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A Teoria das Idéias como resposta ao paradoxo de Zenão

No documento A filosofia da linguagem em Platão (páginas 66-70)

Usando a estratégia da redução ao absurdo, Zenão procura defender a afirmação de Parmênides de que “tudo é um”, mostrando que, se admitimos a tese contrária, segundo a qual o múltiplo existe, surgem paradoxos. Se as coisas são múltiplas, diz Zenão, elas são semelhantes e dessemelhantes. Mas coisas semelhantes não podem ser dessemelhantes nem as dessemelhantes semelhantes. Logo, as coisas não são múltiplas, pois essa seria uma “situação impossível”, e a multiplicidade não existe (127e-128a).

O texto apresenta o argumento de Zenão nessa forma concisa, e não fica muito claro como entendê-lo, mas acreditamos que ele pode ser explicitado assim: para haver uma pluralidade, é necessário que haja muitas coisas, e que cada uma seja diferente das outras. Logo, todas as coisas são diferentes entre si. Mas, se todas elas são diferentes, então todas têm algo em comum, e ter algo em comum as faz semelhantes. Como o que as faz semelhantes é o fato de serem dessemelhantes entre si, chega-se à conclusão paradoxal de que as coisas de uma multiplicidade devem ser semelhantes e dessemelhantes, conclusão que é considerada absurda. Logo, a hipótese de que há pluralidade deve ser descartada.

A existência de uma pluralidade implica que as mesmas coisas sejam e não sejam semelhantes. Por exemplo: cada membro de uma pluralidade é semelhante aos outros, porque todos “são” (existem). Mas, ao mesmo tempo, cada um deve ser diferente de todos os outros, e para isso deve ter alguma característica própria, única, que nos permita identificá-lo como único em relação aos demais. Mas se cada coisa é semelhante e dessemelhante, os opostos semelhante e dessemelhante serão o mesmo. Como isso é impossível, não pode haver pluralidade (Allen, 1997: p.90-1).

Para defender a existência da multiplicidade e refutar Zenão, Sócrates postula a existência das Idéias, que existem em si e por si e são separadas das coisas sensíveis (que são múltiplas). Existiria uma Idéia em si da Semelhança, e existiria a Idéia, contrária a essa, do Dessemelhante. As coisas sensíveis participariam nas Idéias, sendo semelhantes, se

participam da Idéia da Semelhança, e dessemelhantes, se participam da Idéia da Dessemelhança. Ora, nada impede que algo participe simultaneamente de ambas as Idéias e seja afetada por ambas, de modo que, em si mesmo, ele seja semelhante e dessemelhante (128d-129b).

Para Zenão, um dedo grande não poderia ser um dedo pequeno pois ele considerava o dedo e a sua propriedade (grande) como uma coisa única, um “dedo-grande”. O paradoxo de Zenão se baseia em uma concepção de significado que identifica o significado de uma palavra com o objeto que ela nomeia (cf. Allen, 1997, p. 91). Portanto, Zenão se move no marco de uma teoria referencial da linguagem (TRL) como a que estudamos no capítulo 1. Como vimos, nessa teoria o significado de uma palavra é o objeto ao qual ela se refere. Ora, o referente da expressão “dedo-grande” deve ser então um objeto tomado em sua unidade, dedo-grande, o referente de “dedo-pequeno” será então outro objeto, diferente do primeiro, um dedo-pequeno. Não há espaço, neste tipo de teoria, para a consideração de um objeto-dedo com a propriedade de ser pequeno, e o (mesmo) dedo com a propriedade de ser grande. Na TRL a predicação de propriedades a um objeto é problemática e leva aos paradoxos do tipo apontado por Zenão, pois, “se não há distinção entre ser e ser A [isto é, ter a propriedade A], então qualquer segunda coisa B ou é igual a A ou não é. Logo, não há pluralidade” (cf. Allen, 1997, p. 91).

Com a postulação da existência das Idéias, Sócrates realiza justamente essa separação entre a coisa e a(s) propriedade(s) que a coisa possui, entre o que é predicado de uma coisa e a coisa da qual se predica algo, necessária para evitar os paradoxos de Zenão.

Sócrates separa as Idéias Grande e Pequeno das coisas que têm a propriedade de serem grandes e pequenas. O dedo pode ser grande ou pequeno, participando de ambas as Idéias (e de tantas outras quantas forem suas propriedades) simultaneamente. Diz Sócrates:

Se alguém demonstrar que eu sou um e múltiplo, que há de espantoso nisso? Quando quiser mostrar que sou múltiplas coisas, dirá que uma coisa é meu

lado direito, outra, o esquerdo, e que uma coisa é a frente, outra, a parte de trás, e do mesmo modo com relação à parte inferior e superior, pois participo, creio, da quantidade; e, por outro lado, quando <quiser mostrar> que sou um, dirá que, dos sete que estão aqui, eu sou um homem, participante que sou também do um (129c).

As Idéias do Grande e do Pequeno, do Um e do Múltiplo em si, porém, não se confundem. Demonstrar que algo é múltiplas coisas e um não é a mesma coisa que demonstrar que o Um é Múltiplo ou que o Múltiplo é Um. É por isso que Sócrates repete por três vezes que ficaria “cheio de espanto” (thaumastós – a mesma palavra para a origem da filosofia), se alguém lhe demonstrasse que as Idéias, inicialmente separadas umas das outras, em seguida pudessem ser misturadas ou entrelaçadas (plekoménen – 130a) entre si, pois isso implicaria que o Um seja Múltiplo e o Múltiplo seja Um. Isso apenas transferiria a aporia de Zenão do sensível para a teoria das Idéias.

Se alguém, em primeiro lugar, separasse umas das outras as Idéias mesmas em si mesmas – por exemplo, a semelhança, a dessemelhança, a quantidade, o um, o repouso, o movimento e todas as coisas deste tipo – e em seguida mostrasse que estas, entre si, podem ser misturadas e separadas

(sugkera/nnusqai kaiì diakri¿nesqai))), eu pelo menos, ficaria encantado, cheio de espanto (129de).

Em nossa leitura, esse é o ponto central do diálogo, pois é a esse desafio socrático que Parmênides responderá, primeiro, com uma série de objeções à teoria das Idéias e, segundo, com o exercício dialético da segunda parte. As objeções terão como foco mostrar que, se as Idéias são consideradas como unas em si, desse fato decorre uma série de aporias e a Teoria das Idéias perde completamente todo poder explicativo. O exercício dialético, por sua vez, mostrará (para a provável admiração de Sócrates) que o Um e o Múltiplo de certa forma se entrelaçam, pois, se há o Um, há o Múltiplo, e se há o Múltiplo, há o Um: embora distintos, ambos os conceitos se co-implicam mutuamente e não podem ser pensados ou existir isoladamente.

Vejamos quais são as críticas de Parmênides à Teoria das Idéias e qual o seu significado para o nosso estudo.

No documento A filosofia da linguagem em Platão (páginas 66-70)