• Nenhum resultado encontrado

1 A PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA E O IMAGINÁRIO

1.5 A TÓPICA DO ESPAÇO AUDIOVISUAL BRASILEIRO

Acreditamos ser esclarecedora uma visão que se baseia no esquema Trabalharemos baseados no esquema da tópica, proposto por deDurand (2004), a fim de compreender as utilizações do imaginário, feitas pelos agentes de uma sociedade e em um momento específico. A tópica cria um diagrama que situa os elementos complexos entre o inconsciente e o consciente desse

grupo, em uma dinâmica que move as idéias presentes no imaginário através de um espaço temporal em uma sociedade específica.

Em nosso caso, estamos olhando para as construções imaginárias do produtor cinematográfico, no espaço audiovisual brasileiro, no período contemporâneo.

Se imaginarmos que o círculo mostrado a seguir representa um conjunto imaginário de uma época de uma sociedade, a fatia inferior, mais profunda, representa o “inconsciente coletivo”; no meio está o “jogo social” e, no topo, o “instituído”.

Esta organização é uma proposição nossa, para dar conta do estudo do espaço audiovisual brasileiro e manter uma coerência com nosso referencial teórico. De qualquer maneira, vale destacar que na tópica original de Durand (2004, p. 92) as fatias são chamadas de id, ego e superego. Elas coincidem com as duas pontas do trajeto antropológico sendo a primeira, a do inconsciente, localizada na ponta inata do percurso, enquanto as outras duas estão na ponta “educada”.

Fonte: Elaboração da autora da presente tese, baseada na Tópica proposta por Gilbert Durand (2004).

Figura 1: Tópica do espaço audiovisual brasileiro

O “inconsciente coletivo” está na ponta originária do trajeto, sendo a fatia inferior, a mais profunda. Nesse campo, os esquemas arquetípicos provocam as imagens arquetípicas, ou seja, através de imagens ou idéias embaçadas, desordenadas, mas não menos precisas porque elas vêm do fundo, pulsões são formadas quase que em seu estado de origem. É o arcaico, aquele sentimento que vem das profundezas, mas que sempre está presente na sociedade.

O espaço do “jogo social”, tal como na proposta de Durand, “é a zona das estratificações sociais onde são modelados os diversos papéis conforme as classes, castas, faixas etárias, sexos e graus de parentesco ou em papéis valorizados e papéis marginalizados, de acordo com o corte vertical do círculo por um diâmetro” (2004, p. 94). O autor salienta que “enquanto as imagens dos

Inconsciente coletivo Jogo social Instituído D I M E N S Ã O T E M P O R A L

papéis positivamente valorizados tendem a se institucionalizarem num conjunto muito coerente e com códigos próprios, os papéis marginalizados permanecem num Underground mais disperso com um ‘fluxo’ pouco coerente” (2004, p. 94). Sabemos que, mesmo marginalizados, os papéis do Underground são motivações anárquicas das mudanças sociais e do mito condutor; por isso, conservam a sua importância. Ao mesmo tempo, no decorrer do percurso histórico, um papel pode ser anárquico em um período e conservador em outro. Durand exemplifica com o papel de soldado: em alguns momentos eles representam o conservadorismo e a organização de uma sociedade e, em outros, suscitam os pronunciamentos de revolução.

Quando usamos o termo “jogo”, estamos falando dessa distração individual e coletiva que nos faz partilhar tudo – a competição, o simulacro, o político, enfim, todos os elementos presentes na vida social ou na comunhão social.

Na fatia superior está o “instituído”. “Ele organizará e racionalizará em códigos, planos, programas, ideologias e pedagogias, os papéis positivos do ‘ego’ sociocultural” (DURAND, 2004, p. 95). Isso significa que as idéias que forem aceitas e sancionadas na fatia do jogo social emergirão até a sua instituição, localizada no topo da tópica.

A linha vertical que divide o círculo em duas metades sistêmicas representa “os dois hemisférios das contradições sociais que constituem uma sociedade”. O círculo ganha então dois lados opostos que agem em oposição, mas em conjunto, formam o todo do grupo social.

A isso, assim como Durand, acrescentamos uma terceira dimensão, dessa vez temporal, de onde “partimos do pólo inferior do hexagrama, cujo eixo é o diâmetro vertical, percorremos a periferia do círculo no sentido dos ponteiros do relógio e subimos pela esquerda ao longo do círculo” (2004, p. 95). Esse movimento representa que, no início, os fluxos advindos do “inconsciente coletivo” são desordenados, mas, aos poucos, eles se regularizam na parte mediana do círculo de acordo com os vários papéis existentes e desempenhados no “jogo social”. Depois disso, tendem a terminar

empobrecidos por adotar uma lógica em curso, na fatia superior. No “instituído”, o alógico do imaginário perde sua espontaneidade por causa das codificações. Os conteúdos imaginários de uma sociedade nascem em um fluxo confuso durante um período temporal; no entanto, aos poucos, eles se racionalizam através de uma “teatralização” de “usos legalizados”, positivos ou negativos, “os quais recebem suas estruturas e seus valores das várias ‘confluências’ sociais (apoios políticos, econômicos, militares, etc) perdendo assim a sua espontaneidade mitogênica em construções filosóficas, ideologias e codificações” (DURAND, 2004, p. 96). Isso está presente durante o trajeto da tópica.

A tópica serve como um olhar balizado pela via que conduz do vital ao cultural dentro de um espaço específico, ou, em outras palavras, do instituinte ao instituído. A expressão “trajeto antropológico”, de autoria de Durand, dá conta, justamente, do entendimento da importância da “incessante troca que existe no plano do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimilações com as intimações objetivas provenientes do meio cósmico e social” (2002, p. 41).

Consideramos de forma muito produtiva para a compreensão dos referenciais imaginários da produção cinematográfica brasileira o entendimento desse fluxo dinâmico. a “alógica do imaginário”. Se o racionalismo evitou a inclusão de um terceiro elemento na sua lógica, baseado fortemente na dialética, as novas teorias do imaginário partem de um conceito de pluralismo que vem se desenvolvendo e, aos poucos, liberando-se do pensamento excludente do racionalismo ocidental.

O “pluralismo” não parte de uma classificação simples de seus elementos a partir de um gênero comum. Enquanto o silogismo ocidental baseia-se sobre as formas “a priori” da percepção para indicar uma identidade localizada e separada do resto, ou seja, ele “fixa seu objeto no tempo e o circunscreve no espaço”, o pluralismo vai observar a existência de fenômenos que “se situam num espaço e num tempo completamente diversos. ”.Assim, as idéias que compõem um imaginário possuem o seu próprio tempo e, como

explica Eliade (1963), o passado e o futuro dependem entre si e os eventos são passíveis de reversão, de uma releitura e de rituais repetitivos.

Podemos falar, ainda, da conivência dos contrários onde um elemento existe pelo outro. A pluralidade considera que cada termo antagonista precisa do outro para existir e se definir. É o que Durand denomina de sistema, baseado no princípio do terceiro dado.

Com efeito, permitir um conjunto de qualidades intermediárias significa permitir a A, e a não-A, participar em B. Temos A = A + B e Ä + B = Ä. B coloca uma ponte entre A e Ä. Por exemplo, se Ä = animal (um boi) e A = não-animal (um arado), o ‘terceiro dado’ pode estar associado ao boi e ao arado. [...] Este ‘terceiro dado’ não representa toda uma classe inclusiva (um gênero vizinho) como na lógica clássica, mas uma qualidade que pertence a A e a Ä e que denominamos + B (2004, p. 83).

O que propomos, assim como a Sociologia Compreensiva e as Teorias do Imaginário, é uma integração entre a razão e o imaginário e, também, o entendimento de que o imaginário vem antes dos sentidos próprios. O elemento mais universal do imaginário é o seu fundo e não a sua forma, pois “não é a forma que explica o fundo e a infra-estrutura, mas, muito pelo contrário, é o dinamismo qualitativo da estrutura que faz compreender a forma” (DURAND, 2002, p. 358).

Poderíamos ampliar o nosso entendimento da tópica a partir da consideração de que vários mitos estão sobrepostos em uma cultura. Alguns deles são os “atualizados”, aqueles que se manifestam à luz do dia através da lógica da razão causal e da narrativa descritiva. Outros mitos são “potencializados”, esses se manifestam na sombra e, por isso, conservam as possibilidades da “alógica” do mito. A mesma diferenciação pode ser feita entre um mito que se manifesta e um mito latente. O mito manifesto se encaixa no conjunto de valores e ideologias oficiais. O latente não, ele é marginalizado e entra na clandestinidade. No entanto, os dois imaginários – o manifesto e o latente – precisam de um movimento que os leve para a mudança. Não usaremos esses conceitos na análise da tópica do espaço audiovisual brasileiro, mas eles são úteis na medida em que nos oferecem mais um

referencial para a compreensão do fluxo do imaginário presente em um tempo, em um espaço e nas práticas cotidianas de um grupo.

As noções e entendimentos que formaram a tópica do espaço audiovisual brasileiro estarão presentes, a seguir, no desenvolvimento da nossa pesquisa. Considerando este fluxo de construções imaginárias, suas faixas formadoras e a dimensão temporal, começamos então a olhar para o espaço audiovisual brasileiro e as construções imaginárias do produtor cinematográfico. Esperamos com isso, compreender o movimento instituinte – instituído da produção cinematográfica, ou as “idéias-força”, conforme noção de Maffesoli (2001), e perceber a atuação dos agentes neste processo.

A tópica aplicada ao estudo da produção cinematográfica brasileira localiza o círculo na sociedade brasileira, mais especificamente no espaço audiovisual brasileiro. O tempo é o período contemporâneo – aquele que chamamos de “período da consolidação da cinematografia brasileira”, iniciado em 2000 e precedido pelo “período da retomada”. Detalharemos tal denominação no capítulo 2. Buscamos identificar o imaginário presente na atuação dos agentes produtores de cinema e destacar as “idéias-força” que povoam cada uma dasas instâncias fundadoras da tópica – o “inconsciente coletivo”, o “jogo social” e o “instituído”.

As “idéias-força” são elementos internos do imaginário que dão alma e vida, num determinado momento, a uma situação, a um fenômeno, a uma entidade. O mais particular dessas “idéias-força” é que elas garantem, em profundidade, “o vínculo existente entre o simbólico, a imaginação, e até a vontade ou a intuição antecipada das coisas que estão se realizando”. Em resumo, “elas percebem o estado nascente dos fenômenos sociais em sua globalidade” (MAFFESOLI, 2001, p. 57). (p. 57-58). Por estarem vinculadas ao estado nascente, ao que é vital, são portadoras também de um grande poder motivador, que fica expresso no termo “força”. Diferenciadas dos outros pensamentos, por essa força, elas são os principais referenciais que organizam o movimento instituinte – instituído. Podemos dizer ainda que elas estão em sintonia com a articulação complexa entre o material e o imaterial.