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Capítulo I "A caça ao dolo na negligência"

1. Direito Romano e Germânico

1.2. Excurso: breve evolução do tema no Direito português (com recorte

Sem pretensões de um estudo histórico, e mesmo da análise dos impactos do Direito Romano e Canônico – tudo que exorbitaria os limites e objetivos da investigação - convém fazer uma referência, aqui, ao tema do dolo à época das

Ordenações e também ao período das codificações (“época do individualismo”).

779 Veja-se: HSU, Yu-An. Doppelindividualisierung und Irrtum, 2007, p.195.

780 LÖFFLER, Alexander. Die Schuldformen des Strafrechts. In Vergleichend-Historischer und

Dogmatischer Darstellung. Leipzig: Von C.L.Hirschfeld, 1895, p.172. Também: STUCKENBERG, Carl-

Friedrich. Vorstudien zu Vorsatz und Irrtum, 2007, p.561. SCHEFFLER, Uwe. J.S.F. von Böhmer (1704-1772) und der dolus eventualis. – Kann der grosse Professor der alten Viadriana dem heutigen Strafrecht noch etwas geben? Jura 7 (1995), p.352.

781 Veja-se: SCHLÜCHTER, Ellen. Grenzen strafbarer Fahrlässigkeit, 1996, p.43. 782 De acordo: HEUCHEMER, Michael. Der Erlaubnistatbestandsirrtum, 2005, p.267.

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De se destacar, inicialmente, a influência da Doctrina Bartoli como critério orientador da jurisprudência, ao tempo em que se elaboravam, no intuito de se sistematizar o direito pátrio, as Ordenações Afonsinas783. Isso se passa no século XV,

por fins de 1446784, ressaltando-se que as Ordenações só são impressas em

1792785.

O estudo das fontes dificulta-se pela constatação de que os exemplares completos das Ordenações Afonsinas resultaram de combinações de vários exemplares truncados disponíveis em arquivos, tais como a Torre do Tombo e o Mosteiro de Alcobaça. O Livro V, com 121 títulos, versava sobre Direito Penal e Processo Penal. Não havia, contudo, referências quaisquer ao dolo ou à culpa, senão um amontoado assistemático de comportamentos considerados delituosos786. Mas se pode notar, por exemplo, no Livro V, Título VII – Dos que

dormem com mulher casada por sua vontade – a referência aos elementos “volitivo

e cognitivo”, dali constando “todo homem que fizer adultério com uma mulher,

sabendo que é casada”. Já por outro lado, no Livro V, Título XXXII – Do que mata ou

fere alguém sem porque – não há qualquer referência há dolo ou culpa, não

havendo conexão direta a qualquer forma de responsabilidade subjetiva ou a sua graduação.

Digno de nota que, face à ampla referência ao pecado e aos crimes de consciência, há, quanto a estes delitos, um descuido quanto à materialidade da infração e uma preocupação em se indagar acerca da intenção, ou não, de causar o mal, com graduação da responsabilidade de acordo com o grau de culpa, ou seja, entre a intenção (dolo) e a mera culpa787.

A estrutura das Ordenações Afonsinas não foi, especificamente na órbita do Direito Penal, modificada pelas subsequentes Ordenações Manoelinas788 e Filipinas.

Não há, portanto, em termos de “Direito positivo”, questões de maior interesse a tratar aqui, para o objeto da presente pesquisa.

783 Veja-se: SILVA, Espinosa da. História do direito português. Lisboa: Associação Acadêmica da

Faculdade de Direito de Lisboa, 1965, p.225.

784 Veja-se: COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do direito português. 4 ed. Coimbra: Almedina,

2010, p.304.

785 Confira-se: SILVA, Espinosa da. História do direito português, 1965, p.229.

786 Veja-se, sobre isso: CAETANO, Marcello. História do direito português. 3 ed. Lisboa: Verbo, 1992,

p.553. Também: CORREIA, Eduardo. Direito criminal. Coimbra: Almedina, 1968.

787 Neste sentido: CAETANO, Marcello. História do direito português, 1992, p.553. 788 Assim: COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do direito português, 2010, p.314.

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De um salto para os séculos XVIII e XIX, sob a influência do Iluminismo, com o racionalismo e o jusnaturalismo, e subsequentemente, já então no século XIX, com o positivismo jurídico e a “Escola da exegese”, dá-se o denominado movimento codificador, que dominou a ciência jurídica nos países da Europa Continental789. De especial interesse, o Code Pénal Napoleônico, de 1813, e o Código

Penal bávaro (Strafgesetzbuch), este sob a direção de Feuerbach. De se ressaltar, aqui, a solução de problemas através da dedução lógica, sem qualquer espaço criador para o julgador790.

O primeiro Código Penal português promulga-se em 1852, na ditadura de Saldanha, tendo como fontes os Códigos francês e o brasileiro de 1831791. No artigo

, embora sem se referir ao “dolo”, o Código disciplina que o delito é o “facto

voluntário declarado punível pela lei penal”. Remete a punição da negligência para

os casos definidos em lei, em situações de “omissão voluntária de um dever”. Não há definições claras da voluntariedade, em termos de referência a conhecimento e vontade. Neste período, Cavaleiro de Ferreira acentuava que a voluntariedade podia ser “direta ou indireta”: se o facto não é diretamente objeto da vontade, “o grau de voluntariedade do facto constitui uma forma degradada da culpabilidade, ou

seja, negligência ou culpa”792. E ainda salientava, o Autor, que a “intenção

criminosa” e a negligência, enquanto formas de culpabilidade, são sempre, como vontade direta ou indireta, vontade racional e livre.

O Código de 1852 foi substituído pelo Código Penal de 1886, que entretanto não alterou o regime do anterior, em termos de referências à voluntariedade no artigo 1º793 e à punição da negligência nos casos de omissão voluntária de um

dever. Sem se valer também do termo “dolo”, o Código designa as formas de culpa como “intenção criminosa” e “culpa ou negligência” (arts.11; 44, 7; § único do artigo 43, e arts.2º e 4º).

789 Veja-se: COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do direito português, 2010, pp.435 e 460. 790 COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do direito português, 2010, p.464.

791 Assim: CORREIA, Eduardo. Direito criminal, 1968, p.107. 792 Direito penal português. Lisboa: Verbo, 1981, p.454.

793 Veja-se: OSÓRIO, Luís. Notas ao Código Penal Português. Vol. 1. (2ª ed.). Coimbra: Coimbra, 1923,

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Na ausência de definição expressa, a doutrina apontava que a estrutura do dolo – enquanto uma “realidade psicológica” – compreende os elementos intelectual e volitivo, não sendo eles separáveis794.

Mas ainda que não houvesse referência expressa ao dolo eventual no Código, a doutrina se posicionava no sentido de que o dolo se extendia para além da intenção direta795, abarcando a “intenção eventual”796. Veja-se que a ausência de

definição legal não impediu o desenvolvimento doutrinário do conceito, inclusive com sensível alargamento da área da intenção, para se afirmar a punição a título de dolo eventual, aparentemente sem maiores tensões.

Importante ressaltar, ainda, que se reconhecia a intenção, de modo presumido, no que toca à produção de consequências naturais do ato797, o que se

aproxima à própria estrutura do dolus indirectus.

O Código de 1886 perdura, em que pesem as críticas, e as múltiplas reformas, até o Código Penal de 1982798. Como se sabe, o atual Código Penal

português apresenta uma definição expressa de dolo, classificando-o nas suas três formas – dolo direto, necessário e eventual – e faz referência aos elementos intelectual e volitivo. Contudo, da legislação atual tratarei na Parte V da investigação, para onde remeto o leitor.

2. Sobre o “Direito Penal do Iluminismo” e os impactos na imputação

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