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3. A epistemologia da pragmática transcendental

3.2 A base teórica da pragmática transcendental

3.2.2 O problema do Compreender e o anseio de justificação

A idéia de que o Elucidar (ligado à verdade referencial) é a única forma de conhecimento racional leva a ética a ser colocada como algo que depende de cada um, sem controle objetivo. Daí a separação da filosofia entre teoria da ciência e existencialismo, no século XX. Nenhuma delas, segundo Apel, é capaz de refletir sobre a própria condição, e encontrar na intersubjetividade a origem comum e a instância mediadora.

À intersubjetividade pertence um método próprio, o Compreender. Ele permite, através da comunidade ideal de comunicação e do jogo de linguagem transcendental, uma crítica objetiva, isto é, não relativista de todos os campos do conhecimento, e não apenas da ciência natural, como faz o Elucidar.

107 Consenso aqui entendido como consenso real. A antecipação de um consenso diferente, ideal, que atenda

às condições últimas da razão é o que propõe Apel. Esse passo é o salto qualitativo a que será feita referência adiante.

O relativismo, portanto, é o principal problema do solipsismo metódico. A teoria da ciência e o pragmatismo até reconhecem o sujeito, e ressaltam a necessidade de serem incorporados ao conhecimento racional elementos fora do laboratório. É assim que acontece com as convenções na filosofia analítica, na medida em que elas criam as condições para uma tipificação. É assim que acontece com o pragmatismo de Dewey quando fala de uma separação funcional - e não ontológica - entre arte e ciência.

O relativismo é o principal problema do solipsismo metódico, mas não é exclusivo dele. A filosofia hermenêutica desde Dilthey já percebe a importância da tradição e da comunidade, mas não consegue uma completa consciência, já que não atinge a dimensão crítica do Compreender. Para Gadamer, por exemplo, não é possível sair da própria condição e julgar uma outra época “de cima”; sempre o cientista humano estará preso aos próprios pré-conceitos. Apesar da percepção de Gadamer de que é preciso uma metodologia diferente para as ciências humanas, ele não é capaz de enunciar um método crítico, que julgue as culturas a partir das condições fundamentais da razão (o jogo de linguagem transcendental da comunidade ideal e ilimitada de comunicação)108.

É possível dar outra interpretação para a hermenêutica filosófica, ao menos em sua vertente existencialista. Em Heidegger109, por exemplo, a preocupação constante de que o ser não se restrinja ao ente só alcança sua riqueza se visto de forma não-metódica, se visto como uma reação ao método. O grito do ser reivindicando sua condição em si e para si eleva-o sobre as metodologias particulares – inclusive as escolas filosóficas – e o permite uma atualização racional. Não quer dizer que o ser exista de forma indeterminada; quer apenas dizer que o Eu determina como será determinado, numa alusão a Fichte110.

Esses últimos são autores alemães, mas em William James, norte-americano e da escola pragmatista como Dewey, aparecem considerações muito parecidas, principalmente no texto A Pluralistic Universe111. Os nomes e as ciências são apenas a forma que o homem encontra para dominar a existência, mas quando o homem tenta apreender a existência ela lhe escapa. A existência é rápida e irrepetível; não é possível apreender a realidade, não de maneira completa. Os nomes são uma forma precária, por ser estática e

108 APEL, Karl-Otto. A radicalização filosófica da “hermenêutica” proposta por Heidegger e a pergunta

quanto ao “critério de sentido” da linguagem, A transformação da filosofia. São Paulo: Loyola, 2004. vol. 1, pp. 325-394.

109 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. São Paulo: Vozes, 2001.

110 FICHTE, Gottlieb. Doutrina da Ciência, Os Pensadores: Fichte. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 111

repetível, de descrever o que ocorre. A experiência pura (o ser de Heidegger) é indefinível (nos limites de uma definição aristotélica).

Heidegger, Fichte ou James falam, apesar de formas diferentes, a mesma coisa: a essência é inapreensível, e é muito importante notar que o método é uma forma precária de descrevê-la. O método que não toma consciência da sua própria precariedade é cego, e corre o risco de tornar-se dogmático.

Essa referência existencialista ao método mostra não uma oposição, mas uma complementaridade entre existencialismo e teoria da ciência112. Uma complementaridade que já foi citada na seção anterior como uma diferença de temperamento inerente ao ser humano, que ora emprega a técnica, ora a poética. A filosofia nada mais faz do que repetir essa diferença e complementaridade: enquanto a teoria da ciência desenvolve métodos mais precisos e facilita a técnica, o existencialismo vem mostrar que a técnica pela técnica é cega, e não funciona de maneira satisfatória.

Apel, ao propor a Compreensão como método unificador, parece crer que é preciso escolher uma escola ou outra, e que não é possível uma mediação a partir delas próprias. Só que a razão de uma escola filosófica não depende da falta de razão da outra. A pluralidade de pontos de vista, quando coerentes, é suficiente para estabelecer uma síntese razoável. Não é necessário um terceiro método, superior a todos, que faça a mediação e diga o que é aproveitável deles.

A preocupação de Apel surge a partir desse ponto. Ele não nega que é possível uma síntese razoável e uma opinião fundamentada a partir da abundância de opiniões. Isso ele considera possível, como mostra sua opinião sobre o pluralismo ético. O problema dele não é a formação de opiniões razoáveis, mas a justificação dessas opiniões. É aí que aparece a importância do Compreender como instância crítica. Outras escolas filosóficas podem até reconhecer a necessidade de complementação, e a possibilidade de uma opinião conciliadora da diferença, mas para que seja justificada essa opinião é preciso um método filosófico genuíno113, coisa que apenas a pragmática transcendental possui. A filosofia não

112 Um exemplo de tal síntese encontra-se em PATY, Michel. Historicidade racional e inteligibilidade, in

Estudos Avançados, vol. 19, n. 54. São Paulo: IEA-USP, 2005, pp. 369-390.

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É interessante citar que a hermenêutica filosófica não é relativista. Ela nega a opinião última, mas não nega a possibilidade de juízos racionais a partir da própria condição. A vinculação a um horizonte interpretativo (pré-compreensão) não impede que se julguem a partir dele outros horizontes interpretativos. Apel não aceita é essa vinculação ao horizonte; a vinculação é à comunidade ideal e ilimitada de comunicação, acima de todos os horizontes.

deve enunciar a possibilidade de entendimento; ela deve justificar esse entendimento diante de um tribunal da razão, que é o jogo de linguagem transcendental.

A superioridade da pragmática transcendental não é a teoria consensual da verdade, pura e simplesmente. Tampouco é a possibilidade de consenso entre visões de mundo distintas. A superioridade é a capacidade de tomar consciência, a partir da reflexão transcendental, do jogo de linguagem transcendental da comunidade ideal de comunicação, capaz de uma justificação última do conhecimento.

Se é possível esse salto de qualidade em relação ao existencialismo e à teoria da ciência é o que será analisado a seguir. O salto de qualidade depende diretamente da possibilidade de superar o relativismo das situações dadas (a partir do jogo de linguagem transcendental) e a teoria da verdade consensual ordinária (através da pressuposição de uma comunidade ideal).