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III. APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS E DISCUSSÃO

5. A TEORIA DO RECONHECIMENTO NA QUESTÃO DA IDENTIDADE

A identificação e o reconhecimento são os aspectos primários que possibilitam as relações entre as pessoas e são também dimensões fundamentais do conceito de identidade. Partindo de Dubar (2005), chegamos à identidade a partir do reconhecimento recíproco, «conhecimento de que a identidade do eu só é possível graças à identidade do outro que me reconhece, identidade essa que depende do meu próprio conhecimento» (Hegel, citado por Dubar, 2005, p.100).

Reflectindo sobre a dialéctica do reconhecimento recíproco, constatamos que coloca duas questões essenciais: o reconhecimento de si próprio (auto-reconhecimento) e o reconhecimento do outro que reconhece (reconhecimento pelo outro). Ambos os reconhecimentos pressupõem a linguagem: «a linguagem constitui, pois, o primeiro pressuposto de toda a interacção que engaja» (Dubar, 2005, p.101). Assim, aquele que reconhece é capaz de simbolizar, de desenvolver a dialéctica da representação, isto é, de criar e compartilhar significados.

Os sujeitos definem-se e identificam-se a partir de como se reconhecem no desempenho dos seus papéis sociais e de como são reconhecidos pelos demais. Através da linguagem, os sujeitos incorporam as representações sobre si próprios e sobre os outros, construindo uma dinâmica de interacções que acabam por definir as próprias identidades. Então, a identificação é um elemento base desta construção. É partindo da identificação com «a comunidade, a equipa, o grupo que dá ao indivíduo a “unidade de si-mesmo”. Mead o denomina “o outro generalizado” e faz a identificação com ele o mecanismo central da socialização definida como construção de “si-mesmo”» (Dubar, 2005, p. 117). Este autor parte, justamente, da noção de identificação para o estudo dos processos biográfico e relacional. Com a identificação surge um vínculo ou atracção por parte do identificado que o liga ou “outro”, isto é, à sociedade. Mas, qual o papel da identificação na questão da identidade?

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São possíveis várias abordagens: fenomenológica, psicanalítica e sociológica, entre outras. Segundo a perspectiva psicanalítica (Freud, 2001), a identificação desenrola-se como um processo em que se toma o outro como modelo, implicando, necessariamente, a formação do ideal do Ego e do Superego, enquanto instâncias que engendram universos simbólicos e regulações culturais.

Partindo de Dubar (2005), a perspectiva sociológica aborda os processos biográfico e o relacional da construção das identidades, mas

é pela e na actividade com os outros, o que implica um sentido, um objectivo/ou uma justificação, uma necessidade…, que o indivíduo é identificado e levado a endossar ou a recusar as identificações que recebe dos outros e das instituições (Dubar, 2005, p.138).

5.1. AFECTAÇÃO DAS DIMENSÕES RELACIONAIS

O patrulheiro está constantemente envolvido em interacções com os colegas, superiores e cidadãos e isso condiciona, certamente, a sua maneira de ser (pensar, sentir e agir). Ao longo do processo de socialização, tal como vimos em Dubar (2005), cada um de nós desenvolve uma determinada identidade e, necessariamente, a capacidade para pensar, sentir e agir de forma independente. Partindo deste pressuposto, como é que as várias dimensões afectam a maneira de ser profissional do patrulheiro?

Pela análise que fizemos das entrevistas, a dimensão familiar contribui para a estabilização da personalidade, desempenhando um papel de apoio emocional e de assistência pessoal, conforto e companheirismo. Concluiu-se das entrevistas que as famílias dos entrevistados afectam a maneira de ser dos patrulheiros. Nalguns casos, há um esforço para separar o trabalho da família:

tento separar a vida familiar da vida do trabalho. Tento não trazer a família para a profissão e a profissão para a família…quando estou a trabalhar não desligo da família porque eles fazem parte de mim (…) quando estou no descanso não desligo do trabalho porque é a minha profissão” (E.1, p.83).

Este enunciado denota bem a afectação da subjectividade do patrulheiro e a dificuldade que sentimos em separar as dimensões em jogo, sem nunca sabermos onde começa uma e termina a outro e vice-versa.

Tendo presente a abordagem sociológica desenvolvida por Dubar (2005) acerca das transacções subjectiva e objectiva do processo de construção das identidades sociais, propomos partir de duas questões: questão do auto-reconhecimento e questão do reconhecimento pelo outro para a construção da identidade profissional dos polícias/patrulheiros. Assim, a identidade profissional é encarada segundo um processo de

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construção que engloba aspectos relacionados com o auto-reconhecimento (identificação, representação, constância, continuidade, semelhanças e diferenças) e reconhecimento pelo outro (aspectos profissionais e aspectos sociais).

Além das considerações apresentadas acerca da identidade e dos dois aspectos relacionados com o reconhecimento, é necessário, agora, circunscrever o campo escolhido para tratarmos deste assunto. Optámos por escolher catorze profissionais da patrulha, com idades várias, quer cronológicas, quer de experiências profissionais, de ambos os géneros, etnias, ideologias, habilitações literárias desde o secundário até à licenciatura e que desenvolvem a sua actividade de patrulheiros em esquadras de Lisboa, onde são incluídos em estratos profissionais, tal como defende Susana Durão:

À chegada, os agentes são considerados maçaricos (o que corresponde grosso modo ao primeiro ano da actividade profissional). Numa segunda fase passam pela experiência dos primeiros

anos. Na terceira fase começam a ser considerados experientes (o que geralmente tem início no

quarto ou quinto ano de actividade). Na última fase, os agentes começam a acusar o cansaço das

ruas. Nesta fase não há uma identificação temporal precisa, mas tende a englobar os agentes com

mais de 15 anos na profissão (Durão, 2008, p. 362-3).

Os entrevistados definiram-se a partir de como se reconhecem no desempenho da patrulha e de outras dimensões (pessoal, familiar, institucional/organizacional, sistémica, local, societal e profissional), e como é que são reconhecidos pelos outros sujeitos, no meio social.

A partir das entrevistas realizadas em ambiente de esquadra (gravadas em áudio e depois transcritas, seguindo o guião previamente definido), pretendemos que os entrevistados falassem das representações e concepções sobre as suas dimensões pessoais e

organização familiar; institucional/organizacional (como se vêem a si próprios os polícias

na Polícia); dimensão sistémica (como se vêem os polícias no seio de um aparelho de Justiça e do Estado); dimensão local (receptividade percebida pelas agentes face aos cidadãos); dimensão societal (percepção das agentes face ao lugar da patrulha na sociedade portuguesa); e dimensão profissional (perspectivas de carreira, serviços desempenhados e trabalho em si).

5.2. A PARTIR DOS DADOS DAS ENTREVISTAS

Tendo presente o pressuposto que as percepções e representações das várias dimensões indicadas afectam o trabalho da patrulha e estão presentes nos vários contextos das relações sociais que envolvem os entrevistados, então propomo-nos fundamentar as práticas profissionais a partir da análise das entrevistas individuais, com o propósito de

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chegarmos à compreensão dessas representações e concepções na construção das identidades profissionais.

Tendo por base a ideia do auto-reconhecimento, colocamos a primeira questão: como é que os entrevistados se reconhecem como polícias e quais os significados que se auto-atribuem no desempenho da sua actividade profissional de patrulheiros?

A partir dos dados das entrevistas destacamos aspectos relacionados com a profissão que consideramos importantes para caracterizarmos a identificação com a profissão. Metade dos entrevistados representaram como motivo para concorrer à PSP a

estabilidade financeira e, de certo modo, a segurança no emprego, onde três disseram que

concorreram por gosto, um afirmou que era para ajudar o próximo e os restantes não apresentaram nenhum motivo de relevo.

Após a chegada à esquadra e iniciaram as funções de patrulheiros, como se sentiram? É importante determiná-lo para percepcionarmos o estado subjectivo do início da profissão. A partir dos dados das entrevistas, constatamos que os patrulheiros que sentiram que «foi complicado» (E.1, p.79), houve quem se sentisse «desapontado» (E.2, p. 92) e até «muito desapontada» (E.7, p.140), sentindo-se «desconfortável» (E.11, p.207) perante aquilo que chamam de «uma desilusão» (E.12, p.214) «que não fazia ideia» (E.14, p.234) representam seis dos catorze entrevistados. Os restantes oito entrevistados representam os que se sentiam bem e até muito bem, incluindo os que disseram que se sentiam como que em casa.

Como é que se definem enquanto patrulheiros? Nas representações que fazem de si mesmos, a identidade profissional é vivida de modo consciente. Há duas formas que levam à leitura deste modo consciente: a psicanalítica (Id., Ego e Superego) (Freud, 2001) e a sociológica (Dubar, 2005), tal como já foi referido neste trabalho. Após o estudo das respostas dos entrevistados, constatamos que se auto-reconhecem como patrulheiros. É aquele «que patrulha as ruas da sua área de serviço, que estabelece contactos com os moradores (…) é a recolha de informação» (E.1, p.88). Esta representação é co-extensiva ao universo dos entrevistados. Identificam-se como patrulheiros, estando de acordo com o estatuto de patrulheiro instituído pela organização, o que nos permite afirmar que representam a identidade profissional.

Outra característica que contribui para a construção da identidade profissional é a continuidade. É preciso que seja auto-reconhecida para a identidade profissional. É através desta característica que compreendemos como se estrutura o passado, se actualiza o presente e se projecta o futuro. Compreender esta trajectória temporal contínua é

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fundamental para a identidade profissional. A análise dos dados das entrevistas denotam uma continuidade, isto é, os entrevistados representaram a patrulha no passado, representam-na no presente e têm expectativas acerca da patrulha no futuro. Os dados analisados indicam um auto-reconhecimento. Assim, partindo dos dados que se centram nas vivências dos primeiros dias nas esquadras, verificamos que variam desde a dificuldade «não foi fácil» (E.1, p.80) (E.11, p.207), até ao «nervosismo, medo de não ser capaz de resolver as ocorrências» (E.14, p.235), e «receio, mas vamos ganhando calo» (E.2, p.91). Os dados das entrevistas centrados no presente, denotam um maior entrosamento e uma representação mais consciente das funções da patrulha: «gosto de trabalhar por turnos» (E.2, p.92), «são seis horas a interagir com os cidadãos» (E.6, p.136), em que poderão acontecer «várias coisas. Não há nenhum dia igual» (E.9, p.169). Aos entrevistados foi também solicitado uma perspectiva da patrulha para o futuro: enquanto um afirma «bem melhor” (E.8, p.157), outros declaram que será “negro (…) mal, muito mal” (E.9, p.176), onde “não prevejo grandes mudanças” (E.3, p.109). Ainda que não haja consenso, a maioria dos entrevistados prevêem um bom futuro para a patrulha.

Para terminar a questão do auto-reconhecimento, falta consideramos as semelhanças e diferenças como essenciais à construção da identidade profissional. São os

pares, os parceiros e colegas que percepcionam as semelhanças porque partilham a mesma

identidade policial, enquanto as diferenças são direccionadas para aqueles que não partilham a identidade policial. As questões do reconhecimento pelo outro são representadas pelos aspectos sociais e profissionais. O que é ser patrulheiro para o outro? A análise do reconhecimento pelo outro sugere concepções acerca do que é ser patrulheiro e escutando algumas delas verificamos que o polícia é visto como ameaça quando reprime ou detém o infractor e é reconhecido como autoridade quando zela pela segurança dos cidadãos e evita a desordem social. O reconhecimento da sociedade varia muito: «varia com a faixa etária e classe social. Os mais jovens vêem a polícia duma forma negativa, a classe mais idosa já tem uma imagem bastante positiva da polícia» (E.5, p.122). Se por um lado no auto-reconhecimento os polícias entrevistados se reconhecem como polícias profissionais e identificam-se com valores que regulam o seu trabalho, zelando pela segurança pública, por outro, ela oprime, identifica, reprime, causando problemas para os infractores e famílias. Então, os polícias vivem um conflito profissional, expresso na contradição entre como se reconhecem e como são reconhecidos por outros.

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