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As aporias da teoria das Idéias

No documento A filosofia da linguagem em Platão (páginas 70-74)

3.2.1 De quais entidades existem Idéias? (130b)

Interrogado por Parmênides, Sócrates considera mais natural aceitar a existência de Idéias para conceitos abstratos, tais como “justiça”, “igualdade”, “semelhança”, “belo” e “bom” do que para palavras que têm um referente concreto, como “homem”, “fogo”, “água”, e não aceita que haja Idéias de coisas como cabelo, sujeira ou lama. Mas, como vimos, a Teoria das Idéias do período médio postula que cada termo da linguagem ganha seu significado graças à existência de uma Idéia homônima (argumento um sobre muitos) e, se não há Idéias, como explicar o significado destas palavras? Qual a sua referência? Porque haveria algumas coisas cujo nomes provem das Idéias e outras não?

A série de aporias que seguem ataca diretamente o problema da unicidade das Idéias. Afirmar que uma Idéia seja “Um” pode significar duas coisas: (1) que cada Idéia é una, indivisível, sem partes ou (2) que só existe uma única Idéia de cada multiplicidade (só existe uma única Idéia do Belo, por exemplo).21 Parmênides vai mostrar, no entanto que, em ambos os casos, ocorrem aporias.

3.2.2 Dilemas da participação

Parmênides afirma que só existem duas maneiras de concebermos a participação das Idéias nas coisas: ou as Idéias estão inteiramente em cada coisa ou apenas em parte. Porém, se a Idéia está toda nas coisas, estaria separada de si mesma e, portanto, não seria una (130e). Se

21 Para um estudo destas ambigüidades, no poema de Parmênides e nos diálogos do período médio de Platão, ver

a Idéia está em parte nas coisas, no entanto, também surgem aporias, que Parmênides exemplifica, através dos seguintes exemplos:

- se a Idéia do Grande é dividida em partes, o que participa do Grande será grande em virtude de uma parte do Grande; como a parte é sempre menor do que o todo, conclui-se que uma coisa seria grande por participar na Idéia do Menor;

- a Idéia do Pequeno é maior do que a parte dela que participa na coisa pequena; logo, diríamos que o pequeno é pequeno em virtude do Maior;

- pelo mesmo motivo algo igual seria igual por causa da Idéia do Pequeno, e não por causa da Idéia do Igual (131c).

A conclusão, portanto, é que uma Idéia, se for concebida como una, não pode ser dividida, sem que surjam paradoxos.

3.2.3 Regresso infinito (Terceiro Homem) (132a)

Como vimos, uma das principais premissas da Teoria das Idéias é que deve existir uma Idéia para cada multiplicidade que possui algo em comum. Se várias coisas A, B, C e D são grandes, deve existir uma Idéia da Grandeza na qual elas participam e em virtude da qual elas são grandes. Mas se é assim, Parmênides constata que agora teremos uma nova multiplicidade, formada pelo conjunto das múltiplas coisas grandes G = {A, B, C, D} e a Idéia de Grandeza (FG), pois G e FG têm uma propriedade em comum, a grandeza. Logo, deve haver uma Idéia de Grandeza para essa multiplicidade, que chamaremos de FG2. Agora,

no entanto, temos, novamente, outra multiplicidade, formada por G, FG e FG2 (as coisas

múltiplas, a Idéia de Grandeza das coisas múltiplas e a Idéia de Grandeza da Idéia de Grandeza + as coisas múltiplas). Para abranger esse novo conjunto {G, FG, FG2}, devemos

FG, FG2, FG3} e assim ao infinito. A conclusão é que não existiria uma única Idéia de

Grandeza, mas infinitas.

Em resumo: as Idéias são concebidas como Unas, o que pode significar duas possibilidades:

- cada Idéia é indivisível, sem partes. Mas as Aporias da Participação mostram as contradições de se conceber as Idéias sendo indivisíveis;

- cada Idéia é única: só existiria uma Idéia de cada multiplicidade. O argumento do Regresso Infinito mostra que teríamos, não uma única, mas infinitas Idéias para cada multiplicidade.

A conclusão, portanto, até aqui, é que, em qualquer caso, seja se forem concebidas como indivisíveis, seja se forem concebidas como únicas, as Idéias não podem, sem contradição, participar nas coisas.

3.2.4 “A maior aporia”: as Idéias em si seriam incognoscíveis (133b)

O fracasso de Sócrates em mostrar como as Idéias se relacionariam com os objetos leva à conclusão inevitável de que haveria um hiato insuperável entre os dois mundos (Gill, 1996 p.46), e as conseqüências dessa conclusão, que são consideradas a maior dificuldade das Teoria das Idéias, são examinadas a seguir.

Se as Idéias são em si (unas, indivisíveis), a discussão anterior mostrou que elas existiriam separadas de nós. As Idéias só se relacionariam entre si e não com as coisas sensíveis. Os seres sensíveis também só se relacionariam entre si e não com as Idéias. Que as Idéias existam “separadas” significa, portanto, que elas são ontologicamente independentes das coisas sensíveis (Gill, 1996 p.46), não havendo nenhum nexo causal (ou qualquer outro tipo de nexo) entre as Idéias e as coisas (134cd).

O conhecimento é concebido como sendo conhecimento de alguma coisa, portanto, o conhecimento é sempre relativo a algo (Rickless, 1998, p. 53522). Mas como as objeções de Parmênides e a incapacidade de Sócrates em respondê-las levaram à conclusão de que o mundo das Idéias e o mundo sensível não se comunicam, então o conhecimento não pode ser relativo às Idéias, ou seja, não há conhecimento de nenhuma Idéia (134a-c). Portanto, as Idéias em si seriam incognoscíveis, não teríamos acesso intelectual a elas, com o que a Teoria das Idéias perderia totalmente seu poder explicativo.

Porém, Parmênides enfatiza que, sem as Idéias, são impossíveis a linguagem, a dialética e a filosofia:

Entretanto, (...) se alguém (...), ao atentar para todas [as aporias mencionadas] há pouco e para outras deste tipo,23 não admitir que haja Idéias dos

seres e não definir uma Idéia de cada coisa, nem sequer terá para onde voltar o pensamento, uma vez que não admitirá haver uma Idéias sempre a mesma de cada um dos seres, e assim arruinará absolutamente o poder de dialogar [e de filosofar] (135b).

Como já procuramos explicar anteriormente, as Idéias foram postuladas como as portadoras de significado para o discurso lingüístico. Ora, a argumentação de Parmênides não tem por objetivo negar a existência das Idéias, mas, ao contrário, mostrar que, mesmo pressupondo-as como existentes, o fato de elas serem concebidas como unas não permite e, na verdade, inclusive impede, que elas cumpram esse papel.

Se há apenas uma Idéia de Justiça, então, palavra “justiça” tem um único significado, isto é, ela se refere a uma única entidade, a Idéia de justiça. A conclusão óbvia deste raciocínio é que não podemos aplicar a palavra “justiça” a nada mais: não podemos nomear casos concretos ou certas pessoas à nossa volta de “justos” ou “justas”, muito menos aplicar

22 Agradeço ao colega Nazareno de Almeida por ter chamado a minha atenção para o excelente artigo de

Rickless.

essa palavra a vários casos de justiça diferentes. “Justo” só pode ser aplicado à Idéia de justiça.

Não é possível negar a teoria das Idéias, sem cair em inconsistências. No entanto, também não é possível aceitar essa teoria tal como foi apresentada por Sócrates, sem sofrer outras inconsistências.

Como Parmênides enfrentará essas aporias? Parmênides não superará as aporias da Teoria das Idéias, negando que elas sejam Unas, mas fazendo um exame detalhado dos diferentes significados (aspectos) do conceito Um. Essa análise mostrará que o Um não pode ser pensado isoladamente em si, mas apenas em sua relação com as outras Idéias (Múltiplo, Semelhante, etc.), pois sempre que consideramos o Um em si, isoladamente, surgem os paradoxos que dão a fama de aporético ao diálogo Parmênides. Platão não demonstrará que o Um é Múltiplo ou que o Múltiplo é Um, mas, sim, que ambos os conceitos, apesar de diferentes, estão inter-relacionados de maneira necessária.

O exercício dialético mostrará, para a provável admiração de Sócrates, que o Um e o Múltiplo de certa Idéia se entrelaçam, pois, se há o Um, há o Múltiplo, e se há o Múltiplo, há o Um: embora distintos, ambos os conceitos se co-implicam mutuamente e não podem ser pensados nem existir isoladamente.

No documento A filosofia da linguagem em Platão (páginas 70-74)