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Capítulo I "A caça ao dolo na negligência"

2. Sobre o “Direito Penal do Iluminismo” e os impactos na imputação

2.2. A teoria da imputação de Hegel e sua retomada: a objetivização

Como esclarece Stuckenberg, o dolo, na forma de intenção (Absicht), na linguagem de Hegel, abrange também o resultado não-previsto, mas típico e previsível da ação, em uma perspectiva que retoma as bases do dolus indirectus837.

O agente, enquanto “pensador e natureza racional”, deve conhecer a generalidade/universalidade de sua ação, que lhe pode, por isso mesmo, ser imputada. Essa imputação nada mais consiste do que em honrar a racionalidade do sujeito838.

O “direito do conhecer” (Recht des Wissens) é também um “dever do conhecer” (Pflicht des Wissens). A vontade e a liberdade se movem nos limites do espírito racional, e por isto o sujeito não pode se esquivar da sua responsabilidade, impondo (ele mesmo) limites subjetivos e arbitrários ao próprio dolo/propósito839. Por outras palavras, para Hegel, o agente é uma pessoa racional,

e a imputação independe de sua disposição interna “empírica-real”840. Aquilo que é

da natureza geral da ação, obrigatoriamente, deve ser conhecido pelo sujeito racional, inserindo-se em sua intenção (Absicht, que se emprega em distinção aqui a Vorsatz e explicita o aspecto geral, e não individual).841

A compreensão de Figueiredo Dias, no sentido de que o dolo se limita ao “Recht des Wissens”, ao passo em que o dever de conhecer se conexiona apenas ao

837 Veja-se: Vorstudien zu Vorsatz und Irrtum, 2007, p.572. Também, no mesmo rumo: LESCH,

Hartmut H. Der Verbrechensbegriff, 1999, pp.136 e 146.

838 HEGEL, Georg Wilhelm. Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1821, §§118, 132. Veja-se:

HEUCHEMER, Michael. Der Erlaubnistatbestandsirrtum, 2005, pp.288-289.

839 A aplicar a teoria, de modo distinto, para o dolo-do-facto e para a consciência da ilicitude, e a

defender que apenas no que se refere à última há, para Hegel, o dever de conhecer, veja-se: DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em direito penal, 1987, pp.285-286. De acordo com o Autor, Hegel situa o dolo-do-facto ao plano do domínio da moralidade subjetiva, ao passo em que a apreensão da (consciência) da ilicitude se situa no direito da objetividade, que não pode ser prejudicado pelo juízo do sujeito. Contudo, esta análise parece desconsiderar o tratamento, por Hegel, do dolus indirectus, sobretudo no §119 das Grundlinien, e as premissas estritamente normativas de que parte o Autor. Veja-se, neste sentido: HEUCHEMER, Michael. Der

Erlaubnistatbestandsirrtum, 2005, p.289.

840 Sobre isso: LESCH, Hartmut H. Der Verbrechensbegriff, 1999, pp.138 e 146. Assinala, o Autor, que

para Hegel a teoria penal e a teoria da imputação partem do mesmo princípio, qual seja, o sinalagma entre a liberdasde de organização e a responsabilidade pelo resultado, sob a base da responsabilidade de uma pessoa racional.

841 Veja-se: HEGEL, Georg Wilhem Friedrich. Gründlinien der Philosophie des Rechts. Berlin, 1821, §

119. Sobre isso: LESCH, Hartmut H. Der Verbrechensbegriff, 1999, p.149. Acerca da contraposição entre Vorsatz e Absicht, em Hegel, veja-se também: STUCKENBERG, Carl-Friedrich. Vortudien zu

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conhecimento da ilicitude, sendo uma questão para a consciência ética (nos termos dos §§132 e 140 das Grundlinien), parece traçar uma distinção inexata, pois deixa de fora a categoria do dolus indirectus, em que há uma referência também ao “Pflicht des Wissens”842.

Neste contexto, o geral, o universal, corresponde ao dolus indirectus843, em

oposição ao imediato e individual do dolus directus. O geral não pode ser afastado da intenção, salvo em se tratando de crianças, doentes mentais ou idiotas (Blödsinniges). Como sujeito racional, espera-se que este conheça a generalidade do objeto da ação844. Em síntese, o dolo, como Absicht (na terminologia hegeliana),

compreende inclusive efeitos não previstos, mas típicos e previsíveis resultados da ação, em aproximação com a figura do dolus indirectus do Direito comum845. O

dolo, portanto, é estritamente separado de facticidades psíquicas, do conhecimento atual de facticidades, e se afere a partir a análise de uma lesão do dever de conhecer, determinado para uma pessoa racional846.

O hegeliano Karl Ludwig Michelet reconhece também uma “intenção indireta”, que compreende o efeito necessário, ainda que não previsto, da lesão proposital. Esta intenção indireta é o direito objetivo do facto e, através de sua imputação, o agente é reconhecido como racional847.

Já para Köstlin, a distinção entre Absicht e dolus não é frutífera, uma vez que a intenção se direciona de modo determinado, indeterminado ou eventual ao resultado, enquanto a culpa apenas se configura como inconsciente848. A intenção

indireta, que está entre o dolus e a culpa, inclui a luxuria e o impetus, sendo que, no caso da primeira, o resultado é refletido, contudo o agente espera que não ocorra. A luxuria se separa do dolus caso o sujeito tenha procurado evitar o resultado previsto como possível, ou caso o resultado não tenha sido “querido nem

842 Assim: HEUCHEMER, Michael. Der Erlaubnistatbestandsirrtum, 2005, p.289.

843 Veja-se: HEGEL, Georg Wilhem Friedrich. Gründlinien der Philosophie des Rechts, 1821, §118,

119.

844 Veja-se: STUCKENBERG, Carl-Friedrich. Vorstudien zu Vorsatz und Irrtum, 2007, p.572. 845 Assim: STUCKENBERG, Carl-Friedrich. Vorstudien zu Vorsatz und Irrtum, 2007, p.573. 846 HEUCHEMER, Michael. Der Erlaubnistatbestandsirrtum, 2005, p.289.

847 Das System der philosophischen Moral. Berlin, Schlessinger, 1824, p. 89. Disponível parcialmente

em:http://reader.digitale-sammlungen.de/de/fs1/object/display/bsb10041360_00005.html (acesso em 04.12.2017). Veja-se, em análise de Michelet, com outras referências: STUCKENBERG, Carl-Friedrich. Vorstudien zu Vorsatz und Irrtum, 2007, p.573.

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eventualmente”, pois a indiferença também identifica uma vontade (dolosa)849. A

normativização do conceito de dolo fica especialmente clara e acentuada no tratamento conferido por Köstlin aos casos de aberratio ictus850, em que defende

que é indiferente para o Direito se o sujeito matou o inimigo, que queria, ou o amigo, que não queria, pois em qualquer caso realizou a ação probida de matar um homem. Assim, o objeto do homicídio não é um homem, mas o Direito à vida; o objeto do furto não é a coisa, mas o Direito de propriedade. Mais que isso, o que importa é ressaltar que, para Köstlin não é qualquer tipo de erro que afasta o dolo, sendo sempre necessária uma avaliação valorativa acerca dos fundamentos do erro, o que abre caminho para uma normativização conceitual851. O conceito de

dolo acaba por se liberar da relevância de uma concretização extratípica852,

ressaltando-se que a medida da intenção é a natureza objetiva da ação, e não o arbítrio subjetivo853. O ponto de ligação da imputação é a contradição normativa e

não a concreta vontade do agente: verbi gratia, a lei proíbe que se mate alguém, e não apenas proíbe que se mate um inimigo; a vontade concreta do agente, de matar o inimigo, não tem relevância alguma, pois é algo que se contra fora do conteúdo da norma. A intenção (Absicht) tem uma natureza formal e geral, de todo distinta de um simples propósito (Vorsatz)854.

Por fim, Berner chamava a atenção para a conexão entre o dolus e sua ligação com seu “outro” (seu efeito no mundo exterior), qual seja, a intenção (Absicht)855. Berner aponta, quanto aos efeitos, para três categorias: a

possibilidade, o acaso, e a necessidade. Contudo, ressalta que o acaso e a necessidade são duas formas de possibilidade, cujo conteúdo esgotam. O dolo, neste contexto, pode se direcionar ao necessário (em termos de curso regular dos acontecimentos – algo como disparar com uma arma de fogo contra outrem, para

849 Veja-se: KÖSTLIN, Theodor Reinhold. System des deutschen Strafrechts, 1855, §73, pp.183 e 191.

Neue Revision der Grundbegriffe des Kriminalrechts. Aalen: Scientia (Neudruck der Ausgabe

Tübingen, 1845), 1970, p.259. Informativo, veja-se: STUCKENBERG, Carl-Friedrich. Vorstudien zu

Vorsatz und Irrtum, 2007, p.574.

850 Veja-se: HEUCHEMER, Michael. Erlaubinstatbestandsirrtum, 2005, p.267. 851 Veja-se: HEUCHEMER, Michael. Erlaubinstatbestandsirrtum, 2005, pp.268 e 270. 852 HEUCHEMER, Michael. Erlaubinstatbestandsirrtum, 2005, p.269.

853 System des deutschen Strafrechts, 1855, §73, p.191.

854 KÖSTLIN, Theodor Reinhold. Neue Revision der Grundbegriffe des Criminalrechts, 1970, p.285. Ao

contrário do que se entende hoje, a intenção, neste sentido formal, era o conceito mais amplo, em face do dolo, tal como se dá em Hegel. Explicativo: HEUCHEMER, Michael.

Erlaubinstatbestandsirrtum, 2005, p.272.

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provocar a morte – mas não em termos de necessidade empírica – pois a vítima não necessariamente irá morrer), a que Berner designa como “possibilidade real”, e à possibilidade abstrata. No caso do “dolus determinatus”, o agente direciona o dolo à “possibilidade real” do resultado856, ainda que este não seja o fim último da

ação. Por seu turno, o “dolus indeterminatus seus eventualis” é aquele que tem por objeto a simples possibilidade do resultado. Nesta situação, Berner apresenta o seguinte exemplo: um bandido quer testar a eficácia de sua arma, especificamente medir a que distância chega seu disparo; para tanto, efetua um tiro contra um grupo de pessoas, ciente da possibilidade de atingir alguma, e mesmo causar sua morte; caso alguém seja atingido, o agente consente no resultado857. Na hipótese

de o agente, contudo, representar a possibilidade do resultado e acreditar que pode evitá-lo, bem assim não aprová-lo, então o que se há de reconhecer é a culpa, na forma de “frevelhaftigkeit” (frivolidade, em uma tradução possível)858. Como

última categoria de imputação, Berner refere-se à culpa sem a consciência da possibilidade, a que denomina “Unvorsichtigkeit” e fundamenta no dever geral de cuidado859.

A nota comum a todos estes Autores, que partem das bases da teoria da imputação hegeliana, é a objetivização da intenção (Absicht)860, ainda que nem

sempre em modo tão amplo quanto no próprio Hegel, e a consideração do agente como uma natureza racional, que precisa conhecer o caráter geral da ação, e não pode se esquivar da responsabilidade a partir de perspectivas subjetivas, que o retirariam da condição de uma natureza pensante e racional. O essencial na imputação é a contradição com a norma e não a concreta vontade do agente861.

Com isso, a culpa acaba sendo delimitada a resultados imprevisíveis – conquanto que não apenas derivados do acaso -, não se compaginando com a modalidade consciente.

856 BERNER, Albert Friedrich. Lehrbuch des deutschen Strafrechtes. Leipzig: Bernhard Lauchniss,

1857, §95, p.143.

857 BERNER, Albert Friedrich. Grundlinien der criminalistischen Imputationslehre, 1843, p.187. 858 BERNER, Albert Friedrich. Grundlinien der criminalistischen Imputationslehre, 1843, pp.193 e

227.

859 BERNER, Albert Friedrich. Grundlinien der criminalistischen Imputationslehre, 1843, p.248. 860 Sobre o tema, veja-se: HEUCHEMER, Michael. Erlaubinstatbestandsirrtum, 2005, p.268 e ss. 861 Explicativo: SAFFERLING, Christoph J.M. Vorsatz und Schuld, 2008, pp.22-24.

170 3. Balanço

Não é difícil notar que o desenvolvimento da teoria da imputação subjetiva experimentou variações entre perspectivas de acento “subjetivo-volitivo” e “objetivo-cognitivo”, notadamente no que concerne ao aspecto do sujeito da imputação, ora concebido como um indivíduo concreto, como “unidade psicofísica” (Feuerbach), ora como uma pessoa racional, como uma “natureza pensante” (mais contemporaneamente, com os hegelianos, como Michelet, Köstlin, Berner e Abegg). De início, na Antiguidade, após a superação da censura pelo resultado (Erfolgshaftung), e no Direito Romano, Canônico e Comum-Germânico, a única forma de imputação geral/ordinária era o dolo, enquanto “má-vontade” ou “má- intenção”, vinculada à realização do ilícito e submetida à poena ordinária. A negligência (culpa) só era punida excepcionalmente, com a poena extraordinaria, geralmente em casos de homicídio e incêndio.

As necessidades práticas, e de política criminal, conduziram a uma ampliação da área do dolo, ora transmudando-se o conceito para incluir a figura do dolus indirectus (Glosadores e Pós-Glosadores, em especial com a Doctrina Bartolis e com Carpzov), ora com previsão de novas regras de prova (dolus praesumtum).

No século XIX, sob a influência da psicologia no campo do Direito Penal bem assim do pensamento iluminista, e sob a pena de importantes Autores, como Feuerbach, Almendingen, Stübel, Klein e Kleinschrod, dá-se uma nova “subjetivização” do ilícito, estreitando-se o vínculo entre o dolo (malus) e a “má- vontade”, e reduzindo-se sua abrangência à intenção (aqui como propósito, bem entendido) ou, no pior caso, aos resultados colaterais necessários ou prováveis, mas sempre vinculados a uma ação ilícita, direcionada a um resultado delituoso, em uma nova leitura da doutrina canônica do versari in re illicita. Essas concepções também influenciaram sobremaneira a disciplina do erro, notadamente no que concerne ao erro sobre a ilicitude, que seguiram um padrão acentuadamente psicologista ao menos até meados do século XX, com o desenvolvimento da teoria (normativa) da culpa e a superação da(s) (psicológica) teoria(s) do dolo.

De outro lado, também no século XIX, sob a influência de Hegel e de sua teoria da imputação, desenvolvida, na dogmática penal, sobretudo por Autores

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como Abegg, Köstlin, Luden, Michelet e outros862, ocorre uma nova objetivização

do dolo e da intenção (Absicht), partindo-se da ideia de que o “geral da ação” deve ser conhecido pelo sujeito enquanto pessoa racional, e retomando-se as ideias básicas da doutrina do dolus indirectus.

Todas essas teorias vão repercutir nas construções do século XIX e primeira metade do século XX, na elaboração das teorias volitivas (do consentimento, da aprovação e da aprovação no sentido jurídico) e cognitivas (da possibilidade, da probabilidade), que retomam os grandes modelos, ainda mantendo uma tradição de acento psicologista. A disputa entre as duas perspectivas influenciou a discussão dogmática das primeiras décadas do século XX863 e continua a

influenciar a discussão atual, ao plano dos normativismos volitivo e cognitivo. Passo a tratar disso tudo em seguida.

Capitulo II – As teorias psicológicas da representação e da vontade

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