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3. A epistemologia da pragmática transcendental

3.2 A base teórica da pragmática transcendental

3.2.1 A teoria da verdade na pragmática transcendental

A teoria da verdade é das filosofias em geral apenas uma parte, mas é uma parte de suma importância, pelo fato de que o desenvolvimento de uma teoria filosófica depende muito do que ela considera verdadeiro, ou mesmo se ela considera algo verdadeiro. Na filosofia da linguagem do século XX destacamos duas teorias da verdade: a teoria

referencial da verdade e a teoria consensual da verdade.

A teoria referencial da verdade é baseada num empirismo realista e, de maneira geral, é a teoria da verdade do início da filosofia analítica. A idéia é que, para um enunciado ser verdadeiro, basta uma relação entre palavras e fatos. O enunciado se refere a algo no mundo; se a descrição corresponde a algo, a referência é satisfeita e o enunciado é verdadeiro. Se a descrição não corresponde a nenhum fato existente, a referência não é satisfeita e enunciado é falso99.

A verdade, na teoria referencial, é a mera adequação entre linguagem e mundo100. É baseada numa experiência de mundo simples, uniforme para todos os seres humanos. Não há o complicador da interpretação, do ponto de vista. É uma teoria da verdade até certo ponto útil para a ciência experimental, ou para certos ramos do direito (penal ou tributário). É útil apenas até certo ponto porque a própria teoria da ciência enxergou dificuldades sérias numa visão unívoca dos fatos do mundo. Uma formalização completa da linguagem se tornou impossível, requerendo a idéia de convenção; a comprovação definitiva de teorias foi criticada, por exemplo, por K. Popper101.

Essas dificuldades surgem porque em uma teoria referencial sempre é preciso saber quais os elementos básicos do mundo, e é impossível enunciar tal coisa de maneira

99

Há ainda enunciados sem sentido, mas este terceiro tipo não é necessário para a análise empreendida.

100 Sobre as dificuldades de uma teoria da verdade referencial, ver QUINE, Willard. Verification truth and

reductionism. Disponível em http://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/us/quine.htm , acessado em 10 de junho de 2005.

101

definitiva. Um realismo radical, que desconsidere a forma como o objeto é percebido, enfrenta sérias dificuldades. Ele precisa de revisão o tempo todo, porque cada ponto de vista é um objeto novo. Quanto mais complexo for o objeto, maiores as dificuldades metodológicas; e no caso das ciências humanas o objeto é bastante complexo.

Daí a preferência de Apel por uma teoria consensual da verdade, que deixa a definição deste “algo” em suspenso. As coisas são aquilo sobre o que as pessoas estiverem de acordo, e não algo independente de suas experiências. Esse acordo se dá por via lingüística, porque a língua é a forma de interação racional dos seres humanos. Pode-se dizer, portanto, que a condição de verdade de um enunciado vem de outros enunciados lingüísticos.

A teoria consensual, ao deixar em suspenso a definição de realidade, permite-se tanto objetos simples como complexos, além de elementos que não cabem exatamente na definição de objetos, como enunciados lingüísticos de ordem, pergunta, surpresa, dúvida etc. Ao colocar os falantes como elemento principal, tudo sobre o que eles estiverem de acordo é real. Isso permite tratar objetos simples e complexos ao mesmo tempo, sem precisar de uma revisão da teoria da verdade. Apel, por esses motivos, considera mais adequada à complexidade das ciências humanas a teoria consensual da verdade.

A intersubjetividade é o eixo da teoria consensual, como a divisão sujeito e objeto é o eixo da teoria referencial.

É interessante o fato de que o consenso entre sujeitos é um elemento presente também em teorias consideradas referenciais, mas ele aparece de forma secundária. Enquanto para Apel o consenso é uma forma de validação, para Dewey, para citar um autor divergente, o consenso é uma forma de controle. A opinião dos outros, para esse último, é uma das formas de saber se um enunciado é verdadeiro, e não a condição para a existência e confirmação de enunciados, como quer Apel.

No seu livro Experience and Nature, Dewey102 diz que “tão logo uma criança obtém de outros a manifestação de um hábito, fica provado que ela é capaz de formar um hábito sujeito às exigências de outros como também à formação de seus futuros hábitos”103

. Nessa passagem fica claro que são postas no mesmo nível a exigência dos demais seres como também as exigências das experiências futuras. Destacam-se, portanto, dois níveis de

102 DEWEY, John. Experience and Nature. New York: Dover, 1958.

103 “As soon as a child secrets from others the manifestation of a habit there is proof that te is practically

aware that he forms a habit subject to the requirements of others as to his further habit formations”. Idem, p. 281.

controle para os hábitos (conhecimentos) formados: a experiência dos outros seres e outras experiências do mesmo sujeito.

John Dewey é um pragmatista, e como tal acredita que a língua é apenas um dos elementos que diferenciam os seres humanos dos animais. A língua é um instrumento de sobrevivência, extremamente importante e complexo, mas não é a condição para ser racional. Se assim fosse, seria necessário explicar por que as linguagens de animais irracionais são irracionais, e por que a linguagem humana é superior104.

Para Dewey, e para o empirismo em geral, as instâncias subjetiva e intersubjetiva funcionam como consolidantes. Elas tornam mais segura uma crença de que determinado enunciado é correto, através da mudança das condições em que ele é observado. Modificando as condições em que determinada coisa é experimentada, o elemento constante é o elemento real. Não há muita metafísica nisso; reais são as características com as quais se pode contar mais do que com outras.

Para Apel, no entanto, essa definição é incompleta. É necessário que o filósofo não se contente com o fato de que a linguagem é dada e funciona como elemento de convívio com o meio. É preciso tomar consciência das condições transcendentais da linguagem, que inclui a idéia de que até para o enunciado mais empírico há a necessidade de validação por uma comunidade. O filósofo, na atividade crítica, precisa retrogradar até a origem da linguagem, e refletir a partir daí sobre o jogo de linguagem transcendental e a comunidade ilimitada de comunicação. Se ele considera a língua algo dado, corre o risco de considerar a realidade de forma acrítica, solipsista. Não basta a língua como herança da tradição; é preciso que o assuma seu papel no aprendizado e transformação do elemento lingüístico. Isso tudo considerando seu papel de membro de uma comunidade.

É interessante a idéia de Apel de que o ser precisa sempre refletir sobre sua função de agente da história, e que a racionalidade e a linguagem são atividades constantes e que não existe um ponto final para o conhecimento. A única dúvida é se é realmente necessário percorrer todo esse caminho na hora de saber se um enunciado é verdadeiro ou não. Não parece ser assim que o senso comum trabalha; se cada vez que eu for abrir a porta precisar supor o significado das fechaduras para a comunidade ideal de comunicação e o meu lugar

104 Pode-se dizer que o homem é capaz de modificar os próprios símbolos lingüísticos, ao contrário dos

animais, e esta parece ser a opinião de Dewey quando fala sobre a uniformidade e involuntariedade da comunicação de seres racionais. De qualquer forma, esse elemento adicional não se confunde com a possibilidade de consenso; consenso entre animais também há.

na história enquanto ser que porta uma chave e tem liberdade de ir e vir, eu passarei meia hora parado na entrada de casa.

O exemplo é exagerado, mas não é exagerada a idéia de que há campos do conhecimento onde é dispensável a pergunta sobre as condições intersubjetivas do conhecimento. Há situações em que a consolidação do que é real é simples, e em que uma divisão clara entre sujeito e objeto é não apenas possível como recomendada. Isso acontece também nas ciências humanas, como em determinados setores do direito, como na prova no direito penal ou o fato gerador no direito tributário: nesses casos a adequação do fato com o tipo legal funciona muito bem na prática.

O objetivo principal da atividade de conhecer, segundo o pragmatismo norte- americano, é consolidar as condições de verdade, formando uma idéia prática do que é ou não real. Se é feita a partir da repetição da experiência sob as mesmas condições, sem a influência de outros sujeitos, ou se é feita a partir do debate, não importa. O que importa é que haja confirmação daquilo que é dito, e que a partir daí possa ser usado de maneira satisfatória. Em alguns casos será preferível a confirmação intersubjetiva, em outros não. Não há uma superioridade essencial da intersubjetividade sobre o “solipsismo”; considerar outros sujeitos é uma necessidade gerada pela situação, e nem em todos os casos. Portanto, não é uma condição do conhecimento em geral.105

A desconsideração da intersubjetividade como instância principal do conhecimento gera a cisão filosófica entre existencialismo e teoria da ciência, segundo Apel. Essa cisão causa a perda da essência do ser humano e uma mecanização das ciências humanas, e o controle do homem sobre o homem através da ciência objetivista. Dewey também é um crítico da supervalorização da ciência experimental, mas a sua sugestão para lidar com o problema não tem a ver com uma supra-ciência filosófica, como parece sugerir a pragmática transcendental. Sua sugestão é mais simples: basta juntar novamente os campos da satisfação e da obrigação, os campos da arte e da razão106. Isso não significa uma mistura completa entre os campos, porque uma diferença funcional ainda existe. Isto quer dizer apenas dar mais sentido à vida funcional e mais funcionalidade à vida artística.

105 Interessante, mas não conclusivo, é que em uma entrevista a Jesus de Paula Assis, Apel cita a

intersubjetividade como uma forma de confirmação do conhecimento científico, ao lado da repetibilidade da experiência e a isenção de valores. ASSIS, Jesus de Paula. Karl-Otto Apel: a raiz comum entre ética e linguagem, in Estudos Avançados, vol. 6, n. 14. São Paulo: IEA-USP, 1992, pp. 169-191.

106 Sobre isso, principalmente o capítulo IX de DEWEY, John. Experience and Nature. New York: Dover,

A sugestão de Dewey é muito mais complexa do que foi apresentada aqui, já se permite lançar a idéia de que a separação entre existencialismo e teoria da ciência, se for vista como uma separação funcional entre aspectos distintos da natureza humana, já impede o domínio absoluto da técnica. Arte e técnica nada mais são do que manifestações sociais de uma diferença de temperamento que existe em cada um de nós. Ora somos poetas, ora somos máquinas; não há nada de errado nessa diferença, desde que haja coerência entre os dois momentos. Essa diferença é que torna rica a experiência em geral.

A sugestão de Apel é unificar esses dois momentos em uma filosofia transcendental. Ele introduz uma terceira filosofia no debate entre teoria da ciência e filosofia existencialista. A única forma de defender esse raciocínio é mostrando a superioridade metódica da pragmática transcendental em relação à mediação pragmatista. A teoria consensual da verdade sozinha não é capaz disso, porque o consenso107 é apenas uma das formas de consolidar o conhecimento, e está tão sujeito a erro como a confirmação solitária pela repetição do experimento.

Talvez um olhar sobre a diferença entre Elucidar e Compreender, e também sobre a irracionalidade da separação entre teoria da ciência e existencialismo seja capaz de justificar a preferência de Apel pela teoria consensual da verdade. É o que será analisado na seqüência.