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A técnica antiga como produção

Nas exposições feitas nos capítulos anteriores, é mais do que evidente que os dois autores diferem a técnica antiga da técnica moderna. Tal fato é muito interessante, afinal dois autores perceberam o mesmo, que havia diferenças entre a técnica antiga e a técnica moderna. Heidegger vai apresentar essa diferença no que condiz com a questão da essência da técnica, ou seja, do ser da técnica, ao passo que Ellul irá apresentar essa diferença no que condiz com a relação entre técnica e sociedade.

Mesmo que o foco seja diverso, é vidente que na concepção de Ellul poderemos encontrar também inclusa a concepção de Heidegger, pois o conceito de técnica antiga de Heidegger é ontologicamente anterior à concepção de técnica antiga relacionada à sociedade proposta por Ellul. Assim, podemos dizer que o inverso não procede, ou seja, a concepção de Ellul não pode estar inclusa na concepção de técnica antiga de Heidegger.

Heidegger tenta responder a pergunta ―o que é a técnica?‖ e se depara com duas respostas, que serão essenciais para o entendimento da técnica antiga enquanto pro-dução, como já vimos no capítulo um.

Ele se depara com a resposta de que a técnica é um meio para um fim, e de que a técnica é também uma atividade. Tais definições reportam a técnica à instrumentalidade, bem como também é um conjunto que reúne em si a produção, o uso dos instrumentos e máquinas.

A definição instrumental de técnica, no entanto, só é considerada por Heidegger como correta, mas não verdadeira, o que o faz se perguntar pela essência, e, portanto, pelo mais verdadeiro em relação à técnica.

Se perguntando pelo o que é instrumentalidade, ele nos explicará que é a causalidade que nos leva a instrumentalidade, ou seja, o meio é o que se faz para se chegar a algum resultado, e o fim desejado é o que determina esse meio. Para usar as próprias palavras do autor, a causa é aquilo que provoca um fim, e, portanto, ―onde se perseguem fins, aplicam-se meios, onde reina a instrumentalidade, aí também impera a causalidade‖ (HEIDEGGER, 2006b, p. 13).

O conceito de causa se torna central na abordagem de Heidegger para definir a técnica, pois é através do conceito de causa e da redução

das quatro causas aristotélicas à causa eficiente que ele chega ao conceito de poiesis.

Na causa eficiente, segundo Heidegger, já estariam inclusas as outras três causas, a saber: a causa material, a causa formal e a causa final. Afinal, a causa eficiente determina o ―para que‖ que as outras causas ajudam a indicar, e, portanto, a causalidade determinaria a técnica como um meio para um fim, ou seja, algo que serve para obter resultados.

São as quatro causas que fazem com que algo apareça, aconteça, pois proporcionam um ―para que‖. Tal aparecimento pode ser entendido como poiesis.

A poiesis é o âmbito do produzir que diz respeito não somente ao produzir artesanal, mas também ao produzir da natureza. O produzir artesanal depende das mãos do artesão para se fazer aparecer, enquanto o produzir da natureza (physis) se auto-produz. Produzir aqui deve ser entendido como a força que impulsiona o que cresce na natureza e o que é confeccionado pelo artesão.

Como Heidegger sempre busca a revelação da verdade, ele relacionará a pro-dução, com a idéia de desencobrimento (aletheia).

Para ele a produção se dá através do desencobrimento de algo, pois é no desencobrimento que o ente se mostra como as quatro causas. Portanto, é ―no desencobrimento que se funda toda a pro-dução‖ (HEIDEGGER, 2006b, p. 17).

Após compreender o termo grego poiesis como pro-dução fundada num desabrigar (aletheia), Heidegger tentará compreender o termo grego techne que dá origem a palavra técnica.

Lembrando que a techne grega pode ser entendida no âmbito da poiesis, e, portanto como produção que pertence ao fazer artesanal e artístico, e no âmbito da episteme, e, portanto, como abertura para o conhecer, é que se faz possível compreender a técnica antiga como um produzir que desencobre o ente.

Assim, a técnica antiga pode ser entendida como produção, mas uma produção que desencobre o ser do ente produzindo-o. E, portanto, ela designa a produção que tem como motor a ação, pois ao almejar um produzir que desvela, não pode se referir ao produzir da natureza que se produz a si mesma, e que, por isso não desvela nenhuma verdade ao homem.

Assim, Heidegger conceitua a técnica antiga como produção que desoculta, pois nestes dois modos, a produção e o desocultamento moram a essência da techne. E, enquanto produção que desoculta, a

técnica antiga é um modo de cuidado com o ente que o homem produz, e com a natureza que faz parte de sua vida.

Após tal apresentação, devemos então relembrar a concepção de técnica antiga de Ellul, de modo que se possa elucidar a relação existente entre essas características e o conceito de técnica antiga de Heidegger, que tem como finalidade apontar para o mais essencial da técnica antiga.

Para compreender as características que Ellul nos apresentará como referentes à técnica antiga, é preciso que entendamos o conceito de operação técnica que ele também expõe.

Ellul entende por operação técnica o método de trabalho para alcançar determinado fim, ou seja, é o método para resolver um determinado problema. Vale ressaltar que tal método não muda de natureza da técnica antiga para a técnica moderna, sempre operando em prol da eficácia, apesar da última ter ao seu serviço a ciência.

Tendo em mente este conceito de operação técnica como aplicação de um meio para um fim, e relembrando que Ellul afirma que não podemos mais definir a técnica atual como manuseio de instrumentos, ou os próprios instrumentos, podemos afirmar que a definição que o autor julga ser a definição de técnica antiga, condiz com o manusear de instrumentos, de tal modo que ele destaca três características da técnica antiga: a aplicação da técnica em domínios limitados, a invariabilidade dos meios para atingir um determinado fim e a propagação lenta e local das técnicas. Estas três características da técnica antiga são observadas por Ellul através da relação técnica e sociedade.

A primeira característica diz que as técnicas nas sociedades primitivas eram aplicadas a domínios limitados, e limitados aqui se refere a número, ou seja, não havia técnicas sendo empregadas em todas as partes da sociedade primitiva, mas apenas em alguns domínios. Neste caso, podemos destacar como sendo a principal técnica empregada a magia, e com o seu sumiço, a produção.

A importância da técnica não era primordial, e, exatamente por isso, os homens preferiam ficar uns com os outros ao invés de se preocuparem com fins econômicos, em gerar mais renda. Produzir o essencial para a sobrevivência era suficiente, pois eles preferiam ficar com a família a trabalhar, visto que o trabalho era uma condenação e estar com as pessoas uma alegria, e, portanto, era melhor trabalhar menos e consumir menos.

A invariabilidade para atingir um fim aponta para o caráter obsoleto dos instrumentos, ou seja, não havia muitos instrumentos para

realizar determinadas tarefas, existia um certo instrumento que ―servia para‖ determinado fim, cabendo ao sujeito que manuseava tal instrumento o emprego de sua criatividade e habilidade para empregá-lo de algum modo diverso caso ele não resolvesse tal problema. Além disso, não havia preocupação dos indivíduos para o aperfeiçoamento dos instrumentos, visto que eles deviam ser utilizados até o ―fim‖, até não poderem mais ser utilizados.

Deste modo, a invariabilidade dos meios para um fim coloca a ênfase no homem, visto que a empregabilidade de um instrumento dependia mais do dele (indivíduo) do que da própria técnica.

Já a propagação da técnica de modo lento e local, tem a ver com a especificidade dos grupos sociais existentes. Devemos dizer que os grupos sociais permaneciam fechados, cada grupo não se comunicava tanto com outro, o que tornava a imitação ou transmissão da técnica lenta. Além do mais, cada grupo possuía uma determinada técnica que era um reflexo dos elementos naturais do local onde estava estabelecido, e dos seus costumes. Assim, uma técnica não era facilmente transmitida porque representava todos os valores de uma determinada civilização, ou seja, a técnica era ―subjetiva em relação à civilização‖ (ELLUL, 1969, p. 72).

Dizendo as três características apresentadas por Ellul como características pertencentes à técnica antiga, já dizemos a técnica antiga como produção no sentido heideggeriano, pois é um modo de produção que produz algo, tendo em vista a sua serventia, tendo em vista o seu ―para que‖, de modo que nele já se mostre como desocultamento.

Dizendo que a técnica antiga não possui variabilidade, que é limitada à domínios específicos, e que sua propagação é lenta e local, já se pressupõe que a técnica antiga de Ellul seja uma produção que vise o cuidado.

O homem que produzia, que empregava os meios dos quais dispunha sem se preocupar com lucros, pode ser reconhecido como o ―homem artesão‖, que produzia o necessário para sua existência e que prezava as outras relações que existem a sua volta, que prezava a relação com a sua família e não somente a relação instrumental com o mundo.

O modo de pro-dução que desvela o ente produzindo-o, é o modo de produção da técnica antiga, pois ao produzir o homem já sabia a serventia que tal objeto teria, ou já sabia o porquê estava empregando tal instrumento para obter um determinado fim. Produzindo, o homem desvelava o que era o mais necessário para sua sobrevivência, e não almejava mais. E é por isso, que a invariabilidade, a propagação lenta e a delimitação de domínios aparece como características da técnica

antiga apontadas por Ellul. Porque o homem que emprega o modo de produzir da técnica antiga tinha uma relação diversa com o próprio produzir e com o mundo no qual estava inserido.

Portanto, nas características apresentadas por Ellul como características da técnica antiga, e que se referem à relação existente entre o homem, a técnica e a sociedade, são ilustrações do modo mais originário da técnica antiga, do modo de produção como desencobrimento, de modo que o conceito de pro-dução que desencobre o ser produzindo-o só pode ser anterior (ontologicamente) a qualquer manifestação dessa produção no âmbito social58.