autônomo, ou seja, que se basta a si mesmo. O que deve-se observar aqui é a ênfase no termo absolutamente, pois de modo algum a máquina referente à técnica moderna poderia ser absolutamente autônoma, pois depende do homem ao menos como mãos que a fabricam, mesmo que suas regras e modo de uso sejam determinadas pelo seu próprio ser.

apresente de um determinado modo: como algo disponível para o ser humano, e nada mais‖ (CUPANI, 2012, p.42).

Esse desafiar, no entanto, não coloca o homem também como disponibilidade? Não, dirá Heidegger. ―O homem nunca se reduz a uma mera disponibilidade‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.22), mas ao contrário, ele participa da dis-posição, ele realiza a técnica. Ele participa do processo ao ser desafiado de modo mais originário do que as energias da natureza, a dis-por-se a realizar a dis-posição, ou seja, a realizar a exploração em prol da técnica, deste modo, ele não se torna mera disponibilidade, pois se relaciona com o objeto como sujeito.

No entanto, quando dizemos que o homem participa da dis- posição, isso não quer dizer que o ele esteja também no modo de disponibilidade ou que ele realize o desencobrimento em si mesmo. O fato é que o homem não está no modo de disponibilidade e nem gera o desencobrimento. Tal fato gera uma dúvida: se o desencobrimento não é realizado pelo homem, como e quando que ele ocorre? Heidegger, ao tentar dizer que o desencobrimento simplesmente se dá quando o homem é impelido a realizar alguns dos modos de desencobrimento, esclarece que o desvelar do real através de seu modo de desencobrimento vigente faz com que o homem responda ao apelo do desencobrimento, e assim, atue num dos modos de desencobrimento.

O desencobrimento já se deu, em sua propriedade, todas as vezes que o homem se sente chamado a acontecer em modos próprios de desencobrimento. Por isso, des-vendando o real, vigente com seu modo de estar no desencobrimento, o homem não faz senão responder ao apelo do desencobrimento, mesmo que seja para contradizê-lo. Quando, portanto, nas pesquisas e investigações, o homem corre atrás da natureza, considerando-a um setor de sua representação, ele já se encontra comprometido com uma forma de desencobrimento (HEIDEGGER, 2006b, p. 22).

Estamos falando do modo de desencobrimento referente à técnica moderna. Este modo desafia o homem a explorar a natureza, transformando-a em objeto de pesquisa ―até que o objeto desapareça no não-objeto da disponibilidade‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.22), ou seja,

até que o objeto apenas se torne o ―para que ele serve‖, deixando sua serventia sempre à disposição para executar a operação visada33.

Portanto, ―sendo desencobrimento da dis-posição, a técnica moderna não se reduz a um mero fazer do homem‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.22), mas é antes um desafio que se põe ao homem. Um desafio que faz com que ele disponha do real, que faz com que ele toma a natureza como disponível e a explore.

Tal modo de desencobrimento diz respeito à essência da técnica, e portanto, à Ge-stell. Heidegger conceitua a Ge-stell: ―Chamamos aqui de im-posição34 (Ge-stell) o apelo de exploração que reúne o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-ponibilidade‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.23).

E, portanto, a Ge-stell ou imposição é o apelo de exploração desafiador que toma conta do homem, quando de frente da natureza a toma como objeto, de modo a torná-la algo disponível. Isto é, na imposição, os entes já se desencobrem como algo que tem um ―para que‖ que deve ser executado, ou estar à disposição do homem para ser executado. A Ges-tell ―é um im-por-se à Natureza, para que esta se manifeste (apenas) como disponível‖ (CUPANI, 2012, p. 42)

A Ge-stell, portanto, é um desencobrir de modo especial, ou seja, é um desencobrir imposto à natureza, que sempre deve se mostrar como disponível ao homem. De modo que fica claro, que, sendo a Ge-stell a essência da técnica moderna, ―tudo quanto é ‗tocado‘ pela técnica (ou seja pela atitude técnica) se transforma em algo disponível-para (fins humanos)‖ (CUPANI, 2012, p. 43).

O estar disponível-para, no entanto, é bem diferente do que Heidegger chama efetivamente de técnico. Técnico aqui se refere às aparelhagens, às máquinas e instrumentos, e não à disponibilidade desses entes. Bem, como trabalhar com estes instrumentos é apenas pertencente ao que o autor chama de trabalho técnico. Assim, apesar do trabalho técnico ser útil à Gestell enquanto opera com os instrumentos, ele não a produz ou a constitui.

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Se retomarmos o exemplo do avião apresentado pelo autor, e que foi apresentado neste trabalho na página 70, ficará claro que o objeto, no caso o avião, se torna não-objeto, pois ele se torna disponibilidade, ou seja, é visado por sua utilidade.

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Na tradução utilizada o tradutor traduz o termo Ge-stell como com-posiçã, no entanto, como foi explicado na nota 29 da página 56-57, para traduzir o termo Ge-stell usaremos a palavra im-posição.

Im-posição35, Ge-stell, significa a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da dis- posição, como disponibilidade. Im-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna mas, que, em si mesmo, não é nada técnico. Pertence ao técnico tudo o que conhecemos do conjunto de placas, hastes, armações e que são partes integrantes de uma montagem. Ora, montagem integra, com todas as suas partes, o âmbito do trabalho técnico. Este sempre responde à exploração da im-posição, embora jamais constitua ou produza a im-posição. (HEIDEGGER, 2006b, p. 24).

Mas vale lembrar, que para Heidegger, tanto a técnica moderna enquanto Ge-stell, ou seja, o dis-por explorador, e a técnica antiga, enquanto poiesis, ou seja, o pro-duzir são diferentes, no entanto possuem a mesma essência, o des-encobrimento, ou seja, aletheia. Aqui está em voga o desencobrimento da técnica moderna que transforma a natureza em total disponibilidade, ao passo que aquele desencobrir da técnica antiga toma a natureza num sentido mais próximo ao da physis grega.

Entendendo a técnica moderna enquanto dis-ponibilidade, e entendendo que ela não pode ser reduzida a uma atividade humana ou um meio desta, podemos então descartar a determinação meramente instrumental, na qual a técnica é um meio para um fim. A técnica moderna é antes a dis-ponibilidade para a exploração; é sempre estar disponível-para; é um conhecimento operacional, que certifica que o ente estará disponível para; é a própria finalidade do ente, que faz o objeto em si sumir, permanecendo apenas a sua dis-posição.

Vale lembrar ainda, que ―o homem da idade da técnica vê-se desafiado, de forma especialmente incisiva a comprometer-se com o desencobrimento‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.24), fator importantíssimo para o surgimento da técnica e que aparece inicialmente nas ciências modernas naturais (ou experimentais), pois é o homem que lida com a natureza tomando-a como reservatório de energias, é este homem que

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age como dispositivo mais originário para dis-por da natureza como objeto de exploração.

Para a natureza revelar-se como disponibilidade, a essência da técnica moderna depende das ciências modernas naturais. Afinal, são as ciências modernas naturais que condicionam o modo de ver a natureza enquanto ―um sistema operativo e calculável das forças‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.23). Isto significa que, são as ciências naturais modernas que fazem com que a natureza se exponha como um sistema de forças. E, somente porque essa relação de condicionamento entre ciências e técnica se faz possível, é que se faz também possível operar com a natureza, e dis-por dos experimentos científicos para testar se a natureza confirma ou não tais condições propostas pelas ciências.

A teoria da natureza, proposta pela física moderna, não preparou o caminho para a técnica, mas para a essência da técnica moderna. Pois a força de exploração, que reúne e concentra o desencobrimento da disposição, já está regendo a própria física, mesmo sem que apareça, como tal, em sua propriedade (HEIDEGGER, 2006b, p. 25). Por fim, o autor nos chama a atenção para o porquê usualmente relaciona-se a técnica moderna com o simples uso das ciências naturais modernas: ―A técnica moderna precisa utilizar as ciências exatas da natureza porque sua essência repousa na im-posição‖ (HEIDEGGER, 2006b, p.26).

Exatamente porque as ciências naturais transformam a natureza em objeto, e por isso em algo que sempre está disponível, é que o modo de des-encobrimento da técnica moderna repousa na im-posição feita à natureza para se colocar como disponibilidade, como algo disponível para ser explorado.