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2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 A TEORIA DOS POLISSISTEMAS

A teoria dos polissistemas foi desenvolvida nas décadas de 70 e 80 do século XX por Itamar Even-Zohar (1990). Nessa teoria, a cultura é concebida como um grande sistema formado por vários outros sistemas que se entrecruzam e, em parte, sobrepõem-se. Na perspectiva polissistêmica, os ET fazem parte de um campo de pesquisa interdisciplinar em que o texto traduzido deve ser examinado de vários ângulos, não só do ponto de vista linguístico.

Even-Zohar partiu do conceito de sistema dos formalistas russos para aplicá-lo ao estudo da literatura traduzida em hebraico. Seu objetivo inicial era elaborar uma base teórica capaz de explicar as particularidades da história da literatura israelense e das traduções literárias realizadas nessa cultura. Em nosso caso, adotaremos a perspectiva polissistêmica para escrever uma história das traduções das fábulas de La Fontaine no Brasil a partir da análise dos paratextos dessas traduções.

No volume 11, número 1 da revista Poetics Today: international

journal for theory and analysis of literature and communication (1990),

estão reunidos vários ensaios em que Even-Zohar discorre sobre a concepção da teoria dos polissistemas. Essa edição contém as versões mais recentes de seus textos escritos entre 1969 e 1990. Na introdução do volume, o teórico comenta sobre a evolução de sua teoria:

A teoria dos polissistemas foi sugerida nos meus trabalhos em 1969 e 1970, subsequentemente reformulada e desenvolvida em alguns de meus estudos posteriores e (espero) melhorada, depois compartilhada, avançada, aumentada e experimentada por diversos estudiosos em vários

países. Embora, conforme Segal (1982) corretamente observou, a teoria dos polissistemas tenha surgido em meu próprio trabalho da necessidade de resolver certos problemas muito específicos (relacionados à teoria da tradução [Even-Zohar 1971], bem como à complexa história da literatura hebraica [Even-Zohar 1970, 1972, etc.]), seus alicerces já haviam sido solidamente fundamentados pelo formalismo russo nos anos 20. Infelizmente equívocos ainda prevalecem acerca do formalismo russo, razão pela qual a equação falaciosa de “Formalismo” desprovido de historicidade e um estruturalismo estático é ainda a prática normal nos círculos profissionais. Mas quem estiver familiarizado com a segunda e mais decisivamente avançada parte de sua atividade científica nos anos 20 não pode mais aceitar os estereótipos atuais sobre o formalismo russo.10 (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 1).

Even-Zohar desenvolve o modelo de polissistema ao propor que se estudem fenômenos semióticos como cultura, língua, literatura e sociedade não mais como elementos isolados, mas como parte integrante de um sistema heterogêneo, aberto e dinâmico. Para ele,

[...] se a ideia de estruturação e sistematização não precisa mais ser identificada com a homogeneidade, o sistema semiótico pode ser concebido como uma estrutura heterogênea aberta. É, portanto, muito raramente um unissistema, mas é, necessariamente, um

10 As traduções desta tese do par linguístico inglês/português são de autoria de Arina Fonseca

Alba, salvo aquelas assinaladas com a autoria de outro tradutor. Original: “Polysystem theory was suggested in my works in 1969 and 1970, sub-sequently reformulated and developed in a number of my later studies and (I hope) improved, then shared, advanced, enlarged, and experimented with by a number of scholars in various countries. Although, as Segal (1982) has correctly observed, polysystem theory emerged in my own work out of the need to solve certain very specific problems (having to do with translation theory [Even- Zohar 1971] as well as the intricate historical structure of Hebrew literature [Even-Zohar 1970, 1972, etc.]), its foundations had already been solidly laid by Russian Formalism in the 1920s. Unfortunately, misconceptions still prevail about Russian Formalism, which is why the fallacious equation of "Formalism" with a-historicity and staticStructuralism is still the normal attitude in professional circles. But anybody familiar with the second and most decisively advanced stage of its scientific activity in the 1920s can no longer accept the current stereotypes about Russian Formalism.” (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 1).

polissistema – um sistema múltiplo, um sistema de vários sistemas que se cruzam e parcialmente se sobrepõem usando diferentes opções concorrentes, ainda assim funcionando como um todo estruturado, cujos membros são interdependentes.11 (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 11).

Dessa maneira, entende-se que o termo polissistema designa um conjunto heterogêneo e hierárquico de sistemas que interagem de maneira dinâmica dentro de um sistema maior em que todos os sistemas estão englobados.

O polissistema literário, segundo Even-Zohar (1990), encerra desde a literatura considerada canônica até as formas literárias periféricas e marginais, como a literatura infantil e os romances policiais traduzidos. A literatura traduzida é, por conseguinte, um dos níveis do sistema literário. Este, por sua vez, é parte integrante do sistema artístico, do sistema político, do sistema econômico e assim por diante. Os sistemas podem ser configurados como redes dinâmicas, hierarquizadas em estratos formados pelas relações intra e intersistêmicas de seus elementos. Apesar de os sistemas ocuparem espaços concorrentes, funcionam como um todo estruturado com membros interdependentes. A concorrência causada entre os diferentes estratos gera uma tensão contínua entre o centro e a periferia do polissistema. Essa tensão estaria sempre redefinindo as fronteiras entre os sistemas adjacentes.

No sistema literário, o centro e a periferia podem ser representados respectivamente por gêneros literários dominantes, as obras que fazem parte do cânone, e por gêneros menos canônicos, obras que estariam localizadas na periferia do sistema, como por exemplo a literatura infantil ou a literatura popular. Para que uma obra faça parte do cânone literário, ela precisa ser legitimada pelo grupo que dita as normas do sistema literário, ou seja, os críticos literários, os resenhistas, os professores, as instituições de ensino e seus programas e os tradutores. As obras não legitimadas por esse grupo não fazem parte do cânone.

11 Original: “[…] if the idea of structuredness and systemicity need no longer be identified with

homogeneity, a semiotic system can be conceived of as a heterogeneous, open structure. It is, therefore, very rarely a uni-system but is, necessarily, a polysystem-a multiple system, a system of various systems which intersect with each other and partly overlap, using concurrently different options, yet functioning as one structured whole, whose members are interdependent.” (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 11).

Ao incluir a literatura traduzida no sistema literário, Even-Zohar percebeu a importância da contextualização e do posicionamento central ou periférico dessa literatura em relação ao polissistema da cultura de chegada. Em The Position of Translated Literature within the Literary

Polissystem (1990, p. 45-46), Even-Zohar afirma que, dependendo da

posição ocupada pela literatura traduzida no polissistema de chegada, ela tanto pode ter uma função renovadora quanto conservadora. Seu papel será renovador se ocupar a posição central e influenciar diretamente a formação do centro daquele sistema de chegada. Seu papel será conservador se ela estiver em posição periférica, dobrando-se às normas dominantes.

A literatura traduzida ocupa, em geral, uma posição periférica no sistema de chegada, mas há situações em que pode ocupar seu centro. Even-Zohar (1990, p. 47) analisa três situações de relações de poder entre o centro e a periferia de um sistema literário nas quais a literatura traduzida ocupa o centro do sistema: a) no caso de um polissistema alvo não cristalizado ou de uma literatura jovem; b) quando há uma literatura nacional periférica e/ou fraca; c) em momentos de crise literária ou de vácuos na produção literária. Nessas situações, a literatura traduzida pode contribuir para o desenvolvimento do polissistema de chegada introduzindo novos modelos e estilos literários, novas poéticas. Porém, se a literatura traduzida ocupa posição periférica no sistema de chegada, ela não somente não influencia a formação desse sistema, mas também tem grandes chances de ser influenciada por ele, além de reproduzir sua estética.

Em todos os casos, o lugar ocupado pela literatura traduzida está relacionado ao lugar ocupado por outros elementos constitutivos do polissistema de chegada. Como afirma Even-Zohar (1990, p. 51), “a tradução já não é um fenômeno cuja natureza e limites estão estabelecidos de uma vez por todas, mas uma atividade dependente de relações dentro de um certo sistema cultural.”12

A partir das considerações feitas, pode-se dizer que a literatura traduzida é vista como um subsistema dependente do polissistema cultural de chegada. Consequentemente, a tradução deixa de ser considerada como uma transferência interlínguas e passa a ser vista como uma transferência intersistemas. Dessa maneira, o texto traduzido não é mais analisado em relação à noção de equivalência, mas passa a

12 Original: “[…] translation is no longer a phenomenon whose nature and borders are given

once and for all, but an activity dependent on the relations within a certain cultural system.” (1990, p. 51).

ser visto como um objeto autônomo interligado ao sistema de chegada. Além disso, as decisões envolvidas no processo tradutório não são mais analisadas em função apenas do sistema linguístico, mas em função de normas específicas do contexto sociocultural de chegada, formado por vários elementos, como o sistema literário e todos os seus subsistemas componentes, a ideologia dominante, o contexto político e econômico, entre outros.

A contextualização de nosso objeto de estudo – a tradução das fábulas de La Fontaine e o lugar que as várias traduções existentes ocupam no polissistema literário brasileiro – é fundamental para conhecermos sua importância.

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