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O narrador e a tessitura com vistas ao narratário

3 RETRATOS DA LEITURA NO BRASIL: UM OLHAR SOBRE AS AÇÕES

4.1 NARRADOR HOMODIEGÉTICO

4.1.1 O gnomo sinote e o treco na glote, de Sylvia Orthof

4.1.1.2 O narrador e a tessitura com vistas ao narratário

Em “O gnomo Sinote e o treco na glote”, a história chega ao leitor pela voz de um narrador homodiegético, seguindo os estudos de Genette (s/d), ou seja, viveu como personagem a história que conta, mas não é o protagonista. Trata-se de um gnomo “menor que um dedal” (p. 25), que já começa o texto se apresentando de forma simpática, com versos curtos e rimados, como que a imitar a fala espontânea da criança:

Sou o gnomo Sinote, sempre fui sem juízo. Na garganta eu morava, no engasgo da glote eu tossia e cantava e dava pinote! Eu puxava as cordas dos sinos vocais

e me enrolava nos uis e nos ais... demais! (p. 24)

Levando em consideração o pequeno leitor, a identificação já se dá no início do texto, quando, de forma lúdica e melódica, o narrador, que também é pequeno, apresenta-se. Nesse sentido, destacamos, no texto, a instalação de uma subjetividade, ou seja, a personagem, que é pequena, tem nome, traços físicos, habilidades, características próprias do leitor infantil. Sinote, já na abertura da narrativa, em sua apresentação, deixa claro que a história que vai contar já aconteceu, ou seja, no presente (Sou o gnomo Sinote – grifo nosso), narra a história que viveu no passado (sempre fui sem juízo. / Na garganta eu morava, / no engasgo da glote / eu tossia e cantava / e dava pinote! – grifo nosso), o que dá credibilidade ao narrado. Essa oscilação temporal é percebida no texto pelo emprego dos tempos verbais, ora no presente, ora no passado.

A musicalidade inicial perdura ao longo do texto, especialmente pelo uso de aliterações, aspecto a ser considerado, levando em conta o público a que a obra se destina:

Um gnomo badalante, badalado, desajuizado de blém-belelém! (p. 25);

Quando Ludymilla diz bom dia, o sininho da goela dela, lá dela, se esgoela e toca um pedaço da Flauta Mágica de Mozart! (p. 25);

Certas outras fadas, enfadadas fadas de sinos enferrujados, fuxicavam, rebolavam de inveja de Ludymilla. (p. 26).

Como leitores, temos a sensação de estar bem próximos ao gnomo, ou seja, é como se ele, no presente, estivesse conversando com o leitor e contando-lhe a história: “Eu era o

guardador da voz de cristal da fada, ora!” (p. 25); “Isso foi terrível, porque a estrela tinha uma eletricidade astral, o sininho de prata era de metal, né, e deu um curto na instalação!” (p. 26). O uso da expressão “ora” demarca ao leitor, mais uma vez, não se tratar Sinote de qualquer gnomo, ou seja, era especial. Já ao fazer uso do vício de linguagem “né”, o narrador intensifica a oralidade e aproxima-se ainda mais do leitor; é como se lhe estivesse perguntando: “Está ouvindo?”. Essa postura do narrador, como que trazendo o leitor para o texto, também aparece na página 25, quando Sinote compartilha um segredo: “Vou contar um segredo secretíssimo: psiu! É secretérrimo: [...].”, fazendo do leitor seu confidente. Aliás, o narrador, a fim de garantir a percepção do pequeno leitor, que pode ser distraído, lembra-o, por duas vezes, que segredo é segredo, ou seja, é “secretíssimo”, “secretérrimo”, tal qual a postura das crianças a quem a obra se destina. Além disso, ao fazer o uso da onomatopeia, chama o leitor, que pode estar distraído, para o texto. Cabe destacar, ainda, que compartilhamos segredos com quem confiamos, ou seja, pessoas com quem temos alguma afinidade, características depositadas pelo narrador no leitor, que é alguém próximo ao ser de papel que lhe conta a história.

A perspectiva adotada pelo narrador nesta narrativa é interna, isto é, o leitor recebe a informação do ponto de vista do gnomo, o que faz com que sejam parceiros de jornada. De certa forma, essa atitude aproxima narrador e leitor, uma vez que passam a trilhar caminhos lado a lado, mesmo que, sem perceber, este é conduzido por aquele. É por isso, por exemplo, que o leitor também se apaixona por Ludymilla, cuja glote é encantada, possui voz de cristal, tem o sininho mais afinado de todas as goelas de fadas..., e abomina outras fadas, cujos sinos são enferrujados, são fuxiqueiras e invejosas. Para avigorar essa cumplicidade, o narrador tece comentários, exprimindo juízo de valor em relação ao narrado, em busca da convergência entre seu ponto de vista e o do narratário: “Ludymilla, tadinha dela, abriu a boca, engoliu a estrela!” (p. 26).

Outro elemento a ser observado nesta obra é o uso da exclamação, que, ao longo do texto, é empregada 26 vezes pelo narrador. Se consultarmos uma gramática, teremos que esse sinal de pontuação é utilizado ao final de frases exclamativas denotativas de espanto, admiração, surpresa, apelo, ênfase. No caso desta narrativa, até a força equilibrante (FE), a maioria dos períodos termina com exclamação, indicando-nos os sentimentos do narrador: ora de euforia, ora de aflição, ora de decepção frente os fatos narrados:

Eu sou e fui o gnomo Sinote que tinha um chapéu que fazia plim-plim, todo de sininhos, de guizos de prata! (p. 25).

Eu era o guardador da voz de cristal da fada, ora! Um gnomo badalante, badalado, desajuizado de blém-belelém! (p. 25).

Quando Ludymilla diz bom dia, o sininho da goela dela, lá dela, se esgoela e toca um pedaço da Flauta Mágica de Mozart! Que gracinha! (p. 25).

Ludymilla, tadinha dela, abriu a boca, engoliu a estrela! (p. 26).

E eu fiquei com uma estrela cravada nos meus fundilhos, dentro da goela da fada! (p. 26).

Eu tentava consertar o sino da goela da fada, mas estava com a estrela espetada nos fundilhos, levando choques... Ai, que desespero! (p. 28).

Contam que a fada não conseguia mais nem virar sapos em príncipes! Tadinha da Ludymilla, hic! Hic! E ela soluçava em duas vozes esganiçadas: voz do sino e voz da estrela! Que desafinação soluçante! (p. 29).

A partir do momento em que o gnomo encontra a solução para o problema de Ludymilla – consequentemente o seu, a exclamação é usada apenas mais duas vezes: “Se soluçamos? Sabe que não reparei? Estou bobo de tanta apaixonite!” / “São coisas de flautas mágicas, uai!” (p. 31). O emprego da exclamação denota envolvimento de Sinote com o narrado; ele não só conta ao leitor a história da qual participa, mas passa-lhe a emoção dos seus sentimentos, tendo-o como cúmplice. Quando seu problema está resolvido, fica mais tranquilo, o que transparece no uso dos sinais de pontuação – as exclamações foram substituídas por ponto final.

Destacamos, também, que o narrador em nenhuma situação passa a palavra a outrem nessa narrativa, ou seja, temos acesso apenas ao seu ponto de vista, sem qualquer contraponto; cabendo ao leitor apenas acompanhar a história. Nesse sentido, esta obra pressupõe um leitor ainda incipiente, que precisa ser conduzido por um mediador, nesse caso o narrador, a fim de não se perder na leitura.

Na construção textual, também foi levado em consideração o pequeno leitor; as frases seguem as predileções estilísticas das crianças conforme a indicação do pesquisador alemão Engelen (1995). No geral, elas são curtas, estão na voz ativa e na ordem direta, o que ajuda na leitura e compreensão das crianças, que estão iniciando suas descobertas literárias e desenvolvendo seu imaginário, seu mundo da fantasia. Como exemplos, citamos:

Todas as fadas, ou quase todinhas, têm sinos de prata nas goelas. Eu era o guardador da voz de cristal da fada, ora! Um gnomo badalante, badalado, desajuizado de blém- -belelém! (p. 25).

Tem gente que fala tanta coisa de nós... Ora, eu sou um lenhador, cortei os espinhos do tal bosque, salvei a minha amada fada. (p. 31).

Esta narrativa, como já mencionamos, tem outras duas histórias que a antecedem no livro. As três histórias se entrecruzam, ou seja, têm como pano de fundo os soluços de Ludymilla. Nesta narrativa, o narrador faz menção indireta a elas, cabendo ao leitor produzir as associações. Em “Contam que a fada não conseguia mais nem virar sapos em príncipes! Tadinha de Ludymilla, hic! Hic!” (p.29), faz menção à primeira história, A fada que soluçava; “Tem gente que diz que Ludymilla e eu estamos soluçando juntos...”, à segunda, Era uma vez

um soluço. Além disso, na segunda história, surge o lenhador Pedro, cuja origem o leitor fica

conhecendo agora: “Eu tive uma ideia: num dos soluços, pulei pra fora, pois sou um gnomo encantado. Badalei o guizo da minha cabeça e virei um lenhador, de nome Pedro.” (p. 29). Indiretamente, as narrativas mostram ao leitor que narradores diferentes contam histórias diferentes, remetendo às outras narrativas, que têm como pano de fundo o mesmo episódio, ou seja, os soluços de Ludymilla. De certa forma, as histórias se completam. Cabe, contudo, ao leitor articular aspectos sugeridos. Caso não o faça, entretanto, em nada compromete a sua leitura, pois as histórias podem ser lidas e compreendidas de forma independente.

Ao final, diferentemente dos contos de fadas tradicionais e levando em consideração os desfechos das histórias anteriores, o narrador não descarta a possibilidade de a sua história ter sido apenas um devaneio, ou seja, ainda não ter acontecido, afinal: “Tempo de fada é diferente: as coisas que não aconteceram já podem ter acontecido, entende? / São coisas de flautas mágicas, uai!” (p. 31). Ao indagar o leitor, perguntando-lhe “entende?”, o narrador busca cumplicidade e convida-o a participar da história.