• Nenhum resultado encontrado

A tartaruga e a boneca, de Márcia Leite

3 RETRATOS DA LEITURA NO BRASIL: UM OLHAR SOBRE AS AÇÕES

4.3 NARRADOR HETERODIEGÉTICO

4.3.2 A tartaruga e a boneca, de Márcia Leite

A tartaruga e a boneca (Figura 6) é uma

das obras de Márcia Leite, que nasceu em São Paulo em 1960 e estreou na literatura infantil e juvenil em 1986, com o livro A barriga. Além de escrever e publicar há mais de duas décadas livros infantis e infanto-juvenis, a escritora é educadora e autora de coleções didáticas na área da Língua Portuguesa. Na categoria juvenil, ganhou o Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira com o livro Aqui entre nós, que também recebeu o selo de altamente recomendável para jovens

pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ e foi traduzido para o alemão. A autora também foi duas vezes finalista do Prêmio Jabuti, com os títulos Olívia tem dois papais e Do jeito que a gente é. Escrever livros foi a maneira que Márcia encontrou para se humanizar, dialogar com suas inquietações e tentar compreender o sentido da vida. Daí a importância do afeto, dos relacionamentos e das transformações serem temas presentes em suas obras.

4.3.2.1 A história

A história, que tem como protagonistas uma tartaruga e uma boneca, traz ao leitor uma história de amizade, confiança e, sobretudo, de esperança. No enredo, dois seres totalmente diferentes um do outro, uma tartaruga e uma boneca que caiu por acidente no fundo do mar, encontram-se e tornam-se grandes amigos.

A tartaruga e a boneca desenvolve-se ao longo de 33 páginas e segue a estrutura

narrativa proposta por Adam (1987), conforme segue:

1) estado inicial (EI): uma jovem tartaruga marinha nada nas profundezas dos oceanos e percebe que alguma coisa estranha mergulha em direção ao fundo do mar. 2) força transformadora (FT): ao se aproximar, a tartaruga percebe que é uma boneca e, vendo seu desespero, nada o mais rápido que pode e consegue alcançá-la “antes que ela se machucasse no rochedos de coral.” (LEITE, 2008, p. 8).

3) dinâmica da ação (DA): a boneca conta sua história à tartaruga, do quanto era feliz antes de cair no mar. Enternecida com o que ouve, dispôs-se a ajudá-la a procurar

Figura 6 - Capa do livro

sua dona. Passam, então, a procurar pela menina, que deveria estar em alguma praia. As duas visitam uma infinidade de praias. “Mais de cem? Mais de quinhentas? Mais de mil? [...] Tantas praias, tantos mares, tantas viagens. O tempo foi passando: dez, vinte, cinquenta, oitenta anos de busca.” (p. 19) e a bonequinha “perdendo a cor, a roupa, um dedo, um olho e até um pouco de cabelos.” (p. 20).

4) força equilibrante (FE): um dia, finalmente, a boneca quase desaba de alegria, ao ver uma menina parecida com sua dona se aproximar. A garota, contudo, segue seu caminho, conversando com a boneca que carrega em seu colo.

5) estado final (EF): a tristeza toma conta da boneca. Ela olha para a velha tartaruga, que, como sempre, está a sua espera à beira da praia, e descobre quem é sua verdadeira dona. A busca termina; elas têm uma à outra e nunca mais se separam.

O mundo do faz de conta é uma constante nessa história, cujas personagens nem nome possuem, ou seja, bem poderia ser aquela boneca esquecida no fundo do baú ou abandonada em algum lugar. Salientamos, também, a imprecisão do tempo e do espaço da narrativa, remetendo aos tradicionais contos de fadas: “Uma jovem tartaruga marinha nadava nas profundezas dos oceanos quando percebeu que alguma coisa mergulhava lentamente em direção ao fundo do mar, não muito perto mas também não muito longe de onde ela estava.” (p. 6). Os fatos, por sua vez, ocorrem sequencialmente, respeitando a cronologia e adequado aos potenciais leitores, que, no geral, pelo seu desenvolvimento cognitivo, ainda não percebem as relações de causa e efeito.

Ao lermos essa narrativa, podemos facilmente fazer alusão a O soldadinho de chumbo e A pequena sereia, de Hans Christian Andersen, em que os diferentes se aproximam. Aqui, contudo, há final feliz, seguindo tendência romântica.

4.3.2.2 O narrador e a tessitura com vistas ao narratário

A história chega até o leitor pela voz de um narrador heterodiegético, que, aliás, é a única voz ao longo de toda a narrativa. Mais do que apenas contar o que viu, tal qual um viajante que regressa e compartilha o que vivenciou, fazendo alusão a Benjamin (2007), o narrador compartilha com seu leitor, que é tão pequeno quanto as próprias personagens, os pensamentos e sentimentos da boneca e da tartaruga.

Uma jovem tartaruga marinha nadava nas profundezas dos oceanos quando percebeu que alguma coisa mergulhava lentamente em direção ao fundo do mar, não muito perto, mas também não muito longe de onde ela estava.

A coisa parecia uma pessoa, mas era muito menor que um homem ou uma mulher. Olhando melhor, aquela coisa parecia uma criança, mas era muito menor que um menino ou uma menina...

Chegando mais perto, a tartaruga percebeu que se tratava de uma boneca – (p. 6 - grifo nosso).

Como podemos perceber, conhecemos, e pouco, a boneca, uma coisa parecida com gente, pelo suposto olhar da tartaruga, que, segundo o narrador, é jovem e marinha. O narrador atua como câmera e vai focalizando, ajudando o leitor a ver. É ele quem apresenta ao leitor as impressões que a tartaruga tem acerca do “ser” que mergulhava em direção ao fundo do mar, o que nos revela sua visão ampla frente ao narrado. No entanto, em momento algum, diz-nos como mesmo era essa boneca, não tem adjetivação, não sabemos se era nova ou velha, grande ou pequena, preta ou branca, por exemplo, o que podemos considerar um vazio do narrador para o leitor preencher.

Mais do que apenas contar o que vê, o narrador tem uma visão ampla, é onisciente, isto é, sabe mais que qualquer outro alguém acerca da história e das próprias personagens, revelando-nos tanto o que é visível aos olhos como aquilo que é apenas sensível ao coração. Nesse sentido, podemos considerá-lo centralizador, prevendo um leitor iniciante, frágil, cujas ações precisam ser monitoradas. Como exemplos, citamos:

“Não seria nada fácil...” – pensava a tartaruga.

“Não era tão impossível...” – pensava a boneca. (p. 16 - grifo nosso)

Naquele momento, a velha boneca do mar sentiu-se como um peixe morto na areia ou um toco de madeira trazido pela maré, uma coisa que ninguém queria. (p. 25 - grifo nosso).

Em A tartaruga e a boneca, além da função narrativa, seguindo os estudos de Genette (s/d), o narrador tem a função de regência, ou seja, é o responsável pela organização interna do texto, uma vez que é a única voz audível. A postura do narrador ao longo da narrativa sugere um leitor iniciante, cuja leitura precisa, ainda, ser conduzida, mediada, sob o risco de não ser abandonada. O leitor precisa, nesse sentido, aderir ao narrado para acompanhar as aventuras das personagens pelos mares e oceanos na busca pela dona da boneca.

No que diz respeito à construção textual, destacamos que, conforme sugerem os estudos de Engelen (1995) como sendo o indicado para crianças, as frases são, no geral, curtas, estão na ordem direta e na voz ativa, o que contribui para a leitura e compreensão dos leitores a quem a obra se destina. Como exemplos, citamos:

A coisa parecia uma pessoa, mas era muito menor que um homem ou uma mulher. Olhando melhor, aquela coisa parecia uma criança, mas era muito menor que um menino ou uma menina... (p. 6).

A tartaruga e a boneca perderam a conta do número de praias que visitaram. Mais de cem? Mais de quinhentas? Mais de mil? (p. 19).

Importante considerarmos a transformação da personagem boneca ao longo da narrativa. Inicialmente, o narrador refere-se a ela como coisa – “A coisa parecia uma pessoa” (p. 6), para depois transformá-la em “miniatura de gente” (p. 14). Muito mais que mera substituição vocabular, as referências à boneca indicam-nos uma mudança de olhar do narrador em relação à boneca, que de uma coisa insignificante passou a ser como gente em miniatura, com sentimentos.

O ser de papel que conduz o leitor pelas veredas da narrativa também valoriza a sabedoria dos mais velhos, “acumulada nos longos anos de vida” (p. 30). Ao olhar para a boneca, mesmo sem uma palavra, a tartaruga já entendeu o que ela queria dizer, tal a cumplicidade das duas amigas, que agora tinham uma à outra.

Nesta narrativa, o narrador é soberano, ou seja, em momento algum passa a palavra a outrem; cabe ao leitor acompanhar suas pegadas, pois tudo passa pelo seu olhar. Como leitores, temos acesso à narrativa apenas pela sua voz, o que a princípio pode parecer autoritário, mas se levarmos em consideração seu narratário, pode ser uma estratégia discursiva para o leitor incipiente não se perder na leitura.